Poderá a China ajudar o Brasil a restaurar seu soft power global?

"O Brasil é um dos líderes naturais do Sul Global, papel muito valorizado pelas lideranças chinesas", escreve Pepe Escobar

Xi Jinping e Lula
Xi Jinping e Lula (Foto: REUTERS/Tingshu Wang | Ricardo Stuckert)


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Dez dias de imersão total no Brasil não é coisa para os fracos de alma. Mesmo que limitados às duas maiores megalópoles, São Paulo e Rio, assistir ao vivo o impacto entrelaçado das crises econômica, política, social e ambiental exacerbadas pelo  projeto Jair Bolsonaro nos deixa estarrecidos. 

O retorno de  Luiz  Inácio Lula da Silva para o que será seu terceiro mandato presidencial, a começar em 1º de janeiro de 2023, é uma história extraordinária, trespassada por tarefas sisíficas. Ao mesmo tempo, ele terá que 

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 • combater a pobreza;

 • deslanchar o desenvolvimento econômico e, ao mesmo tempo, distribuir riqueza;

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 • reindustrializar o país e

 • domar a pilhagem ambiental.

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O que irá forçar o novo governo a reunir poderes criativos nunca antes vistos de persuasão política e financeira.

Até mesmo um medíocre político conservador como Geraldo Alckmin, ex-governador do estado mais rico da União, São Paulo, e coordenador da transição para o novo governo, ficou simplesmente perplexo ao ver que quatro anos de projeto Bolsonaro deixaram atrás de si uma cornucópia de documentos desaparecidos, um buraco negro de dados de todos os tipos, e inexplicáveis perdas financeiras.

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 É impossível calcular a extensão da corrupção em todo o espectro porque nada ficou registrado: os sistemas federais não são alimentados desde 2020.

Alckmin resumiu a situação: "O governo Bolsonaro aconteceu na Idade da Pedra, onde não havia palavras nem números".

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Agora, cada política pública terá que ser criada ou recriada a partir do zero, e erros graves serão inevitáveis devido à falta de dados. 

E não estamos falando de uma república de bananas  – embora o país em questão produza uma enorme quantidade delas (aliás, deliciosas). 

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Em termos de paridade de poder de compra (PPC), segundo o Fundo Monetário Internacional (IMF), o Brasil continua em oitavo lugar entre as potências econômicas do mundo, mesmo depois dos anos da devastação bolsonariana – atrás de China, Estados Unidos, Índia, Japão, Alemanha, Rússia e Indonésia, e à frente do Reino Unido e da França. 

 Uma bem-orquestrada campanha iniciada em 2010, devidamente denunciada pelo WikiLeaks e implementada pelas elites compradoras locais – os campeões do empreendedorismo brasileiro - tomou como alvo a presidência de Dilma Rousseff, levando ao impeachment  (ilegal) da presidenta e à prisão de Lula por 580 dias, com base em acusações espúrias, todas elas mais tarde anuladas, e abrindo caminho para a vitória de Bolsonaro na eleição presidencial de 2018. 

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Não fosse por esse acúmulo de desastres, o Brasil, um líder natural do Sul Global  – talvez estivesse hoje na posição de quinta maior potência geoeconômica do mundo.  

 O que a gangue dos investimentos quer

Paulo Nogueira Batista Jr., antes vice-presidente do New Development Bank (NDB), ou Banco dos BRICS, vai direto ao ponto: a dependência do Brasil em Lula é imensamente problemática.

 Batista vê Lula enfrentando três blocos hostis. 

 • A extrema-direita, apoiada por uma facção significativa e poderosa das forças armadas – que inclui não apenas bolsonaristas, que ainda estão acampados em frente a alguns quartéis, contestando o resultado das eleições presidenciais;  

 • A direita fisiológica que domina o Congresso – conhecida no Brasil como o Centrão”;

 • O capital financeiro internacional – que, previsivelmente, controla o grosso da mídia convencional.  

