Quem disse que a vida é um poema em linha reta?
Situada a oeste da Espanha (a pouco mais de 3 horas da fronteira com Portugal), Salamanca desvela, em seu centro histórico, edifícios e igrejas erigidos com pedras que mesclam um bege austero e pálido a um vermelho terroso que lembra o pó percolado aos pés descalços dos peregrinos
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Situada a oeste da Espanha (a pouco mais de 3 horas da fronteira com Portugal), Salamanca desvela, em seu centro histórico, edifícios e igrejas erigidos com pedras que mesclam um bege austero e pálido a um vermelho terroso que lembra o pó percolado aos pés descalços dos peregrinos.
Da plaza Mayor, onde estou hospedado, vou até a velha catedral, em cujo claustro estão enterrados alguns dos clérigos mais notáveis da Igreja espanhola. Quando me aproximo de um túmulo em cuja campa se esculpiu a figura de um arcebispo com a mitra altiva, o cetro monacal (ou seria monárquico?) e o anel de rubi, me vem à mente a figura octogenária do grande inquisidor, de Dostoiévski, que não só mandara prender Jesus Cristo, quando do retorno sagrado do Messias a Sevilha, no século XVI, como também fez questão de Lhe pregar: “Não há angústia maior para o ser humano do que encontrar alguém diante de quem ele possa se ajoelhar”. (O inquisidor-mor bem poderia prosseguir: “Ora, que o ser humano se ajoelhe, então, não em busca de arrependimento e perdão, mas diante da fogueira do Tribunal da Santa Inquisição”.)
Súbito, me vejo quase sozinho na capela onde jaz o grande inquisidor. Engolfado pelo claro-escuro da penumbra num dos cantos da capela e escorado por uma bengala, um senhor emerge com uma tosse que quase o faz cuspir o pulmão no lenço. Quando consegue recuperar o fôlego, o senhor aponta a bengala para mim - e sentencia:
- Ninguém mais reflete sobre a morte!
Antes que eu faça menção de lhe dizer que a morte me ronda como um espectro, já que eu fui velando meus ancestrais, um a um, a partir dos 14 anos, o senhor de barba branca e farta como lã bate a bengala no túmulo e dá sequência ao monólogo de que sou testemunha:
- Décadas atrás, cada missa nesta catedral estava repleta de fiéis, para os quais a conversa com Deus ficava confinada à igreja após a deglutição farisaica da hóstia. Hoje, no entanto, esta igreja jogada às traças mal tem as moscas como testemunhas: todos querem viver agora, só agora, ninguém aceita sequer uma lágrima de sofrimento (uma lágrima de vida, uma lágrima como prenúncio da morte), já que é preciso ser feliz como o palhaço, que tem um sorriso tatuado no rosto. E eu, cada vez mais próximo da morte, sinto que sobrevivi, inadvertidamente, à minha própria época e me sinto morto, antes mesmo de morrer, por ter que conviver com um tempo que só me inspiraria compaixão, se não me trouxesse tanta náusea…
Tomado por uma nova crise de tosse, o senhor recebe o apoio de um jovem (seu neto?) e se afasta, lentamente, com a coluna abaulada, como um casco de tartaruga que já não pode protegê-lo da decrepitude da vida - e da história.
Enquanto o vejo partir, me lembro de um túmulo com que deparei em um cemitério no bairro de Pinheiros, em São Paulo, há uns 10 anos.
Ao invés da lápide e do sepulcro tradicionais, tal túmulo trazia à tona uma grande mesa de bronze, ao redor da qual os membros já falecidos da família se sentavam. (As cadeiras vazias despontavam como prenúncios: nós que aqui estamos por vós esperamos.)
Numa das cadeiras, uma senhora de óculos de aros grossos, com um gatinho em seu colo, olha com benevolência e ternura para um senhor de testa ampla, mandíbula algo prognata e olhar firme como uma decisão irrevogável. A seu lado, sem poder tocar o chão com os pezinhos, um menino mal consegue apoiar os cotovelos à mesa, como se lutasse para emergir, qual um golfinho, de águas profundas e revoltas. (Por que assim tão cedo, meu Deus? Por quê?!)
Ao olhar, ainda uma vez, para aquelas cadeiras vazias, eu me lembro de uma brincadeira de que eu participei, um sem-número de vezes, em minha infância entre o fim dos anos 80 e o início dos anos 90: a dança das cadeiras.
Se houvesse, por exemplo, 10 crianças, haveria 9 cadeiras. Ao som de Xuxa, Angélica e do Trem da Alegria, a criançada íamos girando ao redor das cadeiras, até que a música, subitamente, era estancada: beijinho, beijinho, tchau, tchau para o último moicano que não conseguisse se sentar. Tal procedimento era reiterado até que houvesse 2 crianças e apenas 1 cadeira. A última criança a se sentar no trono da infância seria a grande/pequena vencedora.
Trono, túmulo.
A criança quer se sentar na cadeira, mas seus pés não conseguem resvalar o chão. Vida ainda insuficiente.
O velho quer se levantar da cadeira, mas não consegue remover os pés do chão. Vida insuficiente… ainda.
Quem disse que a vida é um poema em linha reta?
Ao olhar, ainda uma vez, para aquelas cadeiras vazias, eu me lembro de que a criança e o velho usam fralda, babador e andador.
Há uns 15 anos, passei em um ortopedista no hospital das clínicas, em São Paulo.
Ao comentar sobre a angulação algo tortuosa da minha pisada (o então jovem Vassoler começaria a descobrir, à beira dos 40 anos, o que são os meniscos a ranger como dobradiças enferrujadas), o médico arqueou as sobrancelhas espessas e coligadas como uma longa taturana - e sentenciou:
- O movimento esquelético dos pés é curioso. Quando têm pouca idade, os pés se abrem como asas, para cima e para fora, como jovens impetuosos e inconsequentes que não dosam temperatura e profundidade das águas antes de mergulharem de cabeça. Quando têm muita idade, os pés murcham como uma bexiga, para baixo e para dentro, como velhos medrosos e prudentes que nem dosando temperatura e profundidade da sopa mergulham a colher de cabeça. Como que se preparando para a morte, os pés de um velho se encolhem como um feto em busca da guarida do útero. O feto, no entanto, é o início da vida, e o útero, seu berço. Como é possível que início e fim, olá e adeus se confundam assim?
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