Por que a Cinturão e Rota voltou com um estrondo em 2023

No momento em que a Iniciativa Cinturão e Rota chinesa entra em seu 10º ano, uma forte parceria geoestratégica sino-russa revitaliza a ICR por todo o Sul Global

Presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e da China, Xi Jinping
Presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e da China, Xi Jinping (Foto: REUTERS)


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O ano de 2022 terminou com a chamada de Zoom para pôr fim a todas as chamadas de Zoom: os Presidentes Vladimir Putin e Xi Jinping discutindo todos os aspectos da parceria estratégica Rússia/China em uma videoconferência exclusiva.

Putin disse a Xi que "a Rússia e a China conseguiram garantir taxas de crescimento recorde  em seu comércio mútuo", significando que "seremos capazes de alcançar nossa meta de 200 bilhões de dólares em 2024, antes do previsto".

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Sobre sua coordenação visando a "formar uma ordem mundial justa baseada no direito internacional", Putin ressaltou que "compartilhamos as mesmas visões sobre as causas, o curso e a lógica das transformações que hoje ocorrem na paisagem geopolítica global".  

Enfrentando "pressões e provocações sem precedentes por parte do Ocidente", Putin observou que a Rússia e a China não apenas estão defendendo seus próprios interesses, "mas também o dos que defendem uma ordem mundial verdadeiramente democrática e o direito dos países de serem livres para determinar seu próprio destino".   

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Anteriormente, Xi havia anunciado que Pequim iria realizar o 3º Fórum Cinturão e Rota em 2023, o que foi não-oficialmente confirmado por fontes diplomáticas. O fórum, inicialmente, foi programado para ser bianual, o primeiro deles ocorrendo em 2017 e, em seguida, em 2019. Não houve fórum em 2021 devido à covid-19.   

A volta do fórum assinala não apenas um impulso renovado, mas também um marco extremamente significativo, uma vez que a Iniciativa Cinturão e Rota (ICR), lançada em Astana e em seguida em Jacarta, estará celebrando seu 10º aniversário.

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 A ICR versão 2.0

Essa volta deu o tom para 2023 a todo o espectro geopolítico e geoeconômico. Paralelamente à sua amplitude e a seu alcance geoeconômico, a ICR foi concebida como o grande conceito de política externa chinesa até meados do século. Agora é hora dos ajustes finos. Os projetos da BRI 2.0, ao longo de seus diversos corredores de conectividade, certamente serão redimensionados para se adaptarem ao ambiente pós-covid, às reverberações da guerra na Ucrânia e a um mundo profundamente sobrecarregado de dívidas.

Mapa da ICR
Mapa da ICR(Photo: The Cradle)The Cradle

 E há também a interligação da conectividade pela ICR com a conectividade pelo Corredor Internacional de Transportes Norte-Sul (CITNS), de iniciativa, principalmente, da Rússia, do Irã e da Índia.   

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 A expansão do vetor geoeconômico da parceria Rússia-China, tal como discutida, o fato de que Rússia, China, Irã e Índia vêm desenvolvendo parcerias comerciais interligadas, devem determinar que os membros do BRICS Rússia, Índia e China, mais o Irã como um dos futuros membros dos BRICS+ expandidos, são o 'Quad'  que realmente importa para a Eurásia.   

 A Nova Comissão Permanente do Politburo, em Pequim, que é totalmente alinhada às prioridades de Xi, estará focando a solidificação das esferas concêntricas de influência geoeconômica por todo o Sul Global.   

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Como a China joga com a 'ambiguidade estratégica'

Isso nada tem a ver com equilíbrio do poder, que é um conceito ocidental que, além do mais, não se conecta com os cinco milênios de história chinesa. E tampouco se trata de uma outra inflexão da "unidade do centro" – a representação geopolítica segundo a qual nenhuma nação será capaz de ameaçar o centro, a China, enquanto ela for capaz de manter a ordem.  

Esses fatores culturais, que no passado podem ter impedido que a China aceitasse uma aliança sob o conceito de paridade, hoje se desfizeram no que se refere à parceria estratégica Rússia-China.   

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 Em fevereiro de 2022, dias antes dos acontecimentos que levaram à Operação Militar Especial russa na Ucrânia,  Putin e Xi, pessoalmente, haviam anunciado que sua parceria "não tinha limites" – mesmo que os dois países diferissem quanto à maneira com a qual Moscou deveria lidar com uma Kiev letalmente instrumentalizada pelo Ocidente com o fim de ameaçar a Rússia.  

 Resumindo: Pequim não "abandonará" Moscou por causa da Ucrânia – e igualmente não lhe dará apoio aberto. Os chineses estão jogando sua sutil interpretação daquilo que os russos definem como "ambiguidade estratégica". 

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A Conectividade no Oeste Asiático  

 No Oeste Asiático, os projetos da ICR irão avançar de forma particularmente acelerada no Irã, como parte de um acordo de 25 anos assinado entre Pequim e Teerã, e o fim definitivo do Plano de Ação Conjunto Global (JCPOA) – ou acordo nuclear do Irã – o que se traduz como nenhum investimento europeu na economia iraniana.