O terceiro bloco, em grande medida, abraçou alegremente a ideia de Lula de uma Frente Ampla capaz de derrotar o projeto Bolsonaro (projeto esse que, por sinal, nunca deixou de ser imensamente lucrativo para o terceiro bloco).

Agora eles exigem sua parte. A mídia empresarial, imediatamente, passou a encurralar Lula, desencadeando uma espécie de "inquisição financeira", como descrito pelo craque da economia, Luiz Gonzaga Belluzzo.  

Ao indicar o petista de longa data Fernando Haddad como Ministro da Economia, Lula indicou que ele, na verdade,  estará no comando da economia. Haddad é um professor de ciência política e foi um Ministro da Educação bastante decente, embora não seja um guru econômico de primeira linha. Os acólitos da Deusa do Mercado, é claro, o rejeitam.

 Mais uma vez, essa é a marca registrada de Lula em ação: ele optou por dar mais peso a negociações complexas e prolongadas com um Congresso hostil para fazer valer sua agenda social, certo de já ter na cabeça os contornos de sua política econômica. 

Um almoço com alguns integrantes da elite financeira de São Paulo, antes mesmo de o nome de Haddad ser anunciado, trouxe algumas pistas fascinantes. Essa gente é conhecida como os "Faria-Limers" – em uma referência à esnobe Avenida Faria Lima, onde se localizam diversos escritórios pós-modernos de bancos de investimentos, e também as sedes do Google e do Facebook.

Entre os convidados, havia um punhado de investidores de um antipetismo hidrófobo, os proverbiais neoliberais impenitentes e, no entanto, a maioria mostrava-se entusiasmada com as futuras oportunidades de embolsar uma grana preta. Um deles era um investidor em busca de negócios com empresas chinesas.     

O mantra neoliberal daqueles dispostos a – talvez – apostar em Lula (por um preço) é "responsabilidade fiscal". O que se choca frontalmente com o foco que Lula coloca na justiça social.

É aí que Haddad entra como um interlocutor solícito e cortês, porque ele privilegia as nuances, apontando que dar atenção  apenas aos indicadores de mercado, esquecendo os 38% de brasileiros que ganham salário-mínimo   (1.212 reais ou 233 dólares ao mês) não é exatamente bom para a economia.

 A magia negra do não-governo 

 Lula já vem ganhando sua primeira batalha: a aprovação de uma emenda constitucional que permite o financiamento de maiores gastos sociais. 

Isso permitirá que o governo mantenha o carro-chefe do PT, o programa social Bolsa Família, de cerca de 13 dólares ao mês para famílias que vivem em situação de pobreza – ao menos pelos próximos dois anos. 

Um passeio pelo Centro de São Paulo – que na década de 60 era tão chique quando o Midtown Manhattan - oferece um triste curso intensivo sobre pauperização, negócios falidos, moradores de rua e desemprego desenfreado. A notória Cracolândia – que há pouco tempo se limitava a uma única rua – hoje abrange todo um bairro, muito semelhante ao Los Angeles drogado da pós-pandemia.  

Já o Rio mostra uma vibe completamente diferente a quem vai dar uma caminhada em Ipanema em um dia ensolarado, o que é sempre uma experiência fantástica. Mas Ipanema vive em uma bolha. O verdadeiro Rio dos anos Bolsonaro – economicamente massacrado, desindustrializado e ocupado por milícias – mostrou sua cara em uma mesa redonda realizada no centro da cidade, onde interagi com, entre outros, um ex-ministro da energia e o homem que descobriu as imensamente valiosas reservas do pré-sal.    

Na sessão de perguntas e respostas, um homem negro de uma comunidade muito pobre colocou o principal desafio a ser enfrentado por Lula em seu terceiro mandato: para conseguir estabilidade e governabilidade, ele terá que conquistar o apoio dos vastos setores mais pobres da população. 

Esse homem deu voz ao que não parece ser discutido no Brasil: Como pôde acontecer de milhões de brasileiros pobres se tornarem bolsonaristas – garis, moto-boys, desempregados? O populismo de direita os seduziu – e as alas estabelecidas da esquerda progressista não tinham, e ainda não têm, nada a oferecer a eles.   

