Por que as Novas Rotas da Seda são uma "ameaça" ao bloco dos Estados Unidos
O Oriente Médio é a chave para uma integração econômica ampla e interconectada e para a paz
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Por Pepe Escobar, para o Asia Times
Tradução de Patricia Zimbres, para o 247
A enxurrada ensurdecedora e ininterrupta do ciclo de notícias, somada às erupções do Twitter, fazem com que a grande maioria dos ocidentais, especialmente nos Estados Unidos, se esqueça dos fundamentos da interação da Eurásia com sua península ocidental, a Europa.
A Ásia e a Europa comercializam mercadorias e ideias desde pelo menos 3.500 A.C. Em termos históricos, esse fluxo talvez tenha sofrido alguns percalços ocasionais - por exemplo, a invasão das planícies eurasianas por cavaleiros nômades no século V, mas ele foi essencialmente constante até finais do século XV. É possível descrevê-lo basicamente como um eixo milenar - da Grécia à Pérsia, do Império Romano à China.
Um caminho terrestre com incontáveis ramificações, cruzando a Ásia Central, o Afeganistão, o Irã e a Turquia, ligando a Índia e a China ao Leste do Mediterrâneo e ao Mar Negro, acabou por se fundir naquilo que conhecemos como as Antigas Rotas da Seda.
Por volta do século VII, os caminhos terrestres e os caminhos comerciais marítimos entraram em competição direta. E o planalto iraniano sempre desempenhou um papel central nesse processo.
O planalto iraniano, historicamente, inclui o Afeganistão e partes da Ásia Central, conectando-o a Xinjiang a leste e chegando até a Anatólia a oeste. O Império Persa baseava-se principalmente no comércio por via terrestre, sendo o principal nó entre a Índia e a China e o Leste do Mediterrâneo.
Os persas associaram-se aos fenícios da costa síria para gerir o comércio marítimo no Mediterrâneo. Empreendedores de Tiro fundaram Cartago como um nó entre o Mediterrâneo do Leste e do Oeste. Em razão de sua parceria com os fenícios, os persas, como não poderia deixar de ser, eram hostilizados pelos gregos, então uma potência comercial marítima.
Quando os chineses, ao promover as Novas Rotas da Seda, ressaltam o "intercâmbio de povo a povo" como sendo uma de suas principais características, eles estão falando do milenar diálogo Euro-Asiático. É possível que a história tenha abortado dois grandes encontros diretos.
O primeiro ocorreu depois de Alexandre o Grande ter derrotado Dario III da Pérsia. Mas então, os sucessores selêucidas de Alexandre tiveram que lutar contra a potência que então surgia na Ásia Central - os partas, que acabaram por conquistar a Pérsia e a Mesopotâmia, e usaram o Eufrates como a fronteira entre eles próprios e os selêucidas.
O segundo encontro deu-se em 116 A.D., quando o Imperador Trajano, depois de derrotar os partas, chegou ao Golfo Pérsico. Mas Adriano recuou, de modo que a história não pôde registrar o que teria sido um encontro direto entre Roma, via Pérsia, e a Índia e a China, ou o encontro do Mediterrâneo com o Pacífico.
A globalização mongol
O último trecho a oeste das Antigas Rotas da Seda era, de fato, uma Rota da Seda Marítima. Do Mar Negro ao delta do Nilo, havia uma fieira de pérolas na forma de cidades/empórios italianos, uma mistura de parada final das caravanas e bases navais, que então transportavam os produtos asiáticos aos portos italianos.
Centros comerciais localizados entre Constantinopla e a Crimeia formavam um outro ramal da Rota da Seda, que cruzava a Rússia até Novgorod, culturalmente muito próxima ao mundo bizantino. A partir de Novgorod, os mercadores de Hamburgo e de outras cidades da Liga Hanseática distribuíam os produtos asiáticos para os mercados bálticos e norte-europeus, chegando até a Inglaterra. Correndo paralelamente, as rotas do sul eram usadas pelas repúblicas marítimas italianas.
Entre o Mediterrâneo e a China, as Antigas Rotas da Seda, é claro, eram principalmente terrestres. Mas havia também algumas rotas marítimas. Os principais polos civilizacionais em questão eram agrícolas e manufatureiros. Até o século XV, na verdade, não se pensava em uma navegação oceânica contínua e turbulenta.
