Punitivismo no STF resultou em pena de morte
"No caso do ex-deputado Nelson Meurer (PP-PR), que oficialmente tinha a cumprir uma pena de 13 anos e 9 meses de cadeia, o que o Supremo Tribunal Federal (STF) acabou fazendo foi condená-lo à pena de morte. Apesar de ela inexistir na legislação brasileira", escreve o jornalista Marcelo Auler
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Por Marcelo Auler, em seu blog - Não há como dourar a pílula. No caso do ex-deputado Nelson Meurer (PP-PR), que oficialmente tinha a cumprir uma pena de 13 anos e 9 meses de cadeia, o que o Supremo Tribunal Federal (STF) acabou fazendo foi condená-lo à pena de morte. Apesar de ela inexistir na legislação brasileira.
Depois de ver negado naquela corte vários pedidos pleiteando a prisão domiciliar, Meurer, 77 anos, portador de algumas comorbidades, portanto, potencial candidato a infartos, derrame cerebral entre outras doenças, morreu na manhã de domingo (12/07), de Covid-19.
Desde terça-feira (07/07) ele estava internado na Policlínica São Vicente de Paula, em Francisco Beltrão (PR), cidade onde morava e também cumpria sua pena. A doença, contraída dentro da Penitenciária Estadual de Francisco Beltrão, foi diagnosticada na quinta-feira (09/07). Nos primeiros dias no hospital chegou a reagir positivamente, mas no final de semana o quadro piorou e ele foi entubado.
Tratou-se de uma morte anunciada. Em 16 de março, em um dos vários pedidos de prisão domiciliar protocolados no STF, seus advogados – Michel Saliba Oliveira, Ricardo Lima Pinheiro de Souza e Helen Salvaro Beal – deixaram claro o risco que ele corria e a possível sentença de morte que estaria recebendo (como mostra a ilustração acima) e alertaram:
“A bem da verdade, negar ao ora requerente a concessão do direito da prisão domiciliar não é só negar-lhe o direito a saúde, mas o direito à vida“.
Decisão de Fachin: informações superadas
Apesar de todo o risco de vida do preso idoso e com comorbidades, o relator do caso, ministro Edson Fachin – ele próprio, com 62 anos, no grupo de risco da Covid-19 – optou por manter-se fiel ao punitivismo que abraçou desde que assumiu a relatoria dos processos da Operação Lava Jato. Dizem que relegando seu passado.
Respaldou-se em informações da Vara de Execuções Penais da comarca de Francisco Beltrão (PR) que depois mostraram-se superadas. Davam conta que a penitenciária aonde estava Meurer ainda não registrara casos de infectados e tinha capacidade ociosa, o que permitia isolar os presos.
Isto, porém, foi ultrapassado. Como registrou a defesa do ex-deputado, através do advogado Michel Saliba, “houve omissão de casos de coronavírus no presídio. Agentes prisionais tiveram a infecção e Meurer tinha contato com esses agentes. Presos também tiveram a doença. O que ocorreu foi a crônica de uma morte anunciada”, concluiu.
Na decisão, Fachin apegou-se a informações ultrapassadas. Presídio ficou superlotado.
O pedido a Fachin foi reiterado em abril, após o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitir a Recomendação 62, em março deste ano. Pelas normas indicadas aos presídios na pandemia, Meurer deveria ser beneficiado. Além da idade avançada, era portador de comorbidades. Ainda assim, o ministro decidiu, com base nas informações recebidas, recusar o benefício. No seu despacho monocrático (veja ilustração), expôs:
” (…) nada obstante o requerente esteja enquadrado em grupo considerado de maior vulnerabilidade em caso de contágio, constata-se que o Juízo da Vara de Execuções Penais de Francisco Beltrão informou a adoção de providências alinhadas à Recomendação n. 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça, como a suspensão de visitas a sentenciados que se encontram na Penitenciária Estadual de Francisco Beltrão, a qual ‘não se encontra com ocupação superior à capacidade’ (fl. 4.525), destacando, ainda, a existência de ‘equipe de saúde lotada no estabelecimento’ (fl. 4.525). (…) tendo o magistrado asseverado que ‘[A]té o presente momento inexistem casos confirmados de pessoas infectadas com coronavírus (COVID-19) no âmbito desta Comarca de Francisco Beltrão/PR’ (fl. 4.525). Adicionalmente, informou o Juízo a concessão de progressão de regime antecipada a 65 (sessenta e cinco) detentos da aludida unidade prisional, viabilizando o melhor controle do ambiente no qual o requerente se encontra recluso em relação aos riscos de disseminação do coronavírus“.