 Esse é um problema tão premente quanto a destruição das gigantes da engenharia brasileira pela farsa da operação "anticorrupção" Lava-Jato. O Brasil, hoje, tem uma multidão de engenheiros qualificados e desempregados. Por que razão eles não alcançaram um grau de organização política suficiente para reivindicar seus empregos de volta? Por que eles se resignam em se converter em motoristas de Uber?    

José Manuel Salazar-Xirinachs, o novo presidente da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe das Nações Unidas (CELAC), pode se lamuriar de o fracasso econômico da região nos dias de hoje ser ainda pior que na "década perdida" dos anos 80: prevê-se um crescimento econômico médio de apenas 0,8% para a América Latina, na década que vai até 2023.

Mas o que a ONU é incapaz de analisar é como um regime neoliberal saqueador como o de Bolsonaro conseguiu "elevar" a níveis de uma toxicidade jamais vista a magia negra de pouco ou nenhum investimento, baixa produtividade e investimentos em educação abaixo de zero.  

 A Grande Presidenta Dilma 

Lula foi rápido em resumir a nova política externa do Brasil – que partirá para um total multipolarismo, com ênfase no aumento da integração latino-americana, em vínculos mais robustos com o Sul Global e na intenção de reformar o Conselho de Segurança da ONU, (em sincronia com os membros dos BRICS Rússia, China e Índia).

Mauro Vieira, um diplomata capaz, será o próximo chanceler. Mas o homem encarregado dos ajustes finos na posição brasileira no cenário mundial será Celso Amorim, chanceler de Lula de 2003 a 2010. 

Em uma  conferência que nos reuniu em São Paulo, Amorim discorreu sobre a complexidade do mundo agora herdado por Lula, em comparação a 2003. Mas, juntamente com as mudanças climáticas, as prioridades continuam as mesmas: alcançar uma integração mais estreita com a América do Sul, reativar a Unasul (União das Nações Sul-Americanas) e reaproximar-se da África.  

E então vem o Santo Graal: "boas relações com Estados Unidos e China".   

O Império, como seria de se esperar, estará em grau máximo de vigilância. O consultor para segurança nacional dos Estados Unidos, Jake Sullivan,   deu uma passada em Brasília nos primeiros dias da Copa do Mundo e ficou absolutamente encantado com Lula, que é um mestre do carisma. Mas a Doutrina Monroe, ao final, sempre prevalece. Lula se aproximar cada vez mais dos BRICS – e do BRICS+ expandido – é visto como um virtual anátema por Washington.   

Lula, portanto, atuará da forma mais pública na arena ambiental.  Em um nível mais discreto, haverá um sofisticado jogo de equilíbrio.

O combo por trás do Presidente Joe Biden ligou para Lula para cumprimentá-lo, logo depois do resultado das eleições. Sullivan foi a Brasília para preparar terreno para a visita de Lula a Washington. O presidente chinês  Xi Jinping, de sua parte, enviou uma afetuosa carta, ressaltando a "parceria estratégica global" entre Brasil e China. O presidente russo  Vladimir Putin telefonou para Lula no início desta semana – enfatizando a semelhança de seus enfoques ao BRICS.

A China vem sendo o principal parceiro comercial do Brasil desde 2009, tendo superado os Estados Unidos. O comércio bilateral, em 2021, alcançou a cifra de  135 bilhões. O problema é a falta de diversificação e o foco no baixo valor agregado: minério de ferro, soja, petróleo cru e proteína animal responderam por 87,4% das exportações em 2021. As exportações da China, por outro lado, são principalmente produtos manufaturados de alta tecnologia.   

A dependência do Brasil na exportação de commodities contribuiu, durante anos, para o aumento de suas reservas externas. Mas esse aumento implica alta concentração de riqueza, baixa tributação, pouca criação de empregos e dependência nas oscilações cíclicos dos preços. 

Não há a menor dúvida de que a China tem interesse nos recursos naturais do Brasil para alimentar seu novo impulso desenvolvimentista – ou "modernização pacífica", como ficou estabelecido no último Congresso do Partido. 

