Plataformização da educação
"Esse esforço para conhecer mais profundamente o processo em curso da plataformização na educação, deve ser visto também como início de ações para a transformação, numa perspectiva de uma utilização da tecnologia a favor da maioria, para além do período de emergência sanitária", destaca o colunista Roberto Moraes
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A convite da Pró Reitoria de Graduação da UFMG, eu participei, no último dia 21 de maio de 2021 do encontro temático “Tempos Digitais" com o tema “Plataformização na Educação”, organizado pelo Laboratório Formação em Docências no Ensino Superior (GIZ-PROGRAD-UFMG).
O encontro temático teve a abertura da pró-reitora de Graduação, professora Benigna de Oliveira e a mesa-redonda foi mediada pelo educador Marcos Vinícius Tarquínio (UFMG), coordenador do LabDocências-UFMG e contou ainda com a presença dos professores-pesquisadores, Marcos Alves (UFMG) e Leonardo da Cruz (UFPA). A gravação do evento pode ser vista neste link.
Há cerca de dois anos venho investigando a economia de plataformas e a partir daí venho sustentado a leitura de que a plataformização e o uso cada vez mais intenso das plataformas digitais e aplicativos, tratam-se de um fenômeno multidimensional e transescalar e que sua interpretação depende de múltiplos campos de saber.
Assim, tenho me dedicado mais intensamente às leituras da dimensão econômica, espacial e política, em síntese a repercussão da plataformização e appficação no campo da geoeconomia e geopolítica.
A dimensão da educação não é o centro da minhas análises, mas por insistência dos organizadores, eu atendi ao convite, no esforço de tentar observar as consequências e tendências da plataformização no campo das formações humanas, e assim aprendi com os organizadores, os professores do debate e com os demais colegas participantes.
Após a realização do debate eu resgatei e reuni parte da minha fala incluindo algumas outras anotações sobre o tema da plataformização na educação que agora compartilho mais amplamente no texto abaixo. Não se trata de um texto acadêmico propriamente dito, mas uma espécie de breve ensaio com notas para discussão sobre o tema.
Plataformização da Educação
Talvez, seja um bom começo iniciar a tratar do tema falando daquilo tenho chamado da dominação tecnológica. Um pouco do que o Manuel Castells antecipou em linhas gerais na sua bela trilogia da “Era da Informação” iniciado com o livro “Sociedade em Rede”. [1] Porém, naquela ocasião, a digitalização era ainda um processo inicial e abstrato para a sociedade como um todo. Até porque, como sabemos, há um tempo para o desenvolvimento da tecnologia, sua implantação e o seu enraizamento nos territórios.
Ao falar de dominação tecnológica vale observar que da mesma forma que o trabalho é inerente ao ser humano, o desenvolvimento das tecnologias não existiriam sem o trabalho humano, as forças produtivas e as relações de produção. Tudo assim misturado, mas com o trabalho humano sempre presente.
Nos últimos dois anos eu tenho me dedicado a investigar a economia de plataformas e identificado as plataformas digitais, como sendo “infraestruturas de intermediação” que existem com a finalidade de atender a diferentes setores da sociedade e/ou grupos econômicos no mundo contemporâneo. Como infraestruturas (IEs) elas exercem a mediação entre as pontas e meios de circulação entre a produção e o consumo e também como meio de comunicação, o que nos faz recordar da tríade marxiana do MPC: produção-circulação-consumo.
Figura 1: Lógica da plataformização
Segundo o dicionário a palavra “plataforma” tem duas principais definições: “superfície plana e horizontal, mais alta que a área circundante”. “Programa político, ideológico, ou administrativo de candidato a cargo eletivo”. A primeira definição remete à hierarquia da organização da produção. E a segunda está muito vinculada à comunicação de ideias para obter apoio. Assim, também pela interpretação da palavra, as plataformas são na prática meios (intermediação) da produção e comunicação (redes sociais), fatores que estão transformando as relações sociais e de produção no mundo contemporâneo.
