Por que tantas mortes do nosso lado?

Avultam para nós os grandes, José Carlos Ruy, Wagner Gomes, Duarte Pereira, João Gilberto, Aldir Blanc, Paulo José, Tarcísio Meira. O resto é silêncio

Tarcísio Meira
Tarcísio Meira (Foto: Reprodução/TV Globo)


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Em apenas dois dias, as mortes do sindicalista Wagner Gomes, do jornalista Duarte Pereira, dos atores Paulo José e Tarcísio Meira deixaram no espírito da gente esta pergunta: por que tantas mortes do nosso lado? E mais:  com tanta gente boa de morrer do outro lado, com tanta gente do lado de lá que merece um descanso, nos perguntamos: seríamos mais vulneráveis que a direita e a extrema direita? Até parece. 

Ao nível do sentimento de perda a escavação no peito continua: 

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Por que tantas perdas em tão pouco tempo? Por que a má sorte só está soprando para o nosso lado? A revolta, diante do irracional do falecimento de tantas pessoas valorosas, não cabe no quadro geral de que nada é mais racional que a morte. Mas mesmo aí, nessa constatação conformista, existe um dose forte de irracionalidade. Pois não seria mais democrático e até para vitória da eloquência da estatística, não seria mais representativo que a morte espalhasse os seus bens por todas as raças, ideologias e credos? Por que nos mais recentes dias a morte só tem batido em nosso lado?

À primeira vista, na esquerda falecem mais os guerreiros porque são pessoas sensíveis à dor social da tragédia sob o governo Bolsonaro. Mas consideremos: se as desgraças são razões de matar, mais ainda são razões de viver. Estamos hoje todos no inferno que pode nos conduzir a um purgatório, porque para o céu mesmo não queremos ir. A saída deste inferno só depende mesmo da nossa luta. Muito bem. 

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Sabemos todos os que já passamos pelos piores momentos nesta vida, que a desgraça põe na gente um certo couro grosso para o sofrimento. Mas essa frase pode ser uma versão de pensamento positivo na esquerda. Aquela situação do guerreiro que, cercado de nuvem de flechas sobre ele, comenta: “melhor, combateremos à sombra”. Pois é fato, é elementar, que a situação geral deixa na gente, todos os dias, uma dor, uma revolta e uma indignação que fazem mal, muito mal, à gente. Eu não vou nem relacionar os muitos casos aqui, que deixam uma raiva sem tamanho contra as manifestações de racismo, de crimes, de assaltos à humanidade, que os bolsonaristas e seu chefe de gado Bolsonaro perpetram todos os dias. Como eu falava a um amigo por telefone são coisas que arrepiam a gente, e nos põem numa impotência que grita “ah se pudéssemos matar quem nos mata de modo tão vil”. 

Não estamos vacinados contra o horror que passa no presente diante de nós e por todos nós. Não temos imunidade contra o atraso medieval que se revela despudorado, cínico, impune, e no limite maior, intimidatório. Aos fascistas não basta a ação da sua animalidade, não. Querem mais: impor um silêncio à denúncia e à revolta. Percebem? É como a mãe que perde o seu filho e sente a opressão de ficar calada diante dos assassinos, porque se não...Então, isso nos mata um pouco e muito todos os dias. Mas será, tentemos ser dialéticos, será que o animal da direita, por maior demência não tenha um grão de longínqua humanidade que o destrua também enquanto nos destrói? Percebem, aquela dialética do senhor e do escravo? Talvez sim, com dialética e esperança. 

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Então pesquiso nos óbitos e descubro que têm ido para o céu figuras como Levy Fidelix, Silvio Antônio Fávero (PSL), que morreu de coronavírus, enquanto compartilhava em suas redes diversas frases do presidente em Brasília. E Stanley Gusman, apresentador de TV, aos 49 anos, que negava a pandemia. E José Roberto Martins Feltrin, do Partido Podemos, que aos 55 anos arrependido enviou um áudio a amigo relatando os momentos difíceis que estava passando em decorrência das complicações causadas pela Covid-19. E se a minha pesquisa de falecimentos de bolsonaristas não vai mais longe, é por uma razão simples, histórica, que nem mesmo o poder dos fascistas transforma. Quero dizer: os intelectuais, os artistas, os cientistas, os músicos, mestres e compositores maiores e mais brilhantes estão no campo da esquerda. Há muito tem sido assim. Para felicidade geral continua, continuará. E não preciso nem pesquisar para ver as pessoas dos cientistas Mario Schenberg, Leite Lopes, dos educadores Paulo Freire e Anísio Teixeira, do grande Josué de Castro, dos escritores Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego, João Cabral, Solano Trindade “tem gente com fome, tem gente com fome”. E os compositores Dorival Caymmi, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Vinícius de Moraes, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Geraldo Vandré, Geraldo Azevedo, Alceu Valença, Tom Jobim e João do Vale carcará, pega, mata e come. 

Então isso quer dizer: a direita é medíocre, sem brilho, o que não é o mesmo que ser estúpida, como um certo preconceito de esquerda pensava. A direita é esperta. O que ela não tem é escrúpulo, nenhum. É desonesta e bandida. Quer o poder com golpes, roubos e crimes, não importa. Daí que sua projeção social, sua ascendência artística, científica se dá fora da melhor humanidade. Daí que são apagados numa vil tristeza. Então, suas mortes não aparecem para todos. Lá entre eles fazem suas missas e registram para si, sem ressonância no mundo pelo qual vale a pena estar presente. Não aparecem. Imaginem que grande notícia: nesta data, morreu fulano, empresário que participava de motociatas. Morreu sicrano, que negava a vacina. Por isso  avultam para nós os grandes, José Carlos Ruy, Wagner Gomes, Duarte Pereira, João Gilberto, Aldir Blanc, Paulo José, Tarcísio Meira.    

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O resto é silêncio. 

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