Pobre no orçamento, rico no imposto de renda

"O Brasil é um paraíso fiscal para os bilionários, a tenebrosa turma da bufunfa. Essa turma não quer nem ouvir falar em tributação", diz Paulo Nogueira Batista

Bolsa Família e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva
Bolsa Família e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Foto: Abr | Ricardo Stuckert)


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Paulo Nogueira Batista

Posso falar do Lula outra vez? Pergunto e eu mesmo respondo: posso! Afinal, este é o derradeiro artigo do ano de 2022. E quem foi a grande figura deste ano tão difícil que atravessamos? Existe salvador da pátria? Se existe, nós sabemos quem é. 

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Não pense, leitor, que este parágrafo inicial entusiasmado signifique admiração fervorosa e irrestrita pelo presidente eleito. Não! Tenho minhas reservas, minhas dúvidas. É natural. Ninguém é perfeito e ninguém merece ser poupado de críticas. E o papel de pessoas como eu será não apenas apoiar, mas também criticar, se necessário, o futuro governo brasileiro.

 E, em especial, cobrar o cumprimento das promessas de campanha. Por exemplo, o candidato Lula disse diversas vezes que pretendia “colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”. Perfeito. Nada mais justo, nada mais necessário. 

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 O que significa essa fórmula feliz? Duas coisas, pelo menos. Primeiro, modificar a composição do gasto público. E, em segundo lugar, aumentar a tributação sobre os super-ricos. 

 Vamos por partes, à moda de Jack, o Estripador. Do lado do gasto, o importante é assegurar que os programas governamentais beneficiem em primeira instância os pobres, os miseráveis, os mais necessitados. No jargão eufemístico do economista: as pessoas de baixa renda. Fundamental, portanto, abrir espaço no orçamento para aumento expressivo das transferências sociais, inclusive o Bolsa Família, para o aumento do poder de compra do salário-mínimo e, também, para maiores despesas de educação e saúde focadas no mais pobres. Merenda escolar, por exemplo. Farmácia popular, outro exemplo. Também moradia. Transporte público. 

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 Veja, leitor, que falei em “abrir espaço”. Isso significa cortar gastos supérfluos, que beneficiam os mais aquinhoados. Como declarou o vice-presidente eleito, Geraldo Alckimin, será preciso passar um pente fino nas despesas de governo e identificar o que pode e deve ser cortado, os programas ineficientes, de baixa qualidade, e em especial as despesas que beneficiam os super-ricos, aqueles que já têm renda e riqueza em excesso. Isso inclui, diga-se de passagem, rever as isenções e os incentivos tributários, os chamados gastos tributários, que representam nada menos que R$ 371,1 bilhões em 2022, o equivalente a quase 4% do PIB, segundo estimativa da Receita Federal. 

Bem sei que tudo isso é muito mais fácil de escrever do que de colocar em prática. Para cada programa ineficaz e de baixa prioridade, para cada incentivo fiscal inútil ou duvidoso, existem um ou mais grupos de interesse, não raro poderosos, que lutam para preservar os seus privilégios. E logo aparece, do lado do governo, a turma do deixa disso, sempre disposta a contemporizar. Se o presidente da República der ouvidos a esse pessoal, nada de importante será feito. 

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A linha de menor resistência, leitor, será sempre sobrepor os programas sociais aos programas ineficazes e concentradores de renda já existentes. Pequeno problema: o nível do gasto público é alto no Brasil. Novos aumentos serão difíceis de conciliar com a estabilidade e o desenvolvimento da economia.

E do lado da receita? Nesse ponto, o nível de embuste das discussões econômicas habituais alcança uma espécie de ponto máximo. O assunto é vasto. Tratarei de apenas alguns aspectos. Dedico, em todo caso, um pouco mais de espaço a esse lado da questão, que tende a ser negligenciado (et pour cause!).

