Por uma nova Constituinte, que refaça o ambiente político do país
Uma repactuação das condições de funcionamento da República, depois do fracasso do ajuste, poderá ser iniciada por uma Reforma Política profunda ou, o que seria até melhor -dependendo da profundidade da crise- por uma nova Constituinte, que refaça o ambiente político do país
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Parto do pressuposto que a crise global do capitalismo, hoje, tem como fundamento o fato histórico-universal que o capital financeiro -a reprodução infinita do dinheiro independentemente da produção e do emprego- para garantir a continuidade do pagamento da dívida pública dos países que não compõem o núcleo do capitalismo -esta crise global- demanda reformar negativamente o Estado Social, para torná-lo menos público e mais privatista. A diluição das formas políticas tradicionais da modernidade democrática, que encontraram na vertente socialdemocrata as suas expressões mais sólidas, se dissolvem no ar rarefeito das reformas do “rentismo”, que relembram um episódio relatado num livro de Antonio Tabucchi.
Este Estado Social fortaleceu-se no pós-guerra e proporcionou -inclusive em países como o nosso- certas melhorias nas condições de vida dos trabalhadores e dos excluídos, em determinadas condições favoráveis, que não podem ser mais mantidas conjuntamente com o pagamento da dívida pública, tal qual ela está estruturada. A relação dívida/PIB, dos EUA, por exemplo, é grotescamente mais dramática do que a nossa, mas ele se endivida através do dinheiro que imprime, o que torna os seus Fundos Públicos praticamente infinitos. E eles não só são garantidos pelo seu Poder Militar e pela propriedade das principais fontes de energia fóssil do mundo, pelas suas empresas, como também seus poderes são ampliados pela intervenção permanente dos seus sucessivos Governos, na economia mundial e também na sua economia interna, através da manipulação das taxas de juros, que arbitram segundo as suas necessidades.
Os macro movimentos atualmente feitos na esfera da grande política em nosso país, numa época em que os golpes militares se tornaram supérfluos para o controle do poder político -para as distintas forças que cortejavam os militares nos momentos de crise- visam nos integrar numa nova etapa da globalização, depois que os bons preços das “commodities” deixaram de financiar o funcionamento do Estado. Neste período as Constituições Sociais devem perder sua força normativa, que deve ser substituída pela força normativa plena do capital financeiro, necessitado de ocupar por inteiro, tanto o espaço do jurídico, como do político, para garantir aquela reprodução infinita do dinheiro, através da manipulação “perfeita” da dívida pública. A PEC 241\55 é o seu instrumento jurídico e a deposição da Presidenta Dilma foi o momento político decisivo para integrar o Brasil neste novo ciclo.
Num momento de falência do chamado socialismo-real e de crise de viabilidade histórica da social democracia, em regra absorvida pelos padrões liberais do capitalismo rentista, o ajuste não obedece aos padrões tradicionais dos acordos da sociedade industrial clássica, onde os sujeitos visíveis -organizações operárias formais e organizações burguesas da indústria- pactuavam “saídas” em nome de toda a sociedade. O surgimento de uma constelação de sujeitos formais e informais numa uma sociedade fragmentada -novos tipos de exclusões e necessidades, novas demandas por direitos- crise do sindicalismo mais corporativo, novos processos do trabalho e impotência das formas democráticas tradicionais de resolução dos conflitos -tudo isso- chama e facilita as soluções atípicas.
É um cenário completado pela formação do partido das mídias, pela judicialização da política, criminalização genérica dos partidos e destruição -com ou sem razão- das lideranças políticas tradicionais. O ambiente histórico é favorável, portanto, tanto às emergências de um fascismo “societal”, como de um “black-blockismo” destrutivo, que facilita o trabalho da repressão estatal que, por sua vez, ajuda a emergência do fascismo no seio do próprio Estado de Direito, debilitado pelos elementos de exceção, já presentes nos inquisitórios penais em curso.
“Acho que é um sítio pós-moderno”, responde um Vendedor de Histórias para o poeta-personagem de Tabucchi que lhe pergunta -num tórrido domingo de Lisboa- onde teria um razoável restaurante -naquele cais de Alcântara- onde pudesse saciar sua fome. Ao que o Vendedor de Histórias responde, indicando o restaurante, depois de questionado sobre qual o significado da designação de “pós-moderno”, destinada a este: “olhe, é um restaurante com muitos espelhos e com uma comida que não se percebe bem o que é, enfim, é um sítio que rompeu com a tradição, recuperando a tradição, digamos que parece o resumo de várias formas diferentes, nisso a meu ver consiste o pós-moderno”.
É uma passagem do livro “Requiem”, ficção de Antonio Tabucchi, nascido em Pisa (1943), falecido em Lisboa em 2012, um dos grandes novelistas europeus contemporâneos e atento observador político do seu país. Justa ou injustamente, Tabucchi não perdoava Mássimo D’Alema -dirigente à época dos Democratas de Esquerda- (partido sucessor do Partido Comunista Italiano) por supostamente ter feito um pacto de cavalheiros com a direita do seu país, para uma reforma política que, fragmentando a esfera político-parlamentar italiana, permitiu a emergência -depois do terremoto das “mãos-limpas”- do cavalheiro Berlusconi. Seria como se Antônio Callado renascido, dissesse que Fernando Henrique pariu e criou Temer, gestou e fez nascer o golpe pós-moderno, que derrubou a Presidenta Dilma.
A situação que estamos vivendo no Brasil é de “muitos espelhos” -como na ficção de Tabucchi- que possibilitam muitas leituras: ela veio de um grande movimento, agendado pelo oligopólio da mídia, que “acordou o Brasil” contra a corrupção e levou ao poder -no pós-golpe- a união da parte mais investigada e processada por corrupção, originária do Governo deposto, unida à parte mais processada e investigada da oposição, viabilizada pelo Congresso massivamente investigado por corrupção. “Não se percebe bem o que é” -como prossegue o personagem de Tabucchi- porque, se é verdade que estão em curso investigações e processos importantes contra a corrupção, parte destes processos se transformaram em armas políticas, midiatizadas em formas ilegais de persecução criminal dignas de situações de exceção, que colocam fragmentos do Ministério Público e da Justiça Penal como tutores e feitores dos partidos e da esfera da política, subordinando-os a que façam o brutal ajuste rentista, que está em curso.
E a lembrança mais precisa que traz o texto de Tabucchi vem da seguinte palavra do Vendedor de Histórias: é “um sítio (lugar) que rompeu com a tradição recuperando a tradição (…) que parece o resumo de várias formas diferentes”. Lembra as operações políticas que ocorreram no Brasil -desde a queda da República Velha- pelas quais as rupturas repõem, em nome da democracia, a violação da democracia e a denúncia da corrupção repõe a corrupção, pois sua denúncia é utilizada como mera disputa pelo poder. Não o foi para melhorar os padrões de moralidade republicana, pois o que a sucede é o uso dos “remédios amargos” -em cada período de crise do capitalismo- que mantém os privilégios da plutocracia e dos grupos dominantes, hoje politicamente orientados pelo “rentismo” e pela especulação.
Uma repactuação das condições de funcionamento da República, depois do fracasso do ajuste, poderá ser iniciada por uma Reforma Política profunda ou, o que seria até melhor -dependendo da profundidade da crise- por uma nova Constituinte, que refaça o ambiente político do país pelos dissensos resolvidos na esfera da política. Não pela política judicializada, muito menos pela criminalização massiva da politica.
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