Privacidade para os fracos, transparência para os poderosos: pela liberdade de Julian Assange
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A máxima do cypherpunk - derivação (criptográfica) de cipher (escrita cifrada) + punk - “privacidade para os fracos, transparência para os poderosos” é o que sintetiza, em última análise, a caçada ao fundador do WikiLeaks, Julian Assange. A contradição é flagrante: afinal, o que significa a tão propalada “transparência” das democracias? Ou, mais precisamente, o que é isso, transparência?
Uma coisa parece clara: com a transferência avassaladora de dados que diariamente entregamos às grandes corporações toda vez que acessamos um site, frequentamos redes sociais, visitamos lojas virtuais, assistimos um filme ou ouvimos uma música, sabemo-nos cada vez mais vigiados; mais invadidos, mais controlados pelos algoritmos. A ideia central já não é a de nudez, mas a de transparência absoluta. A nudez constrange, a transparência sintetiza a ideia de vitrine, passa a ideia de que tudo está à venda. Assim, tudo o que é privado, do quadro pendurado na parede do quarto à reação alérgica de um filho, torna-se assunto público. Simbolicamente, essa utopia da vitrine que nasce com a ciência moderna degenera na noção política de transparência como obsessão em nossos tempos.
Com uma única diferença: para os civis, a transparência converte o espaço privado em público, sob uma falsa noção de privacidade; para as instituições de poder, a transparência converte o espaço público em privado, sob uma verdadeira noção de privacidade. Não se acessa o coração do poder como se acessa a casa de um cidadão. É aqui que mora o perigo. Esse é o cerne da filosofia do WikiLeaks: acessar o coração do sistema do mesmo modo que ele se apodera de centenas de milhares de almas.
No último dia 10 de junho o presidente Lula fez a seguinte publicação no Twitter:
“Vejo com preocupação a possibilidade iminente de extradição do jornalista Julian Assange. Assange fez um importante trabalho de denúncia de ações ilegítimas de um Estado contra outro. Sua prisão vai contra a defesa da democracia e da liberdade de imprensa. É importante que todos nos mobilizemos em sua defesa” (7:28 PM · 10 de jun de 2023).
A extradição de Julian Assange, fundador da WikiLeaks, para os EUA simboliza a erosão da democracia e coloca em evidência sua maior contradição: o roubo gradual, metódico e sistemático da noção de cidadania. A propalada “transparência” da vida contemporânea, fica claro, é apenas um conceito aplicado à população, nunca ao poder. E possui um sentido óbvio de espoliação da vida em todos os seus ângulos. Aos poucos, vamos compreendendo que a parafernália tecnológica que circunda nossas vidas, para além dos benefícios da praticidade e conforto, traz consigo a contrapartida de entrega total de nossas vidas por meio dos dados. Deste modo, estamos todos constrangidos a ser o doutor Fausto do capitalismo tardio: vendemos nossa alma por informação/conhecimento; entregamos nossa subjetividade pela autopromoção das redes sociais que chega via comentário e curtidas. A cada vez que assinamos o “termo de uso e política de privacidade” de um site, renovamos, por assim dizer, o pacto com o diabólico projeto imperialista.
Mas, repito, essa “característica” da transparência se dá apenas no plano civil. Nos altos escalões do poder, esta “ruptura” de paradigma histórico parece não lhe dizer respeito. Como há muito aprendemos nos livros de História, o poder segue agindo nos planos subterrâneos, obscuros, trancados a sete chaves. Os vazamentos promovidos pela WikiLeaks colocam-nos diante da maior descoberta política das últimas décadas: evidenciam a existência de poderes paralelos que, desde os porões, comandam as democracias nas superfícies, estas não passando de mera encenação. Trata-se de uma democracia performática.
Dentre os segredos revelados pela organização, destacam-se: “O manual do exército dos EUA para a prisão de Guantánamo; os Ataques aéreos a civis em Bagdá (https://www.youtube.com/watch?v=QkzQhO3VG4U); o Diário de guerra do Afeganistão; os Registros da guerra do Iraque; o “cabogate”: documentos da diplomacia estadunidense; os Arquivos de Guantánamo; Políticas de detenção em Guantánamo e Abu Ghraib; Espionagem na Europa; Espionagem a Netanyahu, Berlusconi e Ban Ki-moon; os e-mails de Hillary Clinton.
A prática de atividades ilegais de monitoramento a países considerados “amigos”, como o que ocorreu durante a gestão Dilma entre 2013 e 2015, em que a WikiLeaks divulgou uma série de conversas telefônicas entre a presidenta e seus principais assessores, apenas confirmam o modus operandi dos EUA e seu protagonismo quanto ao boicote das democracias pelo mundo.
A prisão de Julian Assange, assim, atinge não somente o jornalismo sério e bem feito, dedicado a trazer ao grande público o que o governo dos Estados Unidos quer omitir da população, como implica um ataque frontal à democracia. A gravidade dos conteúdos vazados não dão margens a dúvidas: o silenciamento de um significa o silenciamento de todos.
É preciso, diante do horizonte que se avizinha - a severa punição da verdadeira imprensa e um golpe à democracia - a existência de uma coalizão de forças no sentido de deter esta perigosa afronta à liberdade e à verdade. Contra o repertório relativista e neutral de informações, impulsionado pela inteligência artificial, que ameaça substituir o jornalismo autoral e instalar a confusão como paradigma predominante da desinformação, sair em defesa de Julian Assange significa sair em defesa da própria liberdade enquanto ideal supremo dos governos democráticos.
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