Reflexões reveiúnicas
Às vezes é muito bom estar solitário no meio de tanta gente, é ótimo não ter vergonha de exibir sua tristeza diante da alegria alheia, é fantástico perceber que a multidão é uma entidade fictícia e momentânea e que é preciso evitar ser um animal de manada
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já é 2017 no japão.
enquanto pipocam os fogos, ouço felicitações e vivas nos mais variados idiomas.
o que você prometeu fazer ou deixar de fazer em 2017?, perguntei a um brasileiro ao meu lado.
parar de fumar, disse ele, dando uma deliciosa tragada no marlboro de filtro vermelho.
mas já é 2017, criatura, e você ainda está fumando, eu o adverti.
mas no Brasil ainda é 2016, retrucou ele. minha promessa só vale pra lá, eu moro no Brasil.
gargalhou triunfante, como se fosse, ele, o cara mais esperto do mundo.
não percebendo que na verdade age como um mitomaníaco idiotizado que passa a perna em si mesmo.
o réveillon é a muleta da hipocrisia no sovaco de claudicantes midiotas.
é na virada do ano que os espíritos fracos fazem as promessas que nunca serão cumpridas.
é, também, quando o evangélico pula sete ondas e o ecólatra enche o mar de bugigangas de plástico em oferenda a uma entidade vaidosa e invisível.
nas tevês, enterteiners entretêm o público reforçando superstições fajutas e fazendo previsões fuleiras com feiticeiros eletrônicos e oráculos de araque.
tudo mercadoria, como diria o sapientíssimo moleiro menocchio, d'o queijo e os vermes.
se o cabra quer parar de fumar, de trair a esposa, de estacionar canalhamente na vaga de deficientes ou idosos, de assistir as novelas da globo, de ler a revistaveja...
nada o impede de começar isso logo no dia 30 de dezembro, ou no dia 29, ou mesmo no primeiro dia de agosto.
por que esperar chegar a meia noite do último dia do ano, deus dos invernos?
e por que diabos será que ninguém promete parar de mentir?
não digo parar de mentir para os outros, porque mentir é algo que também nos torna humanos.
mentir pra si mesmo é que faz do homem um animal depravado.
penso nisso enquanto olho o brasileiro deslumbrado com a festa nipônica, o sujeito não fala uma palavra do idioma local, por isso seu convívio se restringe ao grupinho que veio com ele.
seguramente o Brasil é o país que tem o maior percentual de monoglotas em sua elite.
e isso é uma lástima.
reparei na quantidade de ocidentais vivendo hoje no japão, é impressionante. há quinze anos não era assim.
quinze anos atrás eu estava na metade do curso de letras em japonês, na UnB, e vinha estudar aqui na prestigiada universidade de sofia.
uma instituição fundada pela indefectível companhia de jesus, veja você.
foi durante o réveillon que eu desisti desse destino manifesto.
estava em copacabana e dividia a areia com outros dois milhões e meio de bípedes.
e estava com a minha primeira esposa.
e ela chorava copiosamente.
sua mãe, uma diplomata de futuro brilhante (era vice consul na suíça com apenas 27 anos de idade), morrera na noite do réveillon em sua casa, em zurique.
ela nunca mais conseguiria se divertir na noite da virada.
eu perguntei a ela, enquanto lisérgicas luzes pipocavam sobre nossas cabeças: por que você não aproveita e promete a si mesma que não vai mais se deprimir no réveillon?
ao que ela respondeu: não estou deprimida, estou apenas triste. e é um excelente exercício lembrar que nunca devo me esquecer que essa alegria coletiva é só uma fuga.
a partir de amanhã, prosseguiu ela, todos estarão de ressaca e preocupados com a fatura do cartão de crédito, e perceberão que eram, eles mesmos, apenas mais uma mercadoria da sociedade do espetáculo.
não vou mais pro japão, eu disse a ela. e por que?, ela perguntou.
porque estou a fazer isso por minha mãe, ela está feliz sabendo que eu posso ganhar a vida do outro lado do mundo, falando uma língua exótica.
mas essa pode ser uma escolha pro resto da vida e é da minha vida que se trata.
amanhã ela morre e eu terei que viver com isso.
enquanto rememoro esse episódio, olho pro grupinho de brasileiros sorridentes.
não, não consigo estar como eles.
foi numa noite como essa, de réveillon, que percebi algo valoroso que só reforçou a minha inclinação para a epicúrica ataraxia, a saber:
às vezes é muito bom estar solitário no meio de tanta gente, é ótimo não ter vergonha de exibir sua tristeza diante da alegria alheia, é fantástico perceber que a multidão é uma entidade fictícia e momentânea e que é preciso evitar ser um animal de manada.
o resto é espumante, rabanada e promessa de réveillon.
palavra da salvação.
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