Racismo, no Brasil, é estrutural e parasita as instituições sociais e estatais

O racismo estrutural só é eficiente porque se esconde de várias formas: na “intelectualidade”, na cooptação, na autoimagem do brasileiro como cordial e pacífico

(Foto: Pixabay)


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Normalmente, eu passaria batida com uma afirmação tão sem pé nem cabeça. Mas, de repente, comecei a ver colegas docentes de alto gabarito científico concordando entusiasmados com tal disparate, gerando turbulência no grupo de Whats up de médicos de esquerda. Como se já não bastassem as disputas ideológicas cotidianas sobre luta de classes em oposição a “identitarismo”, algo que supostamente minaria a união trabalhadora, argumento, na minha opinião, totalmente superado. Assim, fui acossada por esse desgosto e tive que encarar a tarefa de dar uma resposta consistente e definitiva (se não for muita pretensão), pelo menos, a este autor específico, Muniz Sodré.

Não li o livro. Me baseio em comentários inequívocos da mídia e vou pinçar um parágrafo re-publicado no Blog Moisés Mendes, a partir de entrevista do autor à Folha de São Paulo, em 19 de março de 2023:

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“O conceito de estrutura (para definir racismo estrutural) é um conceito complexo. Primeiro, tenho que advertir que não tenho nada contra falar em racismo estrutural, porque acho que, do ponto de vista político, é bom, é fácil. Dá um ancoramento para a ideia de racismo aqui no Brasil. Mas eu digo que ele não é estrutural. Parto de coisas simples, como a frase do ministro Luís Roberto Barroso, do STF, quando ele diz que, no Brasil as estruturas são feitas para não funcionar. Ele está falando da estrutura jurídica. Da estrutura econômica, e é verdade. As estruturas aqui são feitas para não funcionar. Porque a única a funcionar seria o racismo? Acho que o racismo funciona exatamente porque ele não é estrutural. Minha visão é que o racismo que existia (grifo meu) no Brasil estava consolidado e ligado à escravatura. Portanto, a estrutura escravista existia (grifo meu). Há um livro de um historiador Jacob Gorender em que ele mostra a estrutura existente na escravidão. Outros ensaístas, como Alberto Torres, mostram que era uma estrutura que funcionava. O Brasil se sustentou na escravidão, fez acumulação primitiva [de capital] aqui e foi a coisa mais bem organizada neste país. Mas isso acabou com a Lei Áurea. Ao contrário do que acham alguns amigos meus escritores negros, a Abolição não foi uma farsa. Ela efetivamente acabou com a sociedade escravista, mas não acabou com o racismo. São duas coisas diferentes. (...) Ele é institucional (o racismo). Defino no livro o que é estrutura. É um termo muito preciso na sociologia e na filosofia. O conceito pressupõe uma totalidade fechada de elementos interdependentes. Você pode falar, por exemplo, da estrutura jurídica: a doutrina do direito se reflete nos tribunais, no processo penal, nas leis. Isso é estrutural”.

Esse parágrafo contém uma infinidade de contradições que qualquer leigo consegue tranquilamente apontar, conforme li em alguns comentários que seguem a referida matéria. Apontarei algumas contradições, depois outras inconsistências, de modo a fornecer um argumento decisivo, contundente e pedagógico, de como a estruturalidade do racismo é, sim, oculta, ardilosa, complexa e fácil de turvar o raciocínio de acadêmicos de todas as áreas. Então, o autor diz que não tem nada contra falar sobre racismo estrutural porque “é fácil” (?), o que entendo como algum tipo de simplificação aceitável para se atingir objetivos políticos, o que já me soa pouco sério. Existiria o racismo, mas este não seria estrutural porque o que é estrutural “funciona” e no Brasil, nada funciona. Ou seja, o autor sustenta seu argumento com base em uma frase solta de outro contexto, uma queixa, praticamente, de um ministro do STF. Daí, dessa confusão entre instituição e estrutura, ele deriva o raciocínio falacioso de que se o racismo é estrutural, logo não deveria funcionar... Isto é o que podemos chamar de tortuosidade de um discurso. Primeiro, toda instituição tem estrutura, mas nem toda estrutura é uma instituição. Depois, instituição é um termo sociológico muito amplo que não cabe apenas na ideia de estrutura de Estado. O racismo não é uma instituição, ele é social e está estruturado.

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O que se quer dizer quando se fala no racismo como algo estrutural?

Basicamente, estrutura quer dizer existência de relações fortes e estáveis entre elementos importantes que não mudam ou mudam pouco (sem alterar a estrutura) no tempo e sob condições de pressão (sobre a estrutura). Coisa fácil de qualquer um entender. Pensemos na instituição do casamento em várias sociedades tribais estudadas pelo mais famoso estruturalista que foi Lévi-Strauss (até Bourdieu acabou aceitando o racismo estrutural em seu livro Racismo da Inteligência). Ou seja, a sociedade possui uma série de instituições que orientam seu funcionamento, uma delas, o casamento. O casamento se articula claramente com o racismo. Existe uma infinidade de estudos que mostram como se fazem a escolha dos pares, de como a mulher brasileira é menos racista que os homens, que preferem mulheres brancas ou mais brancas do que ele. O racismo na instituição do casamento se faz por escolhas como cor da pele, tipo de cabelo, nariz, lábios, características físicas que “denunciam” a ancestralidade africana associada à escravidão e, também por isso, mas não apenas, socialmente desvalorizada. Desse modo, temos uma pressão social de busca do “embranquecimento” da prole por essa via que perdura há séculos. Este é um exemplo de que o racismo é estrutural, difícil de mudar, porque está arraigado na cultura e colado em diversas instituições, fazendo parte da sua cultura organizacional. Além das fortes relações do racismo com o casamento/amorosidade/sexualidade (pode haver desejo, mas o parceiro é desvalorizado), este também se ancora em discursos que repercutem em outras instituições de outros mundos que não apenas o mundo da vida, mas o mundo do trabalho e da educação, assim como da política formal. Os discursos sobre a menor inteligência dos negros ou da “preguiça” estão não apenas difundidos, mas estruturados, no sentido de que circulam e se renovam, mas nunca se dissipam totalmente, porque são úteis aos processos de distinção social que interessa à ideologia da supremacia racial. Estão sempre prontos a serem retomados quando necessário, que é o que vemos agora nessa “sutil”, mas nem tanto, tentativa de desvalorização da capacidade intelectual do ministro Silvio Almeida (negro), por outro negro (ou pardo, pode ser que ele não se sinta negro, não é? Pode ser um branco social, vide aquele senhor da Palmares). Essa é uma maneira típica de certa imprensa, de jogar irmão contra irmão, oprimido alienado contra oprimido consciente, portanto, incômodo. Sempre funciona porque o nível de consciência sobre os processos reais de dominação e submissão necessitam, em situações de “paz”, se legitimar por meio desses subterfúgios. Embora, nesse caso, o fracasso tenha sido total.

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Examinemos outro argumento sem noção: a escravidão acabou com a Lei Áurea. Essa tira qualquer disposição para o debate. Mas, vamos lá. A Lei Áurea acabou legalmente, formalmente, com a escravidão. Lei não é realidade. Lei é “dever ser”, não “é”. Significa apenas que quem a contrariar poderá sofrer sanções. Dá pra ver a enorme distância entre uma coisa e outra? Quem aplicaria uma sanção a um fazendeiro poderoso? Quanto tempo reinaram os coronéis, não apenas no Nordeste? Aliás, ser nordestino é ser alvo de outro tipo de racismo, o regional. Algum coronel sentiu o peso da lei quando dominavam sem restrição? A escravidão era muito mais estruturada no Nordeste, ele se industrializou mais tarde, o poder político se acumulou no sul-sudeste e lá a acumulação foi esmagadoramente maior, com todas suas contradições que temos que suportar até hoje. A escravidão nunca deixou de existir no Brasil. Ela se metamorfoseou, mantendo suas características estruturais que é a exploração quase total do homem pelo homem. Cada operário guarda um pouco da escravidão no seu modo de produção pois um modo (capitalismo) é a superação do outro (escravismo), no sentido de que ele mantém estruturas anteriores, como nós, humanos, mantemos estruturas de animais ancestrais e as compartilhamos com outros animais de outras espécies, mas igualmente descendentes. Quanto mais semelhante é a base genética, mais semelhante é a estrutura biológica.

Mas, falamos de estruturas sociais e não biológicas, embora, o conceito-mãe seja o mesmo. Estrutura social é superestrutura, como Estado é. E se pensarmos como Gramsci, englobaremos sociedade e Estado numa única estrutura macropolítica.

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Para finalizar, as estruturas sociais são mais complexas, mais sutis e flexíveis porque estão num outro nível. O racismo estrutural só é eficiente porque se esconde de várias formas: na “intelectualidade”, na cooptação, na autoimagem do brasileiro como cidadão cordial e pacífico. O racismo é sustentado por várias ideologias, por isso, uma outra forma do racismo ficar invisível é se infiltrar em verdades óbvias, mas sem relação de causa com ele. Tal como o fato de sermos um povo miscigenado. Isso é fato. O que não é fato é que ser miscigenado seja uma causa eficiente para não ser racista. A realidade contradiz essa ideia. A miscigenação no Brasil tem uma raiz de violência que precisa ser o tempo todo ocultada. Então, fala-se da miscigenação, mas não se fala como ela se deu: por meio do estupro, do sequestro, da coação, da submissão financeira, da venda humana, do tráfico. E, porque não se fala, pois incomoda muito, constrange, se oculta, dando aval para que ela continue em processos de cumplicidade quase vis. Racismo, misoginia e exploração do trabalho são processos complementares que se reforçam mutuamente, todos segregadores, injustos, moralmente e cognitivamente inferiores. Não existe inteligência nem valor em ser racista, misógino e explorador, pra não falar de outros mecanismos de segregação, preconceito e dominação. Logo, não haverá espaço também para a segurança e a felicidade numa sociedade que não tiver coragem de enfrentar esses “fantasmas”.

Creio que as considerações feitas sejam suficientes para desmontar qualquer pretensão, ingênua ou interessada, de criar um espaço de florescimento dessa erva daninha parasita que é o racismo. Para quem deseja informações mais aprofundadas e confiáveis sobre esse tema, me disponho a oferecer uma farta bibliografia com dados empíricos e reflexões teóricas de primeira linha. Porque informação qualificada não falta para quem tem honestidade intelectual mínima.

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