Mas Lula terá que tentar alcançar um balanço de comércio mais equitativo, caso ele consiga recuperar o país como uma economia sólida. Em 2000, por exemplo, o principal produto brasileiro de exportação eram os jatos da Embraer. Hoje é minério de ferro e soja, um outro indicador funesto da feroz desindustrialização criada pelo projeto Bolsonaro.   

A China já vem investindo significativamente no setor elétrico brasileiro – graças, principalmente, às empresas estatais compradas  por corporações chinesas, como ocorreu em 2017, quando a State Grid comprou a CPFL de São Paulo que, por sua vez, comprou uma estatal do Sul brasileiro, em 2021.

 Do ponto de vista de Lula, essa situação é inadmissível: um caso clássico de privatização de bens públicos estratégicos.

Um cenário diferente existe na vizinha Argentina. Buenos Aires, em fevereiro último, tornou-se parceira oficial das Novas Rotas da Seda, ou Iniciativa Cinturão e Rota, com a perspectiva de receber pelo menos 23 bilhões de dólares em novos projetos. O sistema ferroviário argentino será modernizado por – quem mais seria? – empresas chinesas, que entrarão com 4,6 bilhões. 

Os chineses investirão também na maior usina de energia solar da América Latina, em uma usina hidroelétrica na Patagônia e em um usina de energia nuclear – contando inclusive com transferência de tecnologia chinesa para o estado argentino.     

Lula, irradiando um inestimável soft power, não apenas no que se refere a sua relação pessoal com Xi, mas também junto à opinião pública chinesa, é capaz de conseguir acordos de parceria estratégica semelhantes, e com amplitude ainda maior. Brasília talvez siga o modelo de parceria iraniano  – oferecendo petróleo e gás em troca da construção de infraestrutura crítica. 

 É inevitável que o caminho dourado virá a utilizar joint ventures, e não fusões e aquisições. Não é de admirar que muitos, no Rio, já venham sonhando com uma linha ferroviária de alta velocidade ligando a cidade a São Paulo em pouco mais de uma hora, substituindo o congestionado trajeto rodoviário de seis horas (se você tiver sorte). 

Um papel da maior importância será desempenhado pela ex-presidenta Dilma Rousseff, que conversou com alguns de nós durante um longo e tranquilo almoço em São Paulo. Ela, sem nenhuma pressa, contou em detalhes toda a sua história, desde o dia em que foi oficialmente presa pela ditadura militar, em 16 de janeiro de 1970,  até suas conversas em off com a então primeira-ministra alemã Angela Merkel, Putin e Xi. 

 Desnecessário dizer que seu capital político – e pessoal – com Xi e Putin é imenso. Lula ofereceu a ela qualquer cargo que ela quisesse no novo governo.  Embora ainda segredo de estado, essa escolha será parte de uma séria iniciativa  de realçar o perfil global do Brasil, principalmente no que se refere ao Sul Global.   

Para se recuperar dos desastrosos seis anos anteriores – que incluíram os dois anos de terra-de-ninguém (2016-2018) que se seguiram ao impeachment da Presidenta Dilma – o Brasil irá precisar de um impulso sem precedentes rumo à reindustrialização em praticamente todos os níveis, acompanhado de investimentos substanciais em pesquisa e desenvolvimento, treinamento de forças de trabalho especializadas e transferências de tecnologia. 

Há uma superpotência capaz de desempenhar um papel crucial nesse processo: a  China, parceira muito próxima ao Brasil na expansão dos BRICS+. O Brasil é um dos líderes naturais do Sul Global, papel muito valorizado pelas lideranças chinesas.

O principal, agora, é que os dois parceiros estabeleçam um diálogo de alto nível – novamente. A primeira visita importante de Lula a um país estrangeiro terá como destino Washington. Mas a destinação  que realmente importa, quando assistimos ao fluir  do rio da história, será Pequim.     

 * Tradução de Patricia Zimbres

 

 

 

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