Propostas para as ereções
"Imaginando saídas na atual conjuntura eleitoral do Brasil"
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Existe um conto de Italo Calvino, “A decapitação dos chefes”, no qual se propõe um novo modelo de sociedade, uma utopia tangível, pode-se dizer, que consiste em um sistema político baseado no abate ritual de toda a classe dominante, a intervalos regulares. Não é um ato orientado pelo ódio, nem pela demonstração da vileza dos chefes, é o destino que toda autoridade aceita, é a base de sua própria legitimidade, ser generosamente degolado ao terminar seu mandato. Só os chefes podem ser decapitados, por isso não se pode querer ser chefe sem querer ao mesmo tempo o corte do machado – diz um dos personagens do conto. De modo que todas as pessoas trabalhadoras se encontram nas praças para ver, sentindo a alegria que geram as artes de encontro público, as cabeças esquartejadas de seus chefes.
O poder, nessa perspectiva, fundamenta-se na espera de ter finalmente a cabeça voando pelos ares.
“Toda a autoridade de que se usufrui é apenas o prenúncio da lâmina que assobia no ar, e se abate com um corte seco, todos os aplausos são apenas o início daquele aplauso final que acolhe a cabeça rolando pelo oleado do palanque”.
A ficção nos proporciona uma alternativa para o próximo segundo turno das eleições presidenciais no Brasil. Um escape sensato no labirinto da realidade, a imaginação literária como fuga política possível. De maneira que possamos avançar na construção de uma sociedade igualitária em que o poder fosse regulado pelo assassinato periódico dos chefes eletivos. Seria uma colorida e alegre festa popular, com as bandas municipais de música tocando nas ruas iluminadas pelo sol, as crianças fantasiadas de fofos carrasquinhos, com barraquinhas vendendo chaveiros-guilhotinas, algodão doce e cerveja artesanal gelada para comemorar o exercício do poder de baixo para cima. Gramsci estaria orgulhoso de todos nós, exercendo a soberania que se materializa nos raios brilhantes da lâmina afiada.
Haverá detratores e reclamações. Alguns profetas do republicanismo apoltronado, os liberais de varanda afastados dos campos de combate, dirão que “aqui não precisamos dessas práticas violentas. Só deus pode tirar os governantes da cadeira. Somos democratas civilizados, aqui a escravidão já foi superada, não existe racismo, não existe «fome para valer», não houve ditadura, aqui «em lugar de dar o peixe ensinamos a pescar», nossas regras de jogo são justas, baseadas no princípio de que «boi que chega primeiro bebe água limpa». A Amazônia segue intocável, «os indígenas estão evoluindo, agora são seres humanos iguais a nós», devemos respeitar as práticas tradicionais que têm fundado nosso país”.
Boa tentativa argumental, colegas do centrão. Vamos considerar essas advertências, a pluralidade de vozes acima de tudo. Então vamos continuar, de fato, respeitando as práticas tradicionais. Vamos adotar, em lugar da ficção de Italo Calvino, a antiga prática do canibalismo Tupinambá. A antropofagia, patrimônio culinário de nosso país, costuma-se realizar sobre nossos inimigos, e sabemos bem que todos nós, aqueles que ganhamos o pão com o suor de nosso rosto, desde nossa primeira linha do combate diário, vemos um amplo repertório de inimigos, ou seja, um variado cardápio disponível. A dificuldade é que o princípio orientador do canibalismo Tupinambá consiste em devorar o inimigo para obter sua força e suas qualidades. Os antagonistas são capturados segundo sua dignidade guerreira. O problema, no fim das contas, é que nossos adversários carecem de virtudes, são incultos, insensíveis, mesquinhos e desprezíveis. Não têm aquele tempero saboroso que dá uma vida tormentosa, sua vida ancorada nos privilégios tem deixado sua carne insípida. Para que fique bem claro, não têm alcançado sucesso ganhando-se nosso respeito como adversários. Isso faz com que a proposta antropofágica não seja válida. Não dá para experimentar a carne daqueles que são casos perdidos, não estão à altura de nossa força moral, de modo que ao serem ingeridos podem nos intoxicar. São corpos envenenados, têm levado uma vida podre.