 O Irã não é apenas um parceiro da ICR, mas também membro pleno da Organização de Cooperação de Xangai (OCX). O país firmou um acordo de livre comércio com a União Econômica Eurasiana (UEEA), que consiste dos estados pós-soviéticos da Rússia, Armênia, Belarus, Cazaquistão e Quirguistão.   

 E é possível afirmar que o Irã é hoje o principal interconector do CITNS, abrindo-se para o Oceano Índico e mais além, conectando-se não apenas com  Rússia e Índia, mas também com a  China, o Sudeste Asiático e, potencialmente, até mesmo com a Europa  – supondo-se que as lideranças da União Europeia venham um dia a perceber para que lado o vento está soprando.

Mapa do CITNS
Mapa do CITNS(Photo: The Cradle)The Cradle

  Aqui temos, portanto, o Irã, pesadamente atingido por sanções dos Estados Unidos, lucrando simultaneamente com a ICR, o CITNS e o acordo de livre comércio com a UEEA. Três membros dos BRICS de  importância crítica – Índia, China, Rússia – terão particular interesse no desenvolvimento do corredor de trânsito transiraniano – que é a rota mais curta entre grande parte da União Europeia e o Sul e o Sudeste Asiáticos, oferecendo, portanto, transporte mais rápido e mais barato.

 Acrescente-se a isso o projeto do revolucionário corredor de energia elétrica Rússia-Transcaucásia-Irã, que pode vir a se tornar o elo de conectividade definitivo, capaz de pôr fim ao antagonismo entre o Azerbaijão e a Armênia.

 No mundo árabe, Xi já rearrumou o tabuleiro. Sua viagem à Arábia Saudita, em dezembro, deve ser o projeto diplomático para a rápida criação da possibilidade de uma negociação pós-moderna entre duas civilizações antigas e orgulhosas, a fim de facilitar o renascimento da Nova Rota da Seda.

 A ascensão do petroyuan   

 Pequim pode ter perdido imensos mercados no Coletivo Ocidental, de modo que sua substituição era necessária. Os líderes árabes que fizeram fila em Riad para conhecer Xi viram dez mil facas afiadas (ocidentais) se aproximando de repente e concluíram que era chegada a hora de encontrar um novo tipo de equilíbrio.  

 O que significa, entre outras coisas, que o Príncipe Herdeiro saudita  Mohammad bin Salman (MbS) adotou uma agenda mais multipolar: chega de armar o jihadismo salafista por toda a Eurásia, é hora de abrir de par em par a porta para a parceria estratégica Rússia-China. A hubris golpeia com força o coração do Hegêmona.   

 O estrategista do Credit Suisse Zoltan Pozsar, em dois notáveis e sucessivos relatórios, intitulados War and Commodity Encumbrance (Guerra e  Oneração de Commodities) (27 de dezembro) e War and Currency Statecraft (Guerra e Governança da Moeda) (29 de dezembro) apontou os sinais agourentos da "escrita na parede".  

 Pozsar entendeu plenamente o que  Xi quis dizer quando afirmou que a China "está pronta para trabalhar com o Conselho de Cooperação do Golfo (CCG)" visando a estabelecer um novo paradigma de cooperação multidimensional na área da energia" em um horizonte de tempo de "três a cinco anos".   

 A China continuará a importar dos países do CCG grandes quantidades de petróleo bruto e muito mais gás natural liquefeito (GNL). Pequim irá "fortalecer nossa cooperação no setor de exploração e extração, nos serviços de engenharia, bem como nas áreas de armazenamento, transporte e refino. A Bolsa  de Petróleo e Gás Natural de Xangai será plenamente utilizada para pagamentos em renminbi para transações comerciais de petróleo e gás... e poderemos começar a cooperação na troca de moedas".  

 Pozsar resumiu toda a questão do seguinte modo: "petróleo do CCG fluindo rumo ao leste + faturas em renminbi = a alvorada do petroyuan".

 E não apenas isso. Paralelamente, a ICR recebe um impulso renovado, porque o modelo anterior – petróleo por armamentos – será substituído por petróleo por desenvolvimento sustentável (construção de fábricas, novas oportunidades de emprego).  

 E é assim que a ICR converge com a visão de MbS’s para 2030.

 Além de Michael Hudson, Poszar talvez seja o único analista econômico ocidental que entenda a transformação do poder que ocorre em escala global: "A ordem mundial multipolar", diz ele, vem sendo construída não pelos chefes de estado do G7, mas pelo 'G7 do Oriente'  (os chefes de estado dos BRICS) que, na verdade, é um G5". Em razão do avanço rumo a um BRICS+ expandido, ele tomou a liberdade de arredondar o número.

 E as potências globais emergentes sabem também como equilibrar suas relações com o Ocidente. No Oeste Asiático, a China vem usando duas cepas ligeiramentes diferentes da mesma estratégia de comércio/conectividade da ICR, uma para o Irã e outra para as monarquias do Golfo Pérsico.

