Quando a realidade não existe
Esse documentário, por exemplo, é tudo mentira, essa comunista Petra quer desmoralizar o país, tinha que ser presa, e vai estar lá, bonitona, no tapete vermelho com aquele fotógrafo do Lula a tiracolo, uma vergonha, bufava o motorista.
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Tudo é ficção. Narrativas. O ex-juiz da lava-jato, que teve o inegável mérito de escancarar para o mundo como funciona o poder judiciário no Brasil ao condenar o ex-presidente Lula, sem provas e sem a existência de crime, prendendo-o injustamente, novamente nos revela a essência da contemporaneidade bolsonara. Sobre o Democracia em Vertigem, indicado para o Oscar de melhor documentário, sem qualquer pudor, menciona que “alguns fatos no filme não correspondem à realidade”.
Na maneira bolsonara de ver o mundo não haveria relação necessária entre fatos e realidade. Qualquer criança perceberia que se algo não corresponde à realidade não é fato, é ficção. A dificuldade do grasnante ministro da justiça atual com a língua portuguesa e sua indigência intelectual são fatos incontestes. Realidade. Mas seria incorreto atribuir-se a tais virtudes bolsonaras aquela construção frasal capenga. A afirmação de que seria possível a existência de fatos que não correspondem à realidade, mais que ato-falho, descortina algo mais profundo, um delírio coletivo.
A negação de fatos (a herança “maldita” da era petista, a distribuição de renda, o empoderamento de coletivos vulneráveis, a atribuição de “intoleráveis” direitos a miseráveis, apenas para citar alguns) e sua substituição por “fatos inverídicos”, ou seja, por mentiras diversas (perigo comunista, fake news, as instituições estão funcionando, retomada do crescimento econômico, entre outras) em detrimento da realidade, caracteriza a maneira bolsonara de existir em sociedade. Nela a realidade é invenção, ou mera narrativa, com “fatos inverídicos” e “realidade fictícia” se confundindo e se complementando.
Um jornalista a soldo, dia desses, incendiou as redes sociais dizendo que o aludido documentário (filme baseado em fatos documentados) é obra de ficção. As imagens escolhidas na montagem não corresponderiam à realidade, em uma negação do que se vê na tela. Não sei o nome desta psicopatia, mas suponho que já deve ter sido descrita em alguma revista científica, pois é epidêmica na laboriosa classe dos jornalistas.
Da mesma forma, as revelações da vaza-jato com transcrições de diálogos indecentes entre o juiz e os procuradores da Lava-Jato constituem fatos não negados - estão lá para quem quiser ver - mas não corresponderiam à realidade segundo os integrantes da quadrilha pilhada em obscenidades, narrativa largamente aceita nos setores majorirários do terraplanismo jurídico.
No uber, em um desses debates em uma estação de rádio bastante popular, um dos interlocutores pergunta se o outro tinha críticas ao presidente. Várias. Os políticos são safados, todos os de deputados ficam com parte dos salários de seus assessores. O presidente peca; ao invés de deixar seu filho pagar por seu erro, fica defendendo o garoto. Se deixasse que fosse preso, ninguém seguraria o homem, seria aclamado pelo povo. Viraria rei. O motorista interveio, dirigindo-se a mim, aquiescendo. Discordei. Nem todos os políticos são iguais, alguns defendem os trabalhadores. Didático o motorista me explicou: não importa a verdade, temos que apoiar nosso presidente, para evitar a volta do comunismo. Errar todo mundo erra. No rádio as vozes insistiam no mesmo ponto de vista: o presidente é bom, é honesto, é um cara simples, embora rodeado de gente complicada, que faz bobagem. O motorista, orgulhoso de sua própria inteligência, confirmada por intermédio dos alto-falantes do carro, pelo retrovisor, fez aquela cara de eu te disse, eu falei. Os radialistas falavam que tudo estava melhorando, que a reforma trabalhista tinha sido a melhor coisa para o país. O uberista, culto e bem informado, observou que aquela reforma era do Temer, não do Bolsonaro, emendando com tanto faz quem fez, tinha que acabar com os sindicatos, os trabalhadores tinham muitos direitos e ficavam folgados.
Não havia qualquer possibilidade de diálogo. Ele tinha a sua verdade, concordava com a narrativa construída naquele programa de rádio que agora criticava o filme brasileiro que concorre ao Oscar. Fiquei só esperando.
Esse documentário, por exemplo, é tudo mentira, essa comunista Petra quer desmoralizar o país, tinha que ser presa, e vai estar lá, bonitona, no tapete vermelho com aquele fotógrafo do Lula a tiracolo, uma vergonha, bufava o motorista.
Contei que assisti, gostei, e que as imagens estavam a demonstrar a realidade do golpe. Perguntei se ele havia visto. A resposta veio naquela linha do tudo é montagem, eles alteram as imagens com efeitos especiais, uma mentirada. Não assistirá aquela bobageira e encerrou a prosa. A verdade é que o petê não dava mais, agora tudo melhorará, bolsonaro vai consertar o Brasil.
As fronteiras entre verdade e mentira, fatos e invencionices, entre realidade e ficção se esfumaram. Restaram disputas de narrativas. Nós com as nossas, eles com as deles, antagônicas e irreconciliáveis propostas de agir comunicativo (Habermas) e de maneiras de existir em sociedade. Cada vez mais é naturalizada a existência de fatos inventados e de realidades fictícias em contrapostas narrativas, cada uma querendo vencer a outra pelo cansaço, pela insistência.
Como a realidade não existe, tudo é ficção ou pode ser, ausente referência externa a validar a veracidade dos fatos. O planeta pode ser plano ou esférico a depender da narrativa, tanto faz. Por isso, e graças a deus, a fé adquire tanta importância no projeto bolsonarista.
Por outro lado, para o Fotojornalismo e para filmes documentários, a verdade é essencial. E como a realidade existe independentemente de seus intérpretes, adquirem uma renovada potencialidade transformadora na atualidade.
Queiram ou não, Petra Costa e Ricardo Stuckert, a diretora e o fotógrafo, o documentário e as fotos de divulgação de Francisco Proner Ramos do Democracia e Vertigem, mostram a verdade de uma forma sensível e delicada. Isso é real.
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