O que parece que Fachin desconhecia é que a redução do número de presos foi momentânea. Após a antecipação da saída de 65 presos, a penitenciária recebeu outros 79 detentos vindos do município de Palmas (PR). Como citado no Agravo que a defesa de Meurer interpôs em 7 de abril, o próprio juiz da Vara das Execuções Penais de Francisco Beltrão, Paulo Roberto Gonçalves Camargo Filho, alertou para o risco da superlotação. O Agravo reproduz o juiz:
“A unidade funciona dentro do limite de sua capacidade e receber os 79 presos da Unidade de Gestão de Palmas tornaria a situação evidentemente mais complexa. Logo. somente a permissão para a remoção desses detentos para a PEFB é assinalar positivo para transpor o número excedente de apenados na unidade. não sendo a melhor prática a ser feita se a finalidade é diminuir aglomeração e riscos à saúde prisional. A superlotação causaria tratamento degradante aos presos contrariando as regras de MandeI, de quem o Brasil é signatário, tornando-se um ambiente de risco à segurança dos detentos, com influente a disseminação de doenças, tudo que não se busca nesse momento“. (grifos do original).
Mesmo com todas essas advertências, Fachin mostrou-se insensível aos apelos e manteve a decisão de deixar o ex-deputado no presídio com todos os riscos, em nome do cumprimento da pena. Um novo Agravo interposto pelos defensores foi levado ao julgamento virtual, aquele em que o debate se dá pela rede. Foi quando o ministro Gilmar Mendes abriu a divergência acatando a tese de que o preso corria riscos.
“Destaque-se que não há dúvidas sobre a seriedade da condição de saúde do recorrente, com elevado risco de ocorrência de infartos, derrame cerebral, arritmia cardíaca e situações semelhantes, inclusive com sugestão de investigação para outras situações e comorbidades. Embora não haja necessidade de internação hospitalar, parece ser claro que a manutenção do recorrente no ambiente prisional aumenta significativamente os riscos a sua vida e a sua saúde“.
O silêncio de Cármen Lúcia
Mendes foi acompanhado apenas por Ricardo Lewandowski. Curiosamente, o decano, Celso de Mello, conhecido garantista, optou pelo punitivismo. Como não foi publicado o acórdão, não se conhece sua justificativa de voto. Mas causou estranheza, uma vez que em outros julgamentos ele tem defendido o inverso.
Aliás, como na citação apresentada pela própria defesa de Meurer, ao copiar parte do voto que Celso de Mello proferiu no Recurso em Habeas Corpus (RHC 94.358). Foi impetrado pelo Ministério Público Federal após o Superior Tribunal de Justiça (STJ) negar à detenta Maria Pereira Gomes (cumprindo pena por tráfico de drogas), portadora de cardiopatia, a prisão domiciliar. Do voto (leia aqui) extraiu-se:
“A preservação da integridade física e moral dos presos cautelares e dos condenados em geral traduz indeclinável dever que a Lei Fundamental da República impõe ao Poder Público em cláusula que constitui projeção concretizadora do princípio da essencial dignidade da pessoa humana, que representa um dos fundamentos estruturantes do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, III, c/c o art. 5º, XLIX).
O réu preso – precisamente porque submetido à custódia do Estado – tem direito a que se lhe dispense efetivo e inadiável tratamento médico-hospitalar (LEP, arts. 10, 11, inciso II, 14, 40, 41, inciso VII, e 43).
O reconhecimento desse direito apoia-se no postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo.”
Apesar desse seu posicionamento, Celso de Mello, no caso do ex-deputado, acompanhou o punitivismo de Fachin empatando a decisão. Curiosamente, a ministra Cármen Lúcia não apresentou voto. Isso permite até supor que ela, que reconhecidamente soma com os punitivistas na corte. deixou de proferir voto em uma possível tentativa de beneficiar o réu, sem precisar verbalizar isso.
