Pó preto
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Nasci no Brás, bairro fabril da capital de São Paulo, na primeira metade dos anos 50. Meus amigos de bairro e de escola eram descendentes de italianos, espanhóis, portugueses e brasileiros, como todos nós. A orientação passada pela família, para não haver confronto com torcedores do Palmeiras, São Paulo, Portuguesa, e outros times de futebol dessa “turma”, era fortemente recomendada.
Meu time do coração, o Corinthians, amargou uma longa fila e somente fui vê-lo campeão 23 anos depois, por uma TV chuviscada, numa plataforma marítima de exploração de petróleo, distante uns 100 km da costa brasileira. Antes de levantar a taça, como campeão paulista de 1977, o time era mais conhecido como o “faz me rir”, porque não emplacava nenhum campeonato que disputava e aguentavam-se as provocações.
Enquanto isso, nos afazeres domésticos, na hora da tarefa diária da limpeza da casa, sempre se deparava com aquele pó preto em cima dos móveis e aparelhos eletrônicos, como os rádios e as televisões com válvulas. O pó preto, de certo, era proveniente da poluição aérea detonada, principalmente, pelas fábricas do bairro, uma vez que a pavimentação asfáltica das ruas e avenidas ainda não predominava sobre o recobrimento com paralelepípedos, muitos deles servindo de piso para os trilhos de bonde que circulavam na época.
Hoje, passados 60 anos dessa época e vivendo numa cidade praiana no Litoral Norte do Estado de São Paulo, causa profunda estranheza a quantidade de pó preto que amanhece depositado nos móveis e nas superfícies de revestimento de uma moradia há oito quadras do bom e velho Oceano Atlântico. Sinais dos tempos esse da pavimentação asfáltica desenfreada voltada para dar a vazão rápida ao fluxo de carrões, que afrontam os indefesos pedestres com seu tamanho exagerado e amedrontadora cor preta.
Salvo melhor avaliação são esses veículos os principais responsáveis pelo lançamento de fumaça e de pó preto no ar, além de estarem sempre presentes nas manifestações antidemocráticas e fascistas do governo de plantão. É possível que não seja uma mera coincidência o fato desses agentes do pó preto serem, também, os defensores da manutenção desse regime obscuro por um longo tempo. Por isso, hoje ainda cabem as velhas perguntas, que se ouvia na época do pó preto no antigo bairro do Brás: Hoje tem marmelada? Hoje tem goiabada? E o palhaço quem é?
Nota
Crônica selecionada e publicada na coletânea “Prêmio Off Flip 2022: crônica” (p.347).
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