Por uma política de defesa soberana e independente

Ao contrário do que se divulga acriticamente, os governos do PT sempre enxergaram as forças militares como parceiras estratégicas

Lula
Lula (Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil | Presidência da República)


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A realização do 1º Seminário Internacional de Doutrina Militar Terrestre, feita sem a presença de uma delegação da China, principal parceiro econômico e comercial do Brasil, seguida de um convite para que militares chineses visitassem o País, colocou na ordem do dia um debate sobre a política de defesa brasileira.

Afirmou-se, em certos meios, que os militares brasileiros têm uma política externa própria, diferente da política externa do governo.

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Não é bem isso. Mas é fato que a política de defesa explícita atual não se coaduna bem com a política externa do terceiro governo Lula. Também tende a não criar sinergias com outras políticas estratégicas, como a política de fomento à industrialização.

Isso causa alguma preocupação, nos meios acadêmicos que debatem esses temas.

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A política externa e a política de defesa precisam ser complementares e produzir ampla sinergia.  A persuasão diplomática tem de estar articulada com a dissuasão estratégica.

Em conjunto com a política externa, a política de defesa constitui o que se chama de a “Grande Estratégia”, a qual determina a inserção do país no mundo.  

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Portanto, a plena projeção dos interesses estratégicos do Brasil no cenário internacional não pode prescindir de uma política de defesa sólida, que aponte na mesma direção da política externa.

Pois bem, a política externa do atual governo, resultado da revisão da política anterior, feita no período da transição, é uma política universalista, centrada no multilateralismo, na multipolaridade, na busca da paz, do desenvolvimento e da construção de uma ordem mundial mais simétrica, na qual os interesses do Brasil e do chamado Sul Global sejam adequadamente representados.  

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Trata-se, por conseguinte, de uma política que rejeita a lógica arcaica e destrutiva da nova Guerra Fria, que os EUA e alguns aliados, infelizmente, tentam impor a outros países. Em sentido inverso, essa nova política externa brasileira trabalha com a lógica do não-alinhamento a nenhuma potência e da afirmação independente dos interesses brasileiros, num ambiente de ampla e diversificada cooperação internacional.

Entretanto, a atual política de defesa, que não foi revista explícita e sistematicamente na transição, ainda parece se guiar por alguns parâmetros já superados.

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Na realidade, a atual política de defesa ainda parece ser, na sua essência, a mesma política concebida nos governos Temer e Bolsonaro. E essa política, se não revista, poderia vir a atritar-se com a nova política externa, dadas suas características básicas.  

Com efeito, após o golpe de 2016, a política de defesa do Brasil passou a exibir sinais de alinhamento estratégico aos interesses dos EUA.  

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Assim, as forças armadas brasileiras foram incorporadas como forças auxiliares ao Comando Sul (SOUTHCOM) dos EUA, e o Brasil foi declarado aliado extrarregional da Otan. Ao mesmo tempo, essa política passou a apostar na relação com os EUA e alguns aliados, como forma de o Brasil ter acesso a tecnologias relevantes. Foi também a partir dessa época que o Brasil começou a convidar militares dos EUA (mas não de outras potências) a participar de exercícios militares na Amazônia.

A inserção no Comando Sul, em particular, é amplamente questionável.  

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O Comando Sul tem como tarefa fundamental implementar a política de segurança dos EUA nas Américas Central e do Sul e no Caribe.  

Um dos objetivos dessa política de segurança dos EUA para a região é pressionar as forças armadas desses países a cooperar com o combate ao tráfico de drogas, o que já provocou danos enormes às forças armadas da Colômbia e do México. Outro grande objetivo é o de possibilitar intervenções para combater o “terrorismo” e impedir a influência de “outras potências” na região.

Tal alinhamento exigiria, assim, que o Brasil descarte cooperação militar com países vistos como rivais pelos EUA ou ainda que tenha política de defesa verdadeiramente autônoma, baseada em seus próprios interesses, os quais não são sempre coincidentes com os dos EUA ou de outros países.

Como assinalou o comandante do SOUTHCOM, almirante Craig Faller, em depoimento ao Senado dos EUA, no início de 2020: “Se os governos da América Latina e do Caribe continuarem a usar sistemas chineses de informação, nossa habilidade e capacidade de compartilhar informações em rede será afetada.”  

Trata-se, portanto, de uma “cooperação” que demanda a exclusão de outras cooperações.

O alinhamento estratégico das forças armadas do Brasil aos EUA, propiciada pela entrada no Comando Sul, foi reforçada com a nova condição do país de aliado extrarregional da Otan, que deverá propiciar a extensão da jurisdição daquela organização do Atlântico Norte para as águas do Atlântico Sul, onde se localiza o pré-sal.

Desse modo, a política de defesa do Brasil se converteu, em certo sentido, numa política subsidiária da política de segurança dos EUA, guiada pela lógica da nova Guerra Fria, em detrimento potencial de seus interesses próprios e diversificados, na área da defesa.

Em síntese, enquanto a nova política externa aponta em direção à multipolaridade, à diversificação das parcerias estratégicas e à afirmação de interesses próprios, a política de defesa ainda aponta no rumo equivocado do alinhamento em relação aos interesses de uma potência mundial, da consequente restrição das parcerias estratégicas e da baixa representação dos interesses soberanos do Brasil.

Esse descompasso entre política de defesa e política externa também se verifica, como já mencionado, no que tange à política de desenvolvimento industrial e tecnológico.