Mesmo descartando essa proposta, sabemos que haverá reações, como é de se esperar, as reações dos reacionários. Dirão que isso é impensável, segundo eles porque pode “alterar a ordem pública” e, principalmente, porque “nosso presidente é imorrível, imbroxável e também incomível”. Também contávamos com receber essas réplicas. Têm nos solicitado que a “ordem pública”, umas das ficções preferidas impulsionadas pelo estado, não pode ser alterada. Este texto já está parecendo uma aberta guerra de ficções. Aliás a ficção de “ordem pública” é ainda mais abstrata e nebulosa que aquela outra ficção do “inimigo interno”, que serve para combater todas aquelas inconformes, rebeldes, desobedientes, revoltadas, aquelas criaturas incapturáveis pelo disciplinamento dos chefes. Ou seja, já podem inventar alguma coisa melhor (falei que eram medíocres?), já ninguém acredita nessas suas ficções autopersuasivas da branquitude rica. Mas agora que estão falando da condição “imbroxável” do presidente, e de novo invocando as práticas tradicionais, oferecemos uma boa proposta para o jogo, neste caso, das ereções na atual conjuntura política.
A expressão “homem imbroxável” é abertamente uma ameaça. É a força do estereótipo como ameaça de cumprir um modo de ser masculino, uma forma pouco criativa, pouco inspiradora e triste de ser homem (mas o que é ser homem em uma sociedade patriarcal, machista e desigual?...bom, isso fica para outro debate. Resumindo, podemos pensar que é mais uma das paixões tristes no labirinto da luta de classes). E para me opor a tal ameaça, proponho então uma digna alternativa para esta época de estrondosas campanhas eleitorais.
O escritor colombiano, R.H. Moreno Durán, em uma palestra de 2004 chamada Prazeres da palavra furtiva, apresentada no encontro de tradição oral na cidade caribenha de Valledupar, mostra que os indígenas Chibchas, que ocuparam as montanhas andinas próximas da atual capital Bogotá, tinham uma forma particular de se relacionar com o poder. Os cronistas espanhóis que presenciaram os procedimentos de sucessão do poder Chibcha, especialmente Juan de Castellanos que fez o registro como testemunha, ficaram apavorados, seus olhos europeus, sequestrados pelas trevas do século XVI, não estavam preparados para tanta criatividade tropical. Um código ancestral obrigava os candidatos inscritos na eleição popular a se reunirem perante todos os habitantes da aldeia, a fim de submetê-los a uma prova tão desafiante e provocadora, que só poderia finalizar em uma decisão incontestável. Os candidatos, totalmente nus e bem dotados na sua genitália pendular, deveriam sair e aproximar-se dos corpos nus das mulheres líderes da aldeia, geralmente as mais corajosas, que eram no fim das contas, as mais lindas. Todos aqueles que não conseguissem conter sua ereção eram eliminados da disputa. Para satisfazer o liberalismo “bem-pensante”, esta proposta não envolve violência nem sangue, apenas aquela que é bombeada no corpo cavernoso do pênis fazendo avermelhar a glande, sinal indiscutível de eliminação eleitoral.
De modo que todos aqueles que não conseguissem conter seus desejos, que sucumbisse ante o poder da concupiscência, eram indignos de ocupar um cargo de autoridade. Só poderiam ser escolhidos aqueles que conseguissem resistir perante os impulsos da carne, o poder só poderia ser conferido aos que contivessem o tesão. Isto é, a libido-imperandi, aquele ímpeto luxurioso pelo poder, aquele desejo de mando, só poderia ser aceito em aqueles broxáveis, exponentes altivos do “macarrão mole”, porque se eram capazes de mitigar as efervescências do sexo, como não o fariam com as ideias?
Assim sendo, que sejam bem-vindos os corpos em procura de equilíbrio, que sejam bem-vindos os frouxos, os flácidos e todas aquelas criaturas sábias capazes de driblar a masculinidade catastrófica e os odores fétidos de suas pulsões de morte.
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