Primeira semana sugere que os russos chegaram à Ucrânia para ficar muito tempo
"Há combates sérios e localizados, mas não parece haver uma nítida linha de resistência", escreve o colunista Mario Vitor Santos
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Neste momento, já é possível arriscar algumas hipóteses sobre os caminhos do conflito na Ucrânia, sempre tendo em conta que um cenário de combates implica eventos inesperados e reviravoltas imponderáveis.
As forças russas avançam lentamente e encontram nenhuma ou pouca resistência ucraniana. Ao que parece, os sistemas mais pesados de defesa do país são inexistentes, estão destruídos ou são reservados para uso posterior, não se sabe para que momento mais relevante do que esse, talvez um possível assalto definitivo a Kiev. Os russos manobram com todo o tempo, liberdade e conforto de que precisam para selecionar alvos, no ritmo do que foi planejado ou improvisado pelo comando. A Rússia avança ou não, no tempo e na velocidade que quiser. Há combates sérios e localizados, mas não parece haver uma nítida linha de resistência.
Ao que parece, não há pressa alguma. A Rússia desfila seu armamento e progride para dominar o país com uma rapidez diferente da que apresentou na Chechênia ou do que os americanos encenaram com choque, pavor e mídia embarcada no Iraque. Com lentidão, que pode ser interpretada como cautela, mas também como medo, as maiores cidades do país, como Kharkiv e a capital Kiev, vão sendo cercadas.
Os russos parecem deixar espaço para os civis ucranianos se abrigarem ou fugirem pela fronteira, especialmente neste caso os homens em idade de combate e que estão obrigados a se apresentar para lutar junto às tropas de seu país. A intenção parece ser minimizar vítimas de todos os lados. As consequências psicossociais e políticas de um banho de sangue estão presentes logo ali.
O avanço e o cerco podem demorar semanas, senão mais. Sem serem seriamente contidos, os russos se dão ao luxo (ou ao desconcerto) de manter uma coluna de veículos militares de mais de 64 quilômetros de extensão. Exposta, ela avança devagar, sem aparentemente temer ataques da artilharia, dos drones ou da força aérea ucraniana. São centenas de veículos armados, tanques, peças de artilharia e caminhões de apoio.
Uma estrutura assim tão extensa e relativamente estática seria alvo fácil para uma aviação nacional, mas pelo jeito essa defesa parece simplesmente não existir ou ter sido neutralizada. Enquanto isso, os russos têm tranquilidade para ir destruindo infraestrutura militar e civil relevante, desmontar bolsões de resistência, e ir estendendo sua própria parafernália de suprimentos e equipamentos para comando e controle da campanha.
Dessa coluna que marcha para Kiev e do estilo semelhante da progressão em outras frentes alguém poderia ter ideia dos objetivos da marcha russa. É certo que Putin deseja dar tempo para que haja em todos uma decantação política da superioridade militar e estratégica, por ora, ao menos. Há versões de que esse avanço lento se dá porque estão agindo as forças da resistência ucraniana que alguma hora ensejará, presume-se grandes estragos de parte a parte. Outras versões apontam problemas diversos de logística e coordenação russa. Afinal, o que acontece? Cálculo, resistência ou imperícia? Os sinais apontam mais para a primeira alternativa.
Mais importante, porém, é observar as premissas de operação tão lenta, volumosa e aparentemente cautelosa. Os russos vieram para depor o governo, ou obter concessões definitivas, nada mais importa nesse momento. Com ou sem queda de Zelensky, ou levante militar ucraniano, eles almejam a recusa eterna de qualquer vínculo recente ou futuro com a Otan. Além disso, pode ser que os russos estejam lá para ficar por bem mais tempo do que uma mudança de regime. Se conseguirem e seus adversários internos e externos permitirem.
Os pressupostos dessa campanha talvez incorporem algum nível de fusão da Ucrânia em parte ou no todo à Rússia, a partir, mas sem necessariamente reproduzir, a experiência da incorporação da Crimeia em 2014. Há aspectos culturais e versões históricas a embasar diversos pleitos, como o líder russo lembrou em seu pronunciamento de 21 de fevereiro. Mais do que isso, talvez a ideia por trás da lenta campanha e da aparente relativa intenção de minimização dos estragos humanos e materiais até agora seja a ideia (talvez irrealista) de uma fusão econômica e até militar (daí o chamado direto de Putin pela rebelião), aí sim relativamente rápida, das estruturas dos dois países. Se essa se mostrar uma especulação realista, estaria aberta uma espécie de lenta “digestão” do sentimento anti-russo que vicejou no país nos últimos anos e chega agora ao auge. Os russos estão na Ucrânia para um experimento de grandes proporções capaz de reconfigurar a geopolítica global e reposicionar a Rússia ou as Rússias, no mundo, a começar pela Europa.
A Ucrânia, desde o trauma (para Moscou) da dissolução da União Soviética em 1991, sempre esteve ali ao lado, apetitosa e fácil, a atiçar as mágoas e o desejo da Rússia grande e ferida. Agora, Vladimir Putin acredita ter visto as condições para tentar esse acerto de contas com o passado, para de algum modo resolver a situação de uma Ucrânia autônoma, fora da Rússia, uma realidade que o líder russo disse já considerar uma página virada. Pode ser que sim, pode ser que não.
Sanções, crise econômica, impopularidade na Rússia e principalmente uma guerra prolongada podem vir a minar a reengenharia nacional de Putin. Se tudo der errado, ele não sobreviverá nem entre as matrioskas da rua Arbat. Se tudo der certo, provavelmente a Praça Vermelha um dia terá que providenciar um outro mausoléu.
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