Por quem os sinos dobram?
Nestas horas de ressaca da luta, os momentos em que refletimos ou procuramos refletir sem mágoa são raros. Não é nem que nos falte vontade. Queremos pensar, mas nos faltam as chamadas condições íntimas que nos movam e reflitam a verdade. Ficamos assim meio parados entre o desalento e a fúria, enquanto o Brasil afunda num mar fascista, sob covardia, fraude e omissão
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Nestes dias, nestas horas de ressaca da luta, os momentos em que refletimos ou procuramos refletir sem mágoa são raros. Não é nem que nos falte vontade. Queremos pensar, mas nos faltam as chamadas condições íntimas que nos movam e reflitam a verdade. E ficamos assim meio parados entre o desalento e a fúria, enquanto o Brasil afunda num mar fascista, sob covardia, fraude e omissão. Será este um sentimento tão só do autor?
Com certeza, não. O poeta Alberto da Cunha Melo bem escreveu:
“Os raros não se confessam,
têm seus biógrafos
e, quando vivos,
podem dar-se ao luxo
de ser objetivos;
como sou gente,
tenho medo
de ser diferente:
sou tão comum,
que quando falo de mim
falo de qualquer um”
Nestes dias, Ñasaindy Barrett, filha única da brava e bela Soledad Barrett, nos enviou:
"As barbáries cometidas no período da Ditadura Civil Militar de 64, que pelo resgate à nossa memória histórica lutávamos para desconstruir, restauraram-se, escapando dos frágeis e flexíveis elos que as mantinham presas ao passado para atormentar novamente no presente. Hoje, não mais apenas lembraremos; hoje lutaremos contra elas novamente..."
Então penso que nós, depois de tantas e tamanhas tormentas, não devemos nos deixar afundar nesta hora em que tudo nos grita que perdemos. Estes são os dias em que pessoas ou quase pessoas gritam raivosas, sem consciência do mais profundo abismo em que mergulham. Estes são os momentos da nossa pergunta: que povo é esse? Os versos lindos, geniais e eternos de Castro Alves nos falam:
“Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!”
Pois serão representativos os mudos negros ao lado do nazista como se fossem pessoas de figuração? Como se fossem a gente e agentes para decoração a mostrar que o fascista não tem preconceito? Que povo? Então me lembro de Vargas, que no mais profundo desespero é narrado nas últimas horas da sua vida em 1973, no romance “A mais longa duração da juventude” no trecho:
“Então, pela lógica de 1973, ele não passa de um terrorista. E feio, típico da caricatura do terror, o rosto cheio de marcas, com a legenda na foto que o enquadra como perigoso, inimigo da família brasileira. Ele não é Vargas, o homem que se sacrifica por Nelinha, Krupskaia, pela gente que não o vê na essência. Ele é o terrorista que agora treme de febre. ‘Se eu fosse um herói...’.
- Mas não sou! – ele grita.
Todos se voltam. O motorista o observa pelo espelho, e não pensa ainda em parar o ônibus na delegacia. Então Vargas vira o rosto para a janela, para o Largo da Paz, em Afogados. Que contradição entre os nomes e esta hora em que se encontra. ‘A paz dos afogados’, ele se diz, e tais palavras não são uma frase, são a imagem de um homem que remete a ele, em silêncio, afogado. ‘Isso é a febre. Para de variar, cérebro estúpido’. Populares sobem no ônibus, outros descem. ‘Como a vida e a morte. Uns sobem, outros descem... Para de variar’. O ônibus vai pela Ponte de Motocolombó. O rio sopra um vento gelado. O que antes no calor do Recife era refrigério, vira um sopro frio. Fecha a janela e se encolhe, ele não quer, mas na cadeira procura abrigo em uma posição fetal. Não quer ver as pessoas indiferentes à sua sorte no ônibus. Está só, sozinho, deserto e isolado. Volta-se para a janela fechada, onde o vidro reflete ao mesmo tempo os passageiros que cochilam e a passagem de casas na Imbiribeira. Onde fica o povo pelo qual luta? Em que lugar se acha a vanguarda popular insurreta? ‘Virá, não hoje, mas virá. O povo não é marionete a cochilar quando acorda para o mundo que é seu. Virá’. E apontando o desejo para o vidro que também reflete o seu rosto, fala:
- Isto não é uma variação. Entende, Vargas? O povo vai acordar”.
E depois, mais adiante, fora das páginas vencemos a ditadura, apesar dos seus crimes impunes. E vimos o maior presidente do Brasil, um operário que todos no mundo conhecem pelo nome de Lula.
Então me vem ao fim o poeta John Donne nestas horas em que julgamos estar sozinhos:
"Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todos são parte do continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti".
Estes dias também hão de passar. Logo mais será 2019 e os amarelos perderão sua cor.
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