 A Parceria Estratégica Ampla da China com o Irã é um acordo de 25 anos, segundo o qual a China investirá 400 bilhões de dólares na economia iraniana em troca de um fluxo constante de petróleo iraniano a preços com  fortes descontos. Na cúpula com o CCG foram enfatizados "investimentos em projetos petroquímicos downstream, manufatura e infraestrutura", e troca de a energia ser paga em yuans.

 Como Jogar o Grande Jogo Novo  

 A ICR 2.0 também já estava à toda durante uma série de cúpulas sudeste-asiáticas realizadas em novembro.  Quando Xi se encontrou  com o primeiro-ministro tailandês Prayut Chan-o-cha na cúpula da CEAP (Cooperação Econômica Ásia-Pacífico), em Bangkok, os dois se comprometeram a por fim conectar a ferrovia de alta-velocidade China-Laos, já em operação, ao sistema ferroviário tailandês.  Esse é um projeto de 600 quilômetros de extensão, ligando  Bangkok a Nong Khai, na fronteira com o Laos, a ser concluído em 2028.   

 E, em um impulso adicional à ICR, Pequim e Bangkok concordaram em coordenar o desenvolvimento da Grande Área da Baía  Shenzhen-Zhuhai-Hong Kong e o Delta do rio Yangtze com o Corredor Econômico Oriental da Tailândia.

 No longo prazo, a China, essencialmente, objetiva a replicar no Oeste Asiático a estratégia adotada por ela por todo o Sudeste Asiático. O comércio de Pequim com a ASEAN é maior que com a Europa ou os Estados Unidos.  A atual derrocada, dolorosa e em câmera lenta, do Coletivo Ocidental talvez incomode um pouco uma civilização que, à distância, assistiu a ascensão e a queda  dos gregos, romanos, partas, árabes, otomanos, espanhóis, holandeses e britânicos. O Hegêmona, afinal, é apenas o último de uma longa lista.   

 Em termos práticos, os projetos da ICR  2.0 irão agora passar por um exame mais profundo. O que será o fim de propostas pouco práticas e de custos irrecuperáveis, com vigências ampliadas para uma série de países endividados. A ICR será colocada no cerne da expansão dos BRICS+ – partindo de um painel de consultas realizado em maio de 2022, com a participação de chanceleres e representantes da América do Sul, África e Ásia que mostrou, na prática, o alcance global de países de candidatura possível.

 Implicações para o Sul Global  

 O novo mandato dado a Xi no 20º Congresso do Partido Comunista sinalizou a irreversível institucionalização da ICR, que é o carro-chefe de suas políticas. O Sul Global vem sendo rápido em tirar sérias conclusões, em especial quanto ao contraste com a  gritante politização do G20, visível em sua cúpula realizada em novembro, em Bali.

 Poszar, portanto, é uma joia rara: um analista ocidental que entende que os BRICS são o novo G5 que  de fato importa, e que esses países estão liderando no avanço para o BRICS+. Ele também entende que o Quad que realmente importa são os três países asiáticos dos BRICS mais o Irã.   

 Um desacoplamento agudo da cadeia de fornecimento, a crescente histeria ocidental quanto à posição de Pequim com relação à guerra na Ucrânia e graves retrocessos nos investimentos chineses no Ocidente foram os fatores que levaram ao desenvolvimento da ICR 2.0. Pequim focará simultaneamente diversos nós do Sul Global, em especial seus vizinhos da ASEAN e outros países da Eurásia.

 Pensem, por exemplo, na ferrovia de alta velocidade  Jacarta-Bandung, financiada por Pequim, a primeira do Sudeste Asiático: um projeto da ICR a ser inaugurado este ano, quando a Indonésia estiver ocupando a presidência rotativa da ASEAN.  A China vem construindo também a Ligação Ferroviária Costa Leste na Malásia , e renovou negociações com as Filipinas  para três projetos ferroviários.

 Há então as interconexões superpostas. A UEEA irá firmar um acordo de livre comércio com a Tailândia.  Nos bastidores do épico retorno de Luiz Inácio Lula da Silva ao poder no Brasil, autoridades do Irã e da    Arábia Saudita tiveram um sorridente encontro para discutir – o que mais seria? – os BRICS+. Excelente escolha de lugar: o Brasil é visto por praticamente todos os atores geopolíticos como um importante território neutro.  

 Do ponto de vista de Pequim, muita coisa está em jogo, uma vez que o impulso que move ICR 2.0, em todo o Sul Global, é não permitir que a China se torne dependente dos mercados ocidentais.  Seu enfoque combinado quanto ao Irã e o mundo árabe demonstra esse fato.

 A China perder simultaneamente a demanda de mercado tanto dos Estados Unidos quanto da União Europeia talvez acabe por se mostrar nada mais que um calombo na estrada (multipolar), mesmo que  o timing da quebra do Coletivo Ocidental possa parecer ter sido programado para derrubar a China.

 O ano de 2023 continuará com a China jogando o Grande Jogo Novo, forjando uma nova globalização 2.0 que é sustentada por uma rede que abrange a ICR, os BRICS+, a OCX e, com a ajuda de seu parceiro estratégico russo, também a UEEA e a OPEC +. Não é de admirar que os suspeitos de sempre estejam estonteados e confusos.

Tradução de Patricia Zimbres

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