Explica-se. No Direito Criminal a regra é que o empate em votação beneficia o réu. Parte do princípio constitucional da inocência dos réus – “In dubio pro reo”. O silêncio de Cármen Lucia, portanto, deveria ser contabilizado a favor do ex-deputado.
Porém, não era isso que dispunha o parágrafo 3º do Artigo 2º da Resolução 642, de junho de 2019. Ela normatiza os julgamentos virtuais da Corte. Neste § 3º estipulava: “Considerar-se-á que acompanhou o relator o ministro que não se pronunciar no prazo previsto no § 1º.” (leia aqui). Logo, atropelou-se o princípio que beneficiaria o réu.
A inconstitucionalidade de tal norma era tamanha que, pouco depois dessa decisão prejudicar Meurer, por pressão da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) o Supremo a modificou. Ela não vale mais para casos criminais, onde o réu volta a se beneficiar com o empate. A mudança ocorreu em 1º de julho, antes do recesso e de Meurer oficialmente dar entrada no hospital (o que aconteceu dia 7) já com suspeita de Covid-19.
O “doleiro dos doleiros” foi beneficiado
Por si só, a nova decisão do STF deveria retroagir beneficiando o ex-parlamentar. Bastava Fachin avocar o caso novamente e promover sua revisão, adaptando-a ao novo entendimento. Mas prevaleceu sua opção pelo punitivismo. Ele foi gozar do recesso, deixando o ex-deputado idoso e com comorbidades na penitenciária, sujeito à infecção do coronavírus. Infecção que não demorou a ocorrer.
Curiosamente, o juiz Marcelo Bretas, reconhecido punitivista à frente da 7ª Vara Federal Criminal do Rio e dos casos da Lava Jato Fluminense, não se mostrou tão radical como o relator dos processos da mesma operação, no STF. Foi no caso da prisão cautelar de Dario Messer, o conhecido doleiro dos doleiros, recolhido a Bangu VIII desde julho de 2019.
Sua defesa tinha solicitado a prisão domiciliar, antes mesmo da pandemia, por conta de alegadas comorbidades, em nada comparada com a do ex-deputado Meurer. Um Habeas Corpus impetrado no Supremo teve a liminar negada pelo relator, Gilmar Mendes, em novembro de 2019.
Em março houve um pedido de reavaliação da decisão, diante da Recomendação do CNJ. Mendes entendeu que essa revisão caberia ao juiz do processo, “quem possui maior proximidade com a realidade dos réus e quem possui condições de avaliar a situação do estabelecimento prisional em que se encontra o paciente, assim como se o estabelecimento está com ocupação superior à capacidade e se dispõe de equipe de saúde“. Bretas terminou por conceder o direito ao preso.
Coube então ao Ministério Público Federal recorrer, encampando a tese punitivista. Insistiu em manter o doleiro preso alegando, entre outros argumentos, que “a Recomendação 62/2020 não autoriza a soltura indiscriminada de réus presos em razão da pandemia do novo coronavírus, devendo-se considerar circunstâncias como a gravidade do delito praticado, o grau de risco que a liberação do preso traz para a ordem pública, a situação do estabelecimento prisional e as condições de saúde do preso, dentre outras“.
O recurso do MPF foi acatado no Tribunal Regional Federal da 2ª Região pelo desembargador Abel Gomes. A prisão domiciliar, porém, foi garantida por um Habeas Corpus da defesa do doleiro no STJ, em decisão do ministro Rogério Schietti Cruz. O principal argumento foi de que não caberia Mandado de Segurança, como impetrado pelo MPF no TRF-2, mas sim recurso.
Não satisfeitos, os procuradores da República foram ao Supremo, com uma Reclamação ao ministro Gilmar Mendes. Perderam mais uma vez e o doleiro continua em prisão domiciliar. Isolado, correndo menos riscos de ser infectado. O que não aconteceu com o ex-deputado mantido na prisão, infectado ali dentro e que no final da tarde de domingo (12/07) teve seu corpo cremado. Condenado a 13 anos e 9 meses, acabou punido com pena de morte. Apesar de a legislação brasileira não a admitir.
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