Os principais atores eram a China e a Índia, na Ásia, e a Itália e a Alemanha, na Europa. A Alemanha era o principal mercado consumidor das mercadorias importadas pelos italianos. Isso explica, em poucas palavras, o casamento estrutural do Santo Império Romano.
No coração geográfico das Antigas Rotas da Seda havia desertos e vastas estepes cruzadas por tribos esparsas de pastores ou caçadores nômades. Por todas essas vastas terras ao norte do Himalaia, a rede das rotas da seda servia principalmente aos quatro principais atores. Pode-se imaginar que uma imensa potência política que viesse a surgir, e que conseguisse unir todas essas tribos nômades, seria a grande beneficiária do comércio das Rotas da Seda.
Bem, foi exatamente isso que aconteceu. As coisas começaram a mudar quando as tribos de pastores nômades da Ásia Centro-Sul começaram a ser arregimentadas como cavaleiros-arqueiros por líderes político-militares como Genghis Khan.
Bem-vindos à globalização mongol que, na verdade, foi a quarta globalização da história, seguindo-se à síria, à persa e à árabe. Sob o icanato mongol, o planalto iraniano - mais uma vez desempenhando um papel de destaque - ligava a China ao reino armênio da Cilícia, no Mediterrâneo.
Os mongóis não tentaram monopolizar a Rota da Seda. Ao contrário: no tempo de Kublai Khan - e das viagens de Marco Polo - a Rota da Seda era livre e aberta. Os mongóis só exigiam que as caravanas pagassem um pedágio.
Já com os turcos, a história foi bem outra. Eles consolidaram o Turquestão, da Ásia Central ao noroeste da China. Tamerlan só não anexou a Índia porque morreu antes. Mas os turcos também não pretendiam fechar a Rota da Seda: eles queriam apenas controlá-la.
Veneza perdeu seu último acesso direito à Rota da Seda em 1461, com a queda de Trebizond, que continuava ligada ao Império Bizantino. Com o fechamento da Rota da Seda aos europeus, os turcos - que agora dominavam um império que ia do Centro-Sul da Ásia até o Mediterrâneo - estavam seguros quanto a deter o controle sobre o comércio entre a Europa e a Ásia.
Mas não foi bem assim. Porque foi então que os reinos europeus da costa atlântica produziram o Plano B máximo: um novo caminho marítimo para as Índias.
E o resto - a hegemonia do Atlântico Norte – é história.
Arrogância esclarecida
O Iluminismo seria incapaz de conter a Ásia dentro dos limites de suas rígidas geometrias. A Europa deixou de entender a Ásia, proclamou que ela não passava de uma espécie de detrito histórico proteiforme e voltou sua atenção exclusiva para terras "virgens" ou "prometidas" de outros cantos do planeta.
Todos nós sabemos que a Inglaterra, a partir do século XVIII, assumiu o controle da totalidade das rotas transoceânicas e transformou a supremacia norte-atlântica em um jogo de uma superpotência única - até que o manto foi usurpado pelos Estados Unidos.
No entanto, durante todo esse tempo, houve uma contrapressão por parte das potências centro-asiáticas. Essa é a matéria das relações internacionais dos últimos dois séculos - que culminou nos primeiros anos do século XXI naquilo que, simplificadamente, poderia ser chamado de a Vingança do Interior contra a Potência Marítima. Mas isso ainda não é a história toda.
A hegemonia racionalista europeia foi progressivamente levando a uma incapacidade de entender a diversidade - ou o Outro, como no caso da Ásia. Um real diálogo euro-asiático - o verdadeiro motor da história - vem definhando pela maior parte dos últimos dois séculos.
A Europa deve seu DNA não apenas às tão incensadas Atenas e Roma - mas também a Bizâncio. Mas, por tempo demasiado, não apenas o Oriente, mas também o Leste Europeu, herdeiro de Bizâncio, tornaram-se incompreensíveis à Europa Ocidental, quase incomunicáveis ou submersos em patéticos clichês.