Figura 2: Plataformas como meios de produção e comunicação
O processo de plataformização deve sempre ser visto como um fenômeno que se desenvolve e deve ser observado de forma multidimensional e transescalar. Dimensão Econômica, Inovação tecnológica (C&T); Trabalho; Espacial (Geoeconômica e Geopolítica); Política, Cultural, das redes social-comunitárias incluindo o setor da educação. Embora a dimensão da educação não seja o eixo das minhas principais análises sobre o fenômeno da plataformização, eu tentei nesse texto elencar e trazer alguns elementos que possam contribuir para o debate.
A plataformização e a economia de plataformas, já eram processos crescentes e derivados no mundo atual, em especial, a partir do incremento da internet móvel e do uso ampliado de aplicativos, a que chamo de Appficação. Os aplicativos são programas (softwares) de fácil usabilidade para uso na internet móvel no universo dos celulares.
Porém, com o advento da crise sanitária e da pandemia esse processo foi enormemente acelerado. Aceleração do tempo como dizia Thompson. Ou, como nos lembra David Harvey que se referiu à “compressão do espaço-tempo” a partir da Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC). [2] O que era estimado para acontecer em uma década foi trazido para um ano ou semestre, um mês.
De início, com a pandemia, os sistemas de ensino e as universidades não sabiam o que fazer. Mas, em pouco tempo, os Meet, Team, Youtube, vídeos no WhatsApp, etc. foram virando febre. As pessoas vibraram porque se sentiam saindo do isolamento completo. Mas não se tinha em mente o que havia pela frente ...
A lógica da intermediação das Plataformas Digitais (PDs) traz embutida, a enorme dominação tecnológica que chega com uma colossal e explosiva extração de dados (da lógica do circuito dos algoritmos, da vigilância, do BD e da IA) executada pelas Big Techs (gigantes-empresas-plataformas), o maior oligopólio da história da humanidade em termos de concentração de valor e poder. Só a Apple com valor de mercado superior a US$ 2 trilhões. [3] [4]
As plataformas-raiz, as Big Techs (GAFAM-Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft), sabem que o setor de ensino é um filão extraordinário. Não apenas pelo controle, pela Divisão Territorial do Conhecimento e do poder geopolítico que isso representa, mas por conta do enorme de mercado de ensino em que crescem as empresas S.A., controladas pelo “capitalismo da gestão de ativos dos fundos financeiros” (MAZZUCATO, 2020). [5]
Posso citar alguns exemplos além da oferta do Team, do Meet, Youtube, Office, Gmail, etc. As Big Techs trabalham inicialmente com ofertas de uso de softwares, plataformas e aplicativos (APPs), que são também softwares para usos na internet móvel dos celulares. As nossas universidades brasileiras, as italianas e outras foram ampliando o uso do Team, Office 365, soft Productivity score (ferramenta de vigilância e comportamental de alunos); Reflect (soft para enviar questionários para avaliação de aprendizagem – Esses últimos da Microsoft que junto da Google são as Big Techs mais próxima das universidades e do setor de ensino. O soft ClassRoom da Google para gerenciar turmas. O soft Cuppertino (Apple) com soluções de apoio capturam inovações pedagógicas e educacionais. Novas experiências de soluções para transformar o ambiente educacional e mimetizar para uso digital e depois compartilhar com venda para um público mais amplo. APPs como Power APP, Dynamics 365, Power Virtual, etc. Além da oferta de uso das nuvens Amazon Web Services, Azzure, gerenciamento emails, oferta banda-ultra-larga... 70% das nossas universidades e sistemas de ensino usam as Big Techs, em especial Google, Microsoft e Amazon. Tudo como plataformas e APPs de tecnologia que fazendo “pontes” até estudantes, guardando e capturando dados em nuvens.
No Brasil, a multinacional de EaD Laureate que acaba de se juntar à Ânima num negócio de R$ 4,6 bilhões. [6] Uma transação entre a 4ª e 9ª maior empresa privadas de ensino no Brasil. Juntas elas têm agora 330 mil alunos e receita de quase R$ 4 bilhões. A Laureate já está usando softs de IA para corrigir textos dos alunos em lugar dos professores. Promovem turmas com dezena de milhares de alunos. Aulas gravadas e repetidas.
