Quem fará o discurso da esquerda?
O figurino, cantado em prosa e verso pelos grandes jornais, diz que a esquerda brasileira, para modernizar-se, escreve Roberto Amaral
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A burguesia aqui operante, desapartada dos interesses do país, vem garantindo o império de sua ordem, nada obstante a periódica troca nominal de governantes que promove e a sucessão de partidos políticos conservadores que no mais das vezes se confundem na mesmice de programas (escritos por mera exigência legal) e na prática comum de vícios, dentre os quais aflora o descompromisso com o que quer que mesmo de longe sugira um projeto nacional, a cuja carência debitamos grande parte de nossas mazelas. O poder pelo poder – a ocupação das sinecuras e os “negócios de Estado”– é o fim e a justificativa do concurso partidário, elevado aos píncaros da biltraria pelo Centrão, conglomerado de reacionários e negocistas de que se vale a classe dominante para manietar o Congresso e, por seu intermédio, impedir reformas e impor retrocessos políticos. Mediante esse controle, custeado pela ingerência do poder econômico nas eleições, asfixia os eventuais governos populares (sempre um episódio fora da curva), impondo-lhes a rendição, como ocorreu com o golpe de Estado parlamentar que sequestrou o mandato de Dilma Rousseff.
O antipetismo e o anti esquerdismo de um modo geral são herdeiros de tudo isso.
Nas poucas oportunidades nas quais o mando se viu ameaçado, ameaçado de fato ou só aparentemente ameaçado em seu monolitismo, a classe dominante não titubeou em fraturar o pacto e interromper o jogo democrático – jogado, aliás, segundo as regras por ela ditadas. Promovendo a fratura institucional, seu intuito é evitar a ruptura da ordem política hegemônica, cujas rédeas permanecem em suas mãos, qualquer que seja o governo. A soberania popular fala a cada quatro anos, é verdade, mas sua vontade terá sempre de conviver com a vontade da casa-grande. A conciliação impede a fissura das estruturas arcaicas, e a “manutenção da lei e da ordem” funciona como dique contra o progresso; nem revolução nem reforma, nem mesmo as mais consentâneas com o capitalismo, como a reforma agrária e a reforma tributária. Nada que mesmo de leve, e mesmo sob controle, possa ameaçar a estabilidade das velhas estruturas que asseguram o domínio da nação por apenas o 1% de brancos e milionários.
Vez por outra a classe dominante ruge, dá estudados sinais de incômodo, mas é apenas jogo de cena; ela tem consciência de que, no frigir dos ovos, controla o espetáculo.
Dão-se as mãos a caserna, o centrão e a Av. Faria Lima, os grileiros e as mineradoras, o capital financeiro nacional e internacionalizado e o agronegócio, e seu aparelho ideológico, os grandes meios de comunicação de massa.
Quinhentos anos tentando dar vez à emergência de um povo; duzentos anos de Estado independente; 133 anos de República, passados quase 70 anos de um império que já nasceu velho; um sem-número de golpes de Estado, duas longevas ditaduras. A única revolução vitoriosa, o movimento de 1930 – liderado por três governadores de província –, resultou de uma cisão na classe dominante. Exatamente por isso, venceu. Levada a cabo para assegurar a democracia e as liberdades, a “verdade eleitoral”, terminou por instaurar uma ditadura de 15 anos.
Qualquer sinal de alteração do sentido dos ventos é visto como fator de desestabilização sistêmica, ameaça à calmaria que acomoda o mando; a resposta é a intervenção do braço armado do poder, cumprindo com seu papel de instrumento da ordem: a conservação do statu quo, a preservação do passado no presente.
A história de nossos dias registra dois marcos desse intervencionismo reacionário: a ditadura de 1964-1985 e o golpe de 2016, que, depondo a presidente Dilma Rousseff, abriu caminho para a ascensão dessa chaga que é o bolsonarismo. Por intermédio do capitão, a direita brasileira, militar e civil, teve a primeira oportunidade, na República, de chegar ao governo pela via institucional e, com a proteção dos engalanados, empreender a exótica experiência de regime a um tempo neoliberal e protofascista. Enquanto teve fôlego, o fantoche estapafúrdio entregou o contratado aos senhores de seus cordéis: o aprofundamento da desindustrialização, da precarização dos direitos trabalhistas, da derruição da previdência social e, em plena faina, a desmontagem dos instrumentos de governo que, desde 1930, vinham permitindo ao Estado brasileiro cumprir com seu papel de vetor de desenvolvimento, cujo melhor atestado é a extraordinária taxa média de 6% de crescimento anual alcançada entre 1930-1980, contrastando com a estagnação de nossos dias, de que é indicador a expectativa do PIB para 2022, estimado 0,5% pelo Boletim Focus do Banco Central.
Anistórico a mais não poder, o projeto Bolsonaro – reunindo a marginalidade política, empresários e fardados (exército, marinha, aeronáutica e forças auxiliares) – deu com os burros n’água, empurrado por histórica desaprovação popular que esvazia as pretensões de continuidade pela via eleitoral, depois de fracassada a tentativa de golpe do 7 de setembro de 2021, na qual investira o terceiro andar do palácio do planalto, ora com o silêncio beneplácito, ora com a articulação de seus generais, milicianos e empresários delinquentes.
Os dados de hoje dizem que voltou à ordem do dia a regra do jogo democrático clássico, com a qual parece conformar-se a grande burguesia, olhando atenta para o que ocorre na Argentina, na Bolívia, no Peru e no Chile, e já aflita com o que podem oferecer as próximas eleições colombianas. Teremos eleições e, com os dados de hoje, elas serão respeitadas. O trumpismo, por enquanto, é de pouca valia, e pouco pode a direita brasileira esperar de um inseguro Joe Biden, às voltas com a pandemia, as eleições legislativas de junho, Putin e Xi Jinping, adversários de respeito.
A burguesia brasileira, mandante desde a colônia, caracteriza-se pela alta maleabilidade, sua capacidade de vencer obstáculos e manter-se no comando da política, sempre apta a ceder alguns poucos anéis de latão para conservar os dedos.
Com o esvaziamento da candidatura do capitão, consequência de sua catastrófica passagem pelo governo, a Faria Lima e adjacências enfunaram todas as velas na direção da chamada “terceira via”, a panaceia de seus estrategistas. O fracasso, porém, nada obstante a comovente obstinação da grande imprensa, foi o mais contundente. Não sentou praça o “conflito dos extremos” clamando por uma alternativa ao “centro”, e as candidaturas Lula (em ascensão) e Bolsonaro (em queda vertiginosa) continuaram polarizando, e assim deverão chegar às eleições de outubro. A menos que o capitão abandone a raia.
A classe dominante não tem compromissos senão com seus interesses e, em função deles, sabe identificar a estratégia mais segura, não raro parecendo recuar quando, de fato, cuida de avançar. Se de todo não é mais viável a candidatura in pectoris do capitão, construa-se uma alternativa; indisponível esta, a saída, que o andar de cima não rejeita, é procurar apaziguar-se com o “sapo barbudo” seja indicando-lhe a parelha, seja, onipotente, ditando o modelo de esquerda, dita “moderna”, que nossa esquerda “atrasada” (PT à frente),, deve seguir.
O figurino, cantado em prosa e verso pelos grandes jornais, diz que a esquerda brasileira, para modernizar-se, precisa, em síntese, deixar de ser de esquerda, pois impõe-se deitar fora os “velhos temas”, como a luta de classes (vencida pela conciliação), a reforma agrária (vencida pelo agronegócio) e a defesa do Estado e da empresa nacional (vencida pela globalização).
Vitoriosa essa linha, que pode encantar os que reduzem a política ao processo eleitoral, as esquerdas, nomeadamente a esquerda socialista, seriam condenadas à afasia, renunciando ao dever do proselitismo, do qual, aliás, se afastou desde as eleições de 2002, com as consequências consabidas, e delas destaco a fragilidade atual do movimento sindical e o atraso ideológico das grandes massas, cujo índice é a penetração do bolsonarismo entre as chamadas classes subalternas.
Inicia-se uma longa caminhada de pouco mais de nove meses. E ela só terá sentido histórico, para as esquerdas (assim mesmo, no plural), se se constituírem em oportunidade de mobilização e organização popular, política e ideológica. O processo eleitoral, com as condições de articulação e debate que assegura, com o acesso aos grandes meios de comunicação que propicia, com o ambiente de liberdade e movimento que enseja, deve ser visto pelos partidos e organizações populares e progressistas como a grande oportunidade de contato direto com as massas. Derrotar a chaga do bolsonarismo não pode ser visto como um fim em si mesmo, fito que tudo justifica.
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Barriga de aluguel – Para emprestar sua legenda ao ex-governador Geraldo Alckmin, dando-lhe assim condição jurídica de ocupar a vaga de vice na chapa de Lula, o PSB – que vem de sua aliança com Aécio Neves em 2014, e do seu comprometimento com a campanha de Eduardo Cunha à presidência da Câmara em 2015, ponto de partida para o golpe – exige o apoio do PT a seus candidatos em Estados nos quais, como no Rio de Janeiro e RS, não tem votos, ou em Pernambuco, onde seu proclamado candidato renunciou à propositura. Isso, no dicionário de Antônio Houaiss, que foi presidente da sigla quando esta buscava o socialismo, está grafado como chantagem.
Homenagem a Eny Moreira – Francis Bogossian, presidente do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos-IBEP, informa que a instituição realizará uma mesa-redonda sobre a vida e a atuação da criminalista Eny Moreira, minha querida amiga recentemente falecida. A homenagem será no próximo 5 de abril, quando a destemida advogada de presos políticos na ditadura completaria 77 anos.
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