A esse respeito, deve-se enfatizar que a política de defesa desempenha um papel fundamental, em muitos países, de estímulo à inovação tecnológica e à produção industrial.  

Na realidade, em boa parte dos países desenvolvidos, a indústria vinculada à defesa nacional, inclusive a aeroespacial, é a grande propulsora do desenvolvimento científico e tecnológico nacional. De fato, na Rússia, na França, nos EUA, no Reino Unido, etc., a indústria de defesa tem sido fonte inesgotável de inovação tecnológica. A maioria delas é de uso dual, isto é, tem também uso civil, de modo que se espraia por vastos setores da indústria, num processo conhecido como spill-over, o qual aumenta a competitividade geral da economia.

Não obstante, esse efeito benéfico sobre a economia só funciona quando a base industrial da defesa tem um elevado grau de nacionalização dos produtos ofertados.

Pois bem, em 22 março de 2017, no governo Temer, Brasil e EUA assinaram o Acordo Mestre de Troca de Informações (MIEA, na sigla em inglês. Trata-se, neste caso, de um acordo “guarda-chuva”, que permite e prevê trocas de informações sobre tecnologia da defesa, com vistas ao desenvolvimento de “produtos binacionais”.

Como complemento a esse acordo “guarda-chuva”, foi firmado, no governo Bolsonaro, o Acordo para a Pesquisa, Desenvolvimento, Teste e Avaliação de Projetos em Matéria de Defesa (RDT&E, no acrônimo inglês).

Segundo a justificativa oficial, os instrumentos assinados com os EUA possibilitariam o acesso do Brasil ao bilionário fundo norte-americano para o desenvolvimento tecnológico da defesa (cerca de US$ 100 bilhões anuais) e o desenvolvimento de “produtos binacionais” em armamentos.  

Evidentemente, ninguém tem nada contra a cooperação com os EUA ou com qualquer outro país, nessa área sensível e estratégica.  

Mas considerar que essa cooperação poderá substituir um esforço tecnológico próprio e relativamente independente é uma aposta ingênua e perigosa.

Todo o mundo sabe que os EUA, assim como a maior parte dos países, não compartilham tecnologia relevante, a não ser para aliados escolhidos a dedo e em casos excepcionais, quando esses aliados estão envolvidos em conflitos de interesse direto dos norte-americanos, casos de Israel e Taiwan, por exemplo.

Ademais, os EUA impõem exclusividade e poderiam usar desses acordos para obstaculizar o estabelecimento de laços de cooperação com países que do Departamento de Estado vê como rivais.  

É, por isso, aliás, que, para usar a nossa base de Alcântara, os EUA impuseram um acordo de salvaguardas tecnológicas, que prevê não apenas a proibição de repasse de tecnologia espacial norte-americana ao Brasil, mas também várias “salvaguardas políticas”, como a proibição de que o nosso país coopere com outros países para obtê-la.

Nesse contexto, a aliança militar e tecnológica a ser consolidada pelo MIEA e o RDT&E poderia representar uma renúncia ao desenvolvimento tecnológico relativamente autônomo e uma aposta numa relação de dependência econômica e tecnológica com os EUA para o seu reaparelhamento.  

Essa opção por uma certa subalternidade parece obedecer a dois fatores básicos.

Um é o político-ideológico. Setores mais conservadores das Forças Armadas aparentemente tornaram-se hegemônicos a partir de 2016 e, particularmente, com a ascensão de Bolsonaro. Esses setores, ainda caudatários da antiga Guerra Fria, consideram o alinhamento com os EUA algo natural e desejável, no quadro de disputa geoestratégica entre esse país e outras potências, como China e Rússia. Fizeram, assim, uma “opção” desnecessária contra os BRICS e contra uma política de defesa relativamente autônoma, baseada em interesses nacionais próprios e na afirmação da soberania.

Mas há também o fator econômico. Segundo o documento oficial “Cenário de Defesa 2020-2039”, “as demandas reprimidas, bem como a limitação orçamentária imposta pelo Novo Regime Fiscal (Emenda Constitucional nº 95), ampliarão a obsolescência e inviabilizarão a configuração das atuais Forças Armadas em padrões de potência militar de médio porte (como França, Reino Unido, Alemanha, por exemplo)”. Desse modo, as próprias Forças Armadas previram um cenário de desinvestimentos e obsolescência tecnológica, que deverá perdurar por décadas.

Observe-se que as empresas da nossa base industrial de defesa passam por conjuntura muito difícil e algumas, como a Avibras, estão à beira da falência.

O fator político-ideológico será difícil de ser combatido. O fator econômico, porém, pode ser enfrentado, no contexto de uma nova política econômica que possibilite investimentos significativos na base industrial de defesa e em produtos estratégicos.  

No que tange a esse tema, é necessário assinalar que os primeiros governos do PT foram uns dos que mais investiram em Defesa. Dessa maneira, o orçamento da Defesa subiu de R$ 25,8 bilhões, em 2003, para R$ 81, 9 bilhões, em 2015.  

Ao contrário do que se divulga acriticamente, os governos do PT sempre enxergaram as forças militares como parceiras estratégicas, na construção de um país soberano e desenvolvido.

Não será diferente agora.  

Porém, para que tal construção ocorra, as políticas externa e de defesa, assim como as políticas industrial e de desenvolvimento tecnológico, precisam ser complementares e sinergéticas. Sobretudo, precisam apontar, todas elas, para o rumo correto da soberania e da independência.  

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