Assim, as Big Techs com suas plataformas vão coletando dados sensíveis, como se fossem commodities da era da digitalização. Sem pedir autorização nem a estudantes, nem a professores, nem às instituições as quais “cedem” as suas plataformas e APPs.
Desta forma, as Big Techs donas da plataformas-raiz vão também, paulatinamente estruturando e ampliando a Divisão Territorial do Conhecimento. Uma nova etapa agora da colonização digital trazendo ainda mais dependência geopolítica nas relações de poder. A geopolítica do conhecimento reforça a divisão entre quem controla a pesquisa, desenvolve o conhecimento, monta as plataformas e quem recebe as tecnologias prontas, sob a forma dos APPs apenas para trabalhar na ponta, quase que apenas na certificação de estudantes.
Assim, aqui na periferia, daqui a pouco serão necessários menos professores e mais monitores e tutores, tudo num esquema ou modelo skinerizado. [7] Penso que corremos riscos de termos quase que somente “centros de certificação” do que já existe na tecnologia criada pelos desenvolvedores. Os conteúdos já estão sendo em boa parte geridos pela IA, a partir das nossas aulas no Team, Meet, Zoom... Com o Estado neoliberal desmontado, esses recursos acabarão sendo bem recebidos pelos governantes que agradecerão às Big Techs.
Tudo (ou quase tudo) que as Big Techs nos oferecem partem de nós. E está sendo extraído. A lógica das plataformas digitais é da extração de valor. As Big Techs (plataformas-raiz) através de suas “stores” (lojas online) que oferecem os Apps, capturam dados, treinam algoritmos para organizar esses dados que são processados pela IA. De posse dos dados trabalhados, industrializados e organizados nas plataformas e APPs, já dizem o que é melhor para nós. Assim, as empresas de ensino vão reduzindo os custos para o ensino massificado.
Nessa análise - talvez exagerando um pouco a crítica para ser melhor compreendida – é possível intuir que as Big Techs e corporações afiliadas, buscarão caminhar para oferecer ensino massificado do maternal à pós graduação. Penso que em especial no ensino médio e na graduação, mas o que vai ocorrer precisa ser acompanhado e investigado.
As GAFAM poderão usar os dados dos estudantes para vender ao mundo do trabalho futuro. Quem sabe moldar cursos e percursos formativos de adolescentes e jovens, em sequências de certificações, numa renovação da instrução programada, um pouco mais sofisticada, ou apenas envernizada, pelo uso da tecnologia.
Tudo isso que estava a caminho foi enormemente acelerado. Há um aproveitamento da situação de emergência sanitária e da pandemia da Covid, quando as ofertas das plataformas e APPs gratuitos “inundaram o nosso território”, nesse processo de colonização digital.
É preciso resistir. Porque, se não houver resistência, uma luta pela autonomia universitária e mesmo soberania da nação, eles seguirão avançando. O próximo passo será eliminar críticas como essa, afim de conquistar o que Gramsci chamou de “consciência superior”. Ou aquilo que Dardot & Laval falaram no seu livro “A nova razão do mundo”, sobre o neoliberalismo conquistando mentes e corações, numa espécie de dominação de espectro total executada e controlada pelo mercado. [8]
Esse processo é o que o francês Cedric Duran tem chamado de tecnofeudalismo, onde, a relação tecnofeudal se dá com o servo se oferecendo ao senhor, para ser ainda mais explorado, em troca da sobrevivência. [9] E isso já está indo muito além dos trabalhos de aplicativos de entrega e transportes. Já alcançou a educação e a saúde com trabalhadores sem relações formais e com mão de obra intermediada por plataformas e aplicativos.
Algumas universidades da Europa já estão reagindo. Na Itália, Alemanha, França. Estão exigindo leis para proteger as universidades (como instituições da sociedade) das grandes plataformas de tecnologia, Big Techs e suas associadas. [10]
Em síntese, é urgente questionar o “uso natural” das plataformas, mas em especial desmontar a sua lógica extrativista e de concentração de poder e lucros, contra os direitos coletivos da sociedade. Por isso, o seu uso precisa ser controlado pelos professores, pelas instituições e pelas nações.
Transformações geradas pela digitalização do ensino refletem também movimentos do modo capitalista de produção na direção do plataformismo
Na primeira parte, eu fiz menção sobre como chegamos ao que chamo de “dominação tecnológica” agora pretendo falar um pouco mais como esse processo vem se desenrolando, as estratégias dos agentes quem mais lucram com esse movimento, assim como uma análise crítica das tendências geradas por esse uso ampliado e “naturalizado” das plataformas digitais na educação a partir da emergência da crise pandêmica.
A plataformização é um processo em curso que pode estar iniciando uma espécie de sociedade das plataformas em que se identifica que essa forma de intermediação já está contribuindo para uma nova de reorganização da sociedade contemporânea de forma similar ao que produziu o taylorismo/fordismo como modo de produção capitalista há um século.
As Plataformas Digitais atuam como intermediárias entre grupos de produtores e consumidores na produção e na comunicação. Esse é o fator fundante da “Plataformização” que tem transformado as relações de trabalho e a forma como interagimos e vivemos em sociedade.
A Plataformização se pontifica no circuito onde se dá enorme extração de valor e assim produz significativas transformações no MPC. Na década de 20 tivemos o Fordismo que, em grande parte, influenciou a forma como organizamos as nossas escolas com grades, disciplinas, séries, etc., teoria e prática, técnica e cultura, etc. Repetindo a conhecida Divisão do Trabalho presente na produção material.
Depois nas décadas de 80/90 tivemos o Toyotismo com a flexibilização da Divisão do Trabalho, processos de enriquecimento de cargos e produção em equipes. É fato que essa mudança pouco influenciou as escolas e as universidades. Pelo menos em grandes proporções. As experiências, por exemplo, da pedagogia por projetos, foram localizadas e em pequenas unidades e não chegaram a se expandir para os sistemas de ensino, embora ainda seja utilizada como prática pedagógica em disciplinas e cursos.
Assim, desde 2015 entramos na etapa do Plataformismo, ou da Plataformização e hoje, já começamos a ver as transformações nas estruturas da escolas/universidades e veremos adiante, onde chegaremos no pós-pandemia. A digitalização do ensino e da pesquisa tem bônus, porque é lucrativa para aqueles já ganhavam com a educação, mas tem ônus que precisam ser analisados de forma crítica. [11] [12]
O esquema gráfico da figura 3 abaixo, apresenta, de forma sintética o marco temporal e as principais características das transformações em curso. É importante apresentar que o surgimento de novas etapas como o Toyotismo e agora o Plataformismo, não representa a supressão das etapas anteriores que acabam por se misturarem ao fenômeno mais recente. Como exemplo, a forma de controle e supervisão técnico-digital executada pelas plataformas digitais, são formas atualizadas do taylorismo, já conhecido. No caso atual, em que o patrão ou o supervisor é o algoritmo, o aplicativo ou a plataforma digital.
Figura 3: Plataformismo: Transformações do Modo de Produção Capitalista
É evidente que o incremento do uso da tecnologia pode ser diferente do que se identifica. Ao invés de exploração exponencial de pessoal, a exploração de possibilidades para a melhoria e o enriquecimento dos processos educacionais, conforme as direções de utilização da tecnologia. Porém, o que se vê é que estamos seguindo numa direção contrária, quando se busca na essência é a redução de custos, maior produtividade e, consequentemente mais lucros ou rendimentos.
A tecnologia digital não vai regredir e não cabe um novo movimento ludista (a destruição das máquinas e a negação da tecnologia dos trabalhadores ingleses no sec. XVIII nos primórdios da Revolução Industrial). Desta forma, será preciso direcionar as políticas públicas que retome o controle deste processo, como necessidade em termos civilizatórios, no lugar da lógica produtivista e de apropriação de valor. O fato é que a Tecnologia deixou de ser um fator ligado somente à produção, e hoje junto com a comunicação, produz essa dominação ampliada sobre a sociedade (espectro total).
Não se deve deixar de lado que Educação é muito mais que intermediação / circulação de informações ou conhecimento. A lógica da plataformização agiliza os fluxos de informação, mas não garante interação. Assim, a plataformização até poder atender ao comércio global (e-commerce), ao marketplace (shopping virtual) dos deliverys – onde são menos danosos -, mas não a processos que exigem interação social como o caso da educação.
Como já comentado anteriormente, o processo de plataformização deve ser visto como um fenômeno multidimensional e transescalar. Repito também que as PDs são fundamentalmente meios de produção e meios de comunicação onde se dá a intermediação da informação no ambiente das conhecidas redes sociais. Meio e mensagem num mundo globalizado em termos de territórios e relações de poder.
Fragmentação, guetificação e individualismo parecem marcas da plataformização da educação
Já é possível identificar claramente que a plataformização produz mudanças no Modo de Produção Capitalista (MPC) e na forma como as pessoas interagem e leem o mundo. Transformações para além da produção, mas também na forma de organização dos serviços e da educação, assim como a escola também se pautou na taylorização e na produção em massa para se organizar.
Nessa nova etapa do MPC, as PDs integram e desintegram. Assim, como as PDs como meio de comunicação se fragmentam, pulverizam, tendem à superficialização e à diversidade, mais que ao aprofundamento.
É neste contexto que a fragmentação vai se tornando um dos maiores males do avanço da digitalização seja como meio de produção e simultaneamente de comunicação. E a fragmentação estará cada vez mais ligada às dificuldade de aprendizagem e de reflexão, porque exige múltiplas atenções.
Vive-se no presente sob o domínio do roubo do nosso tempo – Cronofagia [livro do italiano Davide Mazzocco recuperou o termo do francês Jean-Paul Galibert manifesto Cronòfagi (2015)]. [13] Roubo do nosso tempo, sono, das ideias e da atenção necessária à construção do conhecimento que é o inverso da fragmentação. Somos bombardeados de todos os lados, por diferentes instrumentos que retiram nossa atenção, a nossa capacidade de ligar os milhares de fatos que nos chegam simultaneamente.
Desta forma, também fomos nos transformando mais em meios do que em capacidade de leitura e interpretação dos fatos e das mensagens. É também por essa razão que insisto que esse fenômeno precisa ser interpretado e lido de forma multidimensional, dimensão econômica, política (das relações de poder), espacial, geopolítica, geoeconômica, ambiental, societária, sociológica, antropológica, psicológica, educação, etc.
Nessa linha interpretativa é possível também identificar que as PDs como meio de comunicação têm levado a processos de guetificação e/ou tribalização. Antes das PDs, a academia e a pesquisa já eram acusadas de guetos. Talvez, isso se intensifique, embora tenhamos a sensação e a esperança do inverso, de que estamos nos reintegrando com a sociedade, como uma espécie de “universidade aberta”.
Hoje estamos mais controlados e também mais colonizados. Isso me faz lembrar de Foucualt e do seu panóptico, como tão bem relacionou o filósofo coreano Byung Chul Han que nos trouxe a ideia do panóptico digital´, para além da retomada também do conceito da psicopolítica. [14]
O fato é que se torna difícil imaginar o processo educacional apartado da “sociabilidade pessoal” nesse esquema, mesmo que “híbrido” da intermediação digital das plataformas.
Não há muitas dúvidas de que estamos sendo empurrados para um “modelo híbrido”, mas nossas cabeças sairão desta crise sanitária e pandêmica, mais digital do que pessoal e social.
Tenderemos a pensar mais em saídas digitais do que de interação social. Possivelmente, mais individualistas que coletivistas. A escola era também o espaço onde sempre se aprendia mais, no interior do ambiente da escola e da universidade, do que necessariamente na sala e na relação exclusiva professor-aluno.
De certa forma, o digital pode bagunçar a estrutura taylorista da escola e da universidade, baseadas na estrutura das disciplinas, nas grades curriculares... que engessam e querem dirigir o processo de construção do conhecimento. Chegamos a pensar na educação por projetos, mas infelizmente não saímos de projetos pilotos e em escolas para poucos e pequenos grupos, como dissemos anteriormente.
Desconfio que agora a tendência maior será na direção de uma educação mais individualizada, mais “skinerizada”, talvez educação para castas e por isso a preocupação com a guetificação. O que seria muito ruim e passos atrás na história da formação humana.
Porém, dialeticamente, pode-se intuir que esse processo avançará e simultaneamente produzirá resistências a partir de suas contradições. Assim, é necessário acompanhar, investigar, estudar e debater essa realidade. Na dúvida, em educação, o trivial sempre ofereceu mais garantias para a parte da população que mais precisa da escola, como chance - quase única - de acesso ao conhecimento para ascensão social.
Eu me pego muitas vezes, sentindo que aprendi mais questões, mas fico me questionando se me aprofundei nos temas. Porém, eu também me apanho algumas vezes me sentindo mais ansioso e depressivo, porque não dou conta de ler, estudar, assistir a todos podcasts, webinares, lives, textos, artigos que chegam a cada um de nós em cascatas.
Parece um movimento contraditório entre intensidade dispersiva e estudo e aprofundamento qualitativo e interpretativo. Se fossemos ver isso em termos espaciais eu diria que é um movimento dialético. Horizontal por conta da fragmentação e dispersão e outro Vertical, quando se busca o aprofundamento.
Talvez seja a dialética da aprendizagem e da educação, que já parece majoritariamente digital que lida com essas forças que parecem mais centrífugas, por conta da dispersão que o fenômeno provoca.
A plataformização na educação está gerando sofrimento, stress, medo e insegurança tanto em professores, quanto em alunos e em toda a sociedade
Todos esses movimentos aqui brevemente relatados e analisados estão produzindo consequências na sociedade como um todo e de forma especial entre profissionais da educação e estudantes.
É um processo ainda pouco percebido, porque o isolamento social físico ainda encobre muito desta realidade que mistura ansiedade pelo que estaria deixando de ser ensino e aprendido e medo dos riscos e do que virá pela frente, tanto em termos de classes profissionais, quanto de futuro dos estudantes.
Duas pesquisas descortinam pontas disso que estaria encoberto. Segundo o Datafolha, em 2020, 4 milhões (8,4%) dos estudantes, com idade entre 6 e 34 anos, matriculados antes da pandemia, abandonaram a escola. Trata-se de uma pesquisa por amostragem realizada com 1.670 entrevistas feitas por telefone, com estudantes ou seus responsáveis, entre os dias 30 de novembro e 9 de dezembro de 2020, que traz uma estimativa da repercussão sobre 43 milhões de estudantes matriculados no país, sendo 26,9 no ensino fundamental, 7,55 milhões no ensino médio e 8,6 milhões de matrículas no ensino superior. [15]
Outra pesquisa com dados relevantes sobre o tema foi realizada pelo Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho Docente (Gestrado/UFMG), entre 8 e 30 de junho 2020, em parceria com a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE). [16]
A investigação foi feita com um universo expressivo de 15.654 professores, sendo 78% mulheres e 22% de homens, em todos os 27 estados da federação, proporcionalmente ao nº de docentes de suas redes: 49% municipais, 39% estaduais e apenas 1,2% da rede federal e 11% simultaneamente das rede estadual e municipal e trouxe como resultados:
a) 89% nunca tinham tido experiência em “ensino remoto”; b) 50% consideravam que tinham regular habilidade para lidar com tecnologias digitas, 24% consideravam fácil e 17% difícil esse manejo. c) 42% disseram que não receberam nenhum tipo de formação para essa atuação e que utilizavam por conta própria; 21% se viravam com tutoriais e 25% tinham recebido alguma formação da Secretaria de Educação. d) 82% estavam realizando trabalho de casa, mesmo percentual que identifica que aumentaram suas horas de trabalho em relação às aulas presenciais. e) 51% eram obrigados a compartilhar recursos tecnológicos de acesso com outras pessoas do lar e tinham tempo restrito. f) 46% identificam que o nível de participação dos estudantes nas atividades diminuiu um pouco e 38% drasticamente. g) 80% consideram que isso se dá porque os estudantes não têm acesso à internet e demais recursos e 74% observa que as famílias não conseguem ajudar os estudantes nas suas atividades. h) 69% têm medo e insegurança por não saber nem quando e nem como será o retorno à normalidade.
O resultado dessas duas pesquisas apontam indicadores que causam enorme espanto, que surge em meio às mortes e à necropolítica que cerca a vida de todos nós.
As pessoas e os professores estão todos exaustos e se sentido ainda mais explorados, que em boa parte pode ser também atribuído à individualização que esse processo está nos levando. A tecnologia nos impregna de individualidades, na medida em que o seu uso nas aulas-online, foi se tornando, quase uma única alternativa, para alguma educação durante a pandemia.
Mas, os professores não aguentam mais o ambiente online e os alunos não aguentam mais assistir aulas que foram pensadas para serem desenvolvidas o olho no olho e que digitalmente perdem o encantamento e muitas vezes, o sentido.
Neste ponto é interessante retomar novamente ao filósofo coreano, Byung Chul Han, autor de um breve e bem texto escrito agora em maio de 2021. Aliás, um texto que serve como contexto nessa etapa da conversa sobre o sofrimento mensal e educadores e estudantes. O título e subtítulo: “O vírus capitalista do cansaço incessante” - Depressão e esgotamento, que transbordam na pandemia, são sintomas de profunda crise de liberdade. Encontros, que revigoram a vida, sucumbem. Descarnados, somos reduzidos a nós mesmos — bem ao gosto neoliberal. Resgato deste artigo um trecho em homenagem aos professores e alunos:
“A pandemia faz com que essa forma de comunicação, essencialmente desumana, se torne a norma. A comunicação digital nos deixa muito, muito cansados. É uma comunicação sem ressonância, uma comunicação sem felicidade. Em uma reunião do Zoom, não podemos, por razões técnicas, nos olhar nos olhos. Tudo o que fazemos é olhar para a tela. A ausência do olhar do outro nos cansa. Esperançosamente, a pandemia nos fará perceber que a presença física de outra pessoa é algo que traz felicidade, que a linguagem implica experiência física, que um diálogo bem-sucedido pressupõe corpos, que somos criaturas físicas. Os rituais que temos perdido durante a pandemia também implicam em experiência física. Eles representam formas de comunicação física que criam comunidade e, portanto, trazem felicidade. Acima de tudo, eles nos afastam de nossos egos. Na situação atual, o ritual seria um antídoto para o cansaço fundamental. O aspecto físico também é inerente à comunidade como tal. A digitalização enfraquece a coesão da comunidade na medida em que tem o efeito de desencarnar. O vírus nos afasta do corpo.” [17]
Byung parece tentar evitar com o desejo da comunhão e da sociabilidade física, o processo que parece em curso de um encaminhamento em direção à individualização, “ao sujeito que se faz por si próprio”, uma “fábrica do sujeito neoliberal” [8], entranhada nas pessoas e na sociedade. Assim, ao contrário, pendurar várias tipos de softwares e de plataformas é na prática um arremedo e nunca solução.
Agora, já existe até quem pense em separar as etapas do processo de aprendizagem do aluno. Querem flexibilidade de professores e alunos. Querem artistas. Querem quem possa ser bom tanto no desempenho presencial quanto à distância. Um superdocente ainda mais explorado, já que pode ter menor remuneração, porque trabalha de casa, