Quando eu pedi papel e caneta, o carcereiro riu

O jornalista Alex Solnik relembra sua temporada como preso político no DOI-Codi e como poderia receber qualquer coisa quando as visitas passaram a ser permitidas, menos papel e caneta; "Para mim, até então, papel e caneta eram dois objetos inofensivos, com os quais eu convivia harmoniosamente desde que aprendi a escrever na língua portuguesa, eram dois companheiros silenciosos e fraternos, que me permitiam cruzar as fronteiras do meu quarto de adolescente a qualquer hora do dia ou da noite e construir um novo mundo sem sair da minha mesa de trabalho (...) Nesse dia compreendi que papel e caneta podem ser mais perigosos e letais que revólveres e punhais"

Quando eu pedi papel e caneta, o carcereiro riu
Quando eu pedi papel e caneta, o carcereiro riu


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Por Alex Solnik, do Jornalistas pela Democracia - Quando, no décimo dia da minha temporada no DOI-Codi, iniciada a 4 de setembro de 1973, Alemão, o carcereiro alto e loiro que usava japona perguntou o que eu queria que minha mãe trouxesse de casa, já que minha incomunicabilidade tinha sido quebrada, me animei:

- Papel e caneta!

Ele abriu um sorriso, achando ou que eu estava tirando um sarro da cara dele ou que não conhecia as regras da casa.

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- Tudo menos isso, respondeu.

Tomei um susto. Para mim, até então, papel e caneta eram dois objetos inofensivos, com os quais eu convivia harmoniosamente desde que aprendi a escrever na língua portuguesa, eram dois companheiros silenciosos e fraternos, que me permitiam cruzar as fronteiras do meu quarto de adolescente a qualquer hora do dia ou da noite e construir um novo mundo sem sair da minha mesa de trabalho.

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Papel e caneta, não. Tudo o que eu quisesse, menos isso.

Nesse dia compreendi que papel e caneta podem ser mais perigosos e letais que revólveres e punhais. Não que sejam tóxicos, incendiários ou explosivos em si mesmos. Um pedaço de papel em branco não faz mal a ninguém. Uma caneta solitária não ameaça uma mosca.

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O problema se dá quando o papel e a caneta se juntam, formam um amálgama e produzem, a caneta conduzida pela mão de seu dono sobre o espaço branco, o que, de fato, tira o sono dos algozes: as palavras.

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As palavras são extraordinariamente fortes. Faladas, escritas ou pensadas. As palavras assustam, ameaçam e até matam.

As palavras também libertam.

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Alemão não ia acreditar se eu dissesse que o papel e a caneta eram para escrever poesias. Na cabeça dele, e de seus chefes, eu os usaria para passar recados a outros presos, para incitar rebeliões, para fazer o meu diário. Mal sabiam eles que esta seria a última coisa que eu faria.

Nos dias em que meu companheiro de cela não era torturado ele contava tudo o que passava na tortura e como enganava os interrogadores. A última coisa que eu faria seria registrar as verdades que ele não contava nos interrogatórios.

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Não desisti das palavras por falta de papel e caneta. Passei a fazer poesias mentalmente. Eu passava o dia fazendo a poesia daquele dia e repetindo a do dia anterior, para não esquecer. E também as recitava para meu companheiro do X-5 (Xadrez-5).

Fazer poesias, rimar palavras me dava sensação de poder, eu podia fazer alguma coisa que não me deixava desistir, me fortalecia e que eu mantinha fora do alcance de meus algozes.

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Era uma transgressão que eles não conseguiriam detectar jamais. Eles não saberiam jamais o que eu pensava. Eles não poderiam tomar de mim minhas palavras.

A uma certa altura, quando eu já tinha um bom número de poemas, fiz um recital para meia dúzia de novos “hóspedes” que chegaram ao X-5.  

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Foram 45 dias e 45 poesias. Uma delas dizia:

“As palavras da cabeça ninguém toma/ vou somando e só eu sei qual é a soma/ temperando e só eu sei qual é o aroma”/

“As palavras na cabeça são meu guia/ vou juntando/ e ninguém vigia/ vou pensando/ e ninguém desconfia”/

Não me lembro do resto. Na época eu mesmo editei um livrinho em mimeógrafo chamado “Toda Mudez Será Castigada”, trocadilho com a peça do Nelson Rodrigues. A capa era uma xilogravura de tortura medieval.

Vendi o livrinho de mão em mão, nos bares da vida, no eixo Bexiga-Praça Roosevelt e em praça pública, em varais, atrás da Biblioteca Mário de Andrade. Depois montei um recital com as poesias durante três noites no Teatro de Arena, com performances de Solange Camargo na expressão corporal e de um músico cujo nome não recordo.

Não sei porque essas lembranças me vieram à cabeça justamente hoje quando o fim do ano se aproxima.

Ou melhor, acho que sei.

Acho que as palavras – na cabeça ou no papel - vão ser mais necessárias do que nunca em 2019.

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