Por um movimento das mães, esposas e filhas de Brumadinho
Que se unam as mães, filhas e esposas, principalmente, mas também as avós, irmãs, netas, primas, tias e quaisquer mulheres que perderam entes queridos em Brumadinho. Que organizem um movimento. Que ousem lutar e vencer como as mães da Praça de Maio
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Em quinze dias chegaremos a dois meses do desastre de Brumadinho, causado pela negligência da mineradora Vale para com os procedimentos de segurança de suas barragens de rejeitos de minério, que resultou no rompimento da estrutura do Córrego do Feijão, matando cerca de 300 pessoas. Até hoje foram identificados 191 corpos e 111 estão desaparecidos, no que se constitui a maior tragédia de todo o setor produtivo brasileiro, não apenas da mineração. Jamais, após a escravidão, em qualquer segmento de nossa economia algum problema resultou na morte de tantas trabalhadoras e trabalhadores.
Nesse meio tempo, o ritmo dos resgates decaiu assustadoramente (eram 160 no início de fevereiro) o que faz urgir um movimento que reivindique o não esquecimento dessas pessoas. O que o texto de hoje pretende dar é uma sugestão de organização contra-hegemônica das mulheres envolvidas no desastre, utilizando-se, é bom que se diga, de uma narrativa hegemônica de gênero, que empreendida com o devido conhecimento de causa foi extremamente eficaz na Argentina.
Neste mesmo período, muito ocorreu neste triste Brasil para que o crime da Vale, que deveria ocupar páginas e páginas de jornais durante os últimos dois meses, fosse diluído em diversos outros assombros, indignações, comoções públicas que não permitem às brasileiras e brasileiros alguns dias de trégua sequer no Carnaval, quando o presidente da República saiu tuitando pornografia e difamando a principal festa popular do país, atentando contra a cultura nacional apesar de se dizer nacionalista.
Entre um ponto e outro dessa curta trajetória, dois momentos foram marcantes: as mortes dos meninos que treinavam no Flamengo e foram atingidos pelo incêndio nos alojamentos do clube, e a igualmente aterradora morte de Arthur Araújo Lula da Silva, neto do ex-presidente e hoje preso político Luís Inácio Lula da Silva, que gerou todo o espetáculo midiático de horror e repressão ao povo brasileiro através da figura que mais o simboliza, ao qual ao menos metade do Brasil assistiu bestificada pela TV.
Ambos problemas tangenciam um mesmo tema, a família, que deveria receber a empatia dos homens e mulheres que ora ocupam o poder, visto o defenderem tão ardorosamente, mas que ao que tudo indica é apenas mais um pretexto para a nova perspectiva segregacionista do Estado brasileiro: "não todas as famílias, a minha família" (isto é, branca, de classe média, católica ou protestante conservadora, heterossexual e não monoparental). Se a família em questão são pobres das periferias brasileiras, dá-se um jeito de esquecê-las aqui e ali, com uma indenização aqui outra acolá, quando muito. Vida que segue.
Se a família, então, é a do homem que vetoriza as indignações reais e legítimas e os direitos das pessoas mais pobres, esta então deve ser não apenas esquecida, mas ocultada. Quanto menos for vista como seres humanos com sentimentos reais, despertando assim a empatia de brasileiras e brasileiros espalhados pelo país, melhor. O Lula real jamais pode deixar de ser aquele dos depoimentos à Justiça editados e editorializados pela TV: corrupto, cínico ou mesmo acuado ante os heróis de toga. Ao se tornar um avô injustiçado que perdeu o neto, ante todas as câmeras da TV, ele se torna um homem branco de classe média, o que não interessa às elites.
Tudo isso é um preâmbulo longo, porém didático e necessário, para reiterar que, das 300 pessoas mortas de Brumadinho, 111 seguem desaparecidas e, sem o noticiário acompanhando dia a dia o processo de buscas, a quantidade de corpos resgatados ao dia da lama da Vale caiu vertiginosamente. Eram cerca de 160 no início de fevereiro, isto é, em cerca de dez dias de buscas. Em um mês, foram buscados e identificados mais 30 corpos, restando ainda mais de um terço das trabalhadoras e trabalhadores soterrado.
Dois dias após o Dia Internacional das Mulheres, em que pese a luta por desconstruir a ideia obsoleta da mulher como única guardiã da família, talvez caiba a essas mulheres atingidas pela Vale buscar uma organização para que se repare injustiças e, em primeiro lugar, resgatem todos os corpos que jazem sob os rejeitos de minério da mina do Córrego do Feijão.
Tal qual foi feito contra a ditadura argentina na Praça de Maio, em Buenos Aires, em movimento muito bem retratado pelo filme argentino vencedor do Oscar "A História Oficial", é possível que um movimento de mulheres que envolva mães, esposas, avós, irmãs e filhas de desaparecidos de Brumadinho seja, ainda, mais eficaz em gerar empatia pelos valores familiares de nossa sociedade patriarcal, e assim garantir mais celeridade nas buscas e reparações pela Vale. Evocar o termo e os valores sígnicos de "família", na nossa atual conjuntura, pode ser tão decisivo em qualquer reivindicação legítima que, a título de exemplo, conseguiu tirar o Lula da cadeia e fazê-lo aparecer ao povo, ainda que por alguns minutos.
Essa coluna admite não exercer autoridade nem sobre a organização dos atingidos de Mariana e Brumadinho, nem sobre movimentos de mulheres. Lembra, contudo, que a utilização da narrativa hegemônica sobre gênero (mamãe cuida de seus filhinhos) para reivindicação social contra-hegemônica (nos devolvam os corpos dos filhos que nos tiraram) foi extremamente eficaz na Argentina. Lançou inclusive fundamentos para que fossem punidos os responsáveis pelas execuções sumárias do regime militar (o que jamais ocorreu aqui). Por isso, este espaço de discussão tenta deixar essa sugestão de combate à negligência e à tentativa de queda no esquecimento que vai-se empreender quanto às pessoas mortas de Brumadinho.
Que não reste um corpo desaparecido.
Que se unam as mães, filhas e esposas, principalmente, mas também as avós, irmãs, netas, primas, tias e quaisquer mulheres que perderam entes queridos em Brumadinho.
Que organizem um movimento.
Que ousem lutar e vencer como as mães da Praça de Maio.
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