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De fato, é fundamental colocar os ricos no imposto de renda, como disse o candidato Lula. Melhor dizendo: colocar os super-ricos. Importante não deixar margem para exploração política ou politiqueira. Não se trata de aumentar a carga tributária sobre a classe média, que já é elevada. E muito menos sobre a população pobre, que suporta a pesada carga de tributos indiretos. Os super-ricos, que dominam a mídia tradicional, conseguem normalmente vender como aumento de impostos sobre “a sociedade” qualquer tentativa de fazê-los contribuir um pouco mais para o funcionamento do Estado.

Eis a verdade incômoda: o Brasil é um paraíso fiscal para os bilionários, a tenebrosa turma da bufunfa. Essa turma não quer nem ouvir falar em tributação. 

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Ora, o nosso país é um dos mais desiguais do planeta. Em 2021, de acordo com o IBGE, o 1% mais rico da população tinha uma renda média 38,4 vezes mais alta do que a renda média dos 50% mais pobres. Repare, bem, leitor: 38,4 vezes! Um dos fatores que contribuem para isso é a injustiça do sistema tributário. Em 2019, um único brasileiro declarou renda de R$ 1,4 bilhão, sendo R$ 1,3 bilhão em dividendos livres de tributação!

A quantidade de injustiças da tributação brasileira não cabe em um artigo. Remeto a meu livro mais recente, “O Brasil não cabe no quintal de ninguém”, que traz, na sua segunda edição, um texto um pouco mais alentado sobre a subtributação dos super-ricos. E pretendo voltar ao assunto, nesta coluna, em 2023.

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Por ora, listo alguns exemplos escandalosas. O imposto de renda da pessoa física se torna regressivo após a faixa de 30 a 40 salários-mínimos (isto é, tributa proporcionalmente menos as rendas mais elevadas). A renda do capital é isenta na pessoa física ou sujeita a tributação proporcional ou de baixa progressividade. A alíquota marginal máxima é pequena (em tese e do ponto de vista da justiça, nada impede estabelecer alíquotas marginais mais elevadas sobre os super-ricos). Além disso, a não correção da tabela progressiva sobrecarrega a classe média, inclusive a classe média baixa.

A injustiça é maior do que se imagina. Em 2020, para os declarantes que ocupam o topo da pirâmide (os 0,01% mais ricos), 63% dos rendimentos ficaram isentos, em média, e 30% sofreram tributação exclusiva na fonte! Ou seja: apenas 7% dos rendimentos, em média, entraram na tabela progressiva. Em 2020, a alíquota efetiva média dos 0,01% mais ricos foi de apenas 5,4%, próxima à dos assalariados que recebem em torno de R$ 6.500 mensais! (Dados da Receita Federal, que me foram repassados pelo auditor fiscal Paulo Gil Hölck Introíni.) 

O Brasil é ou não é um tremendo paraíso fiscal para os super-ricos?

A tributação da riqueza também é modesta. Heranças e doações estão sujeitas à alíquota máxima de 8%. Iates e aviões particulares estão isentos de IPVA. O Imposto sobre Grandes Fortunas, previsto na Constituição de 1988, nunca foi criado. O Imposto Territorial Rural corresponde a apenas 0,1% da arrecadação federal. 

Para completar o quadro, as fragilidades da administração tributária, agravadas durante o governo Bolsonaro, permitem que os bilionários escapem dos impostos com relativa facilidade. Praticam o chamado planejamento tributário, com assessoria de advogados tributaristas regiamente remunerados.

Os beneficiários desse paraíso tributário são exatamente os mesmos que, por intermédio dos seus serviçais – uma legião de economistas e jornalistas econômicos –, entopem a mídia tradicional com clamores por “responsabilidade fiscal”. 

Veremos o que o novo governo fará para colocar “o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”. A resistência à mudança será grande, como sempre, mas é uma luta que vale a pena. 

     ***

Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital”. 

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