A Iniciativa do Cinturão e Rota, ou seja, as Novas Rotas da Seda lideradas pela China, são um marco histórico que vira o jogo em uma infinidade de maneiras. De modo lento e seguro, estamos evoluindo para uma configuração formada pelas principais potências terrestres eurasianas economicamente interconectadas, de Xangai ao Vale do Ruhr, lucrando de forma coordenada com o imenso know-how tecnológico da Alemanha e da China, somado aos enormes recursos energéticos da Rússia.
Os frenéticos anos 2020 talvez venham a representar a conjuntura histórica na qual esse bloco consiga ultrapassar o bloco atlanticista atualmente hegemônico.
Compare-se isso ao principal e perene objetivo estratégico dos Estados Unidos, vigente há décadas: estabelecer, por intermédio de uma infinidade de formas de dividir para governar, que as relações entre a Alemanha, a Rússia e a China devam ser as piores possíveis.
Não é de admirar que na cúpula da OTAN realizada no mês passado em Londres, o medo estratégico tenha ficado gritantemente evidente nas conclamações à intensificação das pressões sobre a Rússia e a China. Esse foi o pior dos pesadelos recorrentes do falecido Zbigniew "Grande Tabuleiro" Brzezinski.
A Alemanha logo terá uma decisão sobre-humana a tomar. É como se tivéssemos aqui a retomada - em termos muito mais exacerbados - do debate Atlanticismo versus Ostpolitik. Os empresários alemães sabem que a única maneira de uma Alemanha soberana vir a consolidar seu papel como uma potência global exportadora é tornar-se uma parceira próxima da Eurásia.
Paralelamente, Moscou e Pequim chegaram à conclusão de que o círculo estratégico transoceânico dos Estados Unidos só poderá ser rompido por meio das ações de um bloco coordenado: o BRI, a União Econômica Eurasiana, a Organização de Cooperação de Xangai, o BRICS+, o Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS e o Banco Asiático de Investimentos em Infraestrutura.
O Pacificador do Oriente Médio
A Antiga Rota da Seda não era uma única rota de caravana de camelos, mas sim um labirinto de caminhos interligados. Desde meados da década de 1990, tive o privilégio de conhecer pessoalmente cada trecho importante - e então, um dia, você percebe a totalidade do quebra-cabeça. As Novas Rotas da Seda, caso venham a atingir seu potencial, prometem fazer o mesmo.
O comércio marítimo pode chegar a ser imposto - ou controlado - por uma superpotência naval global. Mas o comércio terrestre só pode prosperar na paz. Assim, as Novas Rotas da Seda têm o potencial de virem a se tornar o Grande Pacificador do Sudoeste Asiático - aquilo que a visão ocidental chama de Oriente Médio.
O Oriente Médio - lembrem-se de Palmira - foi sempre o nó principal das Antigas Rotas da Seda, o grande eixo terrestre do comércio euro-asiático chegando até o Mediterrâneo.
Durante séculos, um quarteto de potências regionais - Egito, Síria, Mesopotâmia (hoje Iraque) e Pérsia (hoje Irã) – lutaram pela hegemonia sobre a totalidade da região que vai do delta do Nilo até o Golfo Pérsico. Mais recentemente, a hegemonia passou a ser externa: otomana turca, britânica e americana.
Tão delicada, tão frágil, tão imensamente rica em cultura, a região, desde os primórdios da história e ininterruptamente, sempre foi uma zona de importância absolutamente chave. É claro que o Oriente Médio já era uma zona de crise mesmo antes de o petróleo ser descoberto (os babilônios, por sinal, já sabiam disso).
O Oriente Médio é uma escala importante nas rotas das cadeias logísticas transoceânicas do século XXI, daí sua importância geopolítica para a atual superpotência, dentre outras razões geoeconômicas relacionadas à energia. Mas os melhores e mais brilhantes sabem que não há por que o Oriente Médio continuar sendo um centro de guerra ou de ameaças de guerra que, por sinal, afetam três países do quarteto das potências regionais históricas (Síria, Iraque e Irã).
O que as Novas Rotas da Seda propõem é uma integração econômica ampla e interconectada, abrangendo um território que vai desde o Leste Asiático até o Leste do Mediterrâneo, passando pela Ásia Central, Irã, Iraque e Síria. Da mesma exata maneira que as Antigas Rotas da Seda. Não é de admirar que os interesses do Partido da Guerra sintam-se tão perturbados com essa real "ameaça" de paz.
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