Quem sabe faz a hora
"O Manifesto acerta ao propor a renúncia de Bolsonaro e não seu impeachment, pois este acrescentaria à crise atual mais uma crise (longa e de resultado imprevisível) que abriria espaço para divergências e lutas num momento em que a sociedade brasileira clama por clareza de objetivos e de ações", diz a filósofa Marilena Chauí
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Considerações sobre o Manifesto “O Brasil não pode ser destruído por Bolsonaro”.
“Quem sabe faz a hora / Não espera acontecer” (Geraldo Vandré)
Maquiavel dizia que o verdadeiro político é aquele que, na desordem e no tumulto, sabe discernir o momento oportuno para agir. O Manifesto “O Brasil não pode ser destruído por Bolsonaro” é uma convocação para agirmos no momento oportuno.
Seu acerto é duplo. Em primeiro lugar, por propor agir como uma frente nacional contra a irresponsabilidade criminosa de incitação ao homicídio feita por Bolsonaro ao se opor ao isolamento social (imaginando-se aliado e cópia de Donald Trump, acabou isolado pelo mundo inteiro) e sua demora em tomar providências mínimas para assegurar a vida de milhões de brasileiros, procrastinando a liberação de recursos com querelas sobre MPs e decretos.
Em segundo lugar, o Manifesto acerta ao propor a renúncia de Bolsonaro e não seu impeachment, pois este acrescentaria à crise atual mais uma crise (longa e de resultado imprevisível) que abriria espaço para divergências e lutas num momento em que a sociedade brasileira clama por clareza de objetivos e de ações.
Para não esquecer
Durante os últimos 35 anos, vimos surgir e agir uma personagem que, do Alto e à nossa revelia, decidia os rumos do planeta. Essa personagem foi batizada pelos meios de comunicação e pelos economistas de direita com o nome de “O Mercado”, dotado de onisciência e onipotência. Onisciência porque, tendo a extraordinária capacidade de auto-regulação racional, sabe sempre e de antemão os rumos corretos e necessários do capitalismo. Onipotência porque possui um poder incontestável de decisão sobre as ações dos Estados e das sociedades e sobre os corações e as mentes dos indivíduos. Como toda divindade fetichista, “O Mercado” tem reações psicológicas: “está nervoso”, “está calmo”, “está de acordo”, “não está de acordo”, “aprova”, “desaprova”, “recompensa”, “pune”. Em suma, o seu “estado de espírito” repercute nas políticas do planeta e na vida cotidiana dos cidadãos. “O Mercado”, como sabemos, é o apelido do capitalismo neoliberal.
Ora, algo curioso vem acontecendo nas últimas semanas com a expansão do coronavírus ou Covid-19. Nos meios de comunicação, nos debates políticos, nas falas de governantes e nas redes sociais a palavra “mercado” desapareceu como por um golpe de mágica. Jornalistas, políticos, governantes e cidadãos passaram a empregar duas palavras que haviam sido banidas do vocabulário: economia e Estado. Como conseqüência, de repente, não mais que de repente, o vocabulário da socialdemocracia – controle estatal da economia e políticas sociais – é retomado.
Exemplifiquemos com o caso do Brasil.
Sem a menor vergonha na cara, agora é feito o elogio do Bolsa Família (aquele programa que era assistencialismo para os preguiçosos, lembram-se?), do SUS (aquele que Mandetta desativou quase por completo, lembram-se?) e muitos apregoam a necessidade da Renda Básica ou da Renda Mínima (sem que Eduardo Suplicy seja mencionado uma única vez nem entrevistado como o incansável campeão dessa idéia). Por sua vez, o “empresário de si mesmo”, os trabalhadores informais, os desempregados e os moradores de favelas e de rua passaram a receber uma nova designação: “vulneráveis”, como se sua vulnerabilidade tivesse surgido por conta do Covid-19 e não da aliança entre “O Mercado” e o governo neoliberal.
É espantoso o descaramento do uso da palavra “solidariedade” por aqueles que controlam ideologicamente a mídia e a política e que, até um mês atrás, se empenhavam do elogio irrestrito à competição e à “meritocracia”. Além disso, com igual descaramento, o governo federal exige que os cientistas das universidades públicas e dos centros públicos de pesquisa tragam rapidamente soluções para aquilo que deixou de ser “histeria” para ser considerado pandemia, sem que se diga que não houve investimento algum nas pesquisas públicas (lembram-se de Bolsonaro afirmando que pesquisa séria só é feita em universidades privadas e Weintraub cortando as bolsas de pesquisa do CNPq e da CAPES?). Exemplos não faltam se lembrarmos tudo o que foi dito e feito desde o golpe contra Dilma e a prisão de Lula.
Em suma, a referência à mudança de vocabulário e à relação com as políticas sociais é feita aqui no sentido de que é preciso resgatar e unificar por meio dos partidos de oposição as lutas e manifestações de movimentos sociais e populares em defesa de direitos que, desde o governo Temer, se espalharam pelo país, mas eram sempre fragmentadas, esporádicas e sobretudo criminalizadas. Insisto na figura dos chamados “vulneráveis” porque, a despeito da ideologia neoliberal sobre a “nova classe média brasileira”, são eles que constituem, na verdade, o que chamo de “nova classe trabalhadora brasileira”, fragmentada e isolada, carecendo de organizações de proteção, desprovida de uma visão social e política que lhe dê um lugar na luta democrática e socialista. Esse resgate de lutas e essa unificação de classe poderão, agora, encontrar eco na sociedade brasileira em sua rejeição a Bolsonaro.
Para nos ajudar a compreender
Penso que o artigo de Harvey “Política anticapitalista na época do Covid19”, é iluminador tanto sobre a situação planetária do capitalismo e da crise do neoliberalismo – combatido de Santiago à Beirute –, bem como sobre o lugar do Covid-19 na luta de classes, ponto que merece nossa maior atenção e pode guiar muitas das ações propostas pelo Manifesto. Harvey traça com firmeza o panorama planetário do neoliberalismo vitorioso, das lutas contra ele e dos efeitos do Covid-19 sobre ele, assinalando a ironia histórica do surgimento de uma perspectiva socialista no centro do mundo neoliberal.
Também considero importante para nossa reflexão e ação, o artigo de Paulo Capel Narvai, “Bolsonaro e a estratégia da pinça”. Narvai salienta que o que está em jogo não é a pandemia, mas as eleições de 2022. É particularmente significativa sua análise sobre a luta do grupo bolsonarista contra os governadores, que serão responsabilizados pelo péssimo desempenho da economia (o “pibinho” e o “dolão”), e sobretudo sua analise do papel de Mandetta nesse jogo, isto é, do discurso técnico aparentemente oposto ao discurso psicótico de Bolsonaro.
Uma proposta para discussão
Algumas pesquisas, mencionadas por articulistas de A Terra é Redonda e pelo site Brasil 247 indicam que, no Brasil, os mais penalizados pelos efeitos do Covid-19 (tanto do ponto de vista da saúde quanto da subsistência) são exatamente os eleitores dos partidos de oposição, particularmente os de esquerda. Em outras palavras, são aqueles de cujas organizações e lutas nasceram os projetos e programas dos partidos de esquerda, e também aqueles, destroçados pela economia e política neoliberais, que hoje buscam o caminho que define a essência da democracia, qual seja, a criação e garantia de direitos. Os partidos de oposição (esquerda e centro) devem a eles sua presença na política brasileira e por isso faço aqui uma proposta.
O Manifesto, como frente nacional de oposição, apresenta uma lista de ações necessárias a serem exigidas do governo federal, mas essa frente nacional também pode agir diretamente no atendimento emergencial dos que foram os mais atingidos pela destruição dos direitos sociais e por isso são também os mais atingidos, no curto e no longo prazo, pelo Covid19, pois são os que mais dependem dos serviços públicos e das garantias trabalhistas. Proponho que se considere a possibilidade de dirigir os fundos partidários para ações emergenciais, de maneira a deixar claro que o Manifesto é político e social. Isso configuraria uma espécie de governo paralelo? Que assim seja.
*Marilena Chaui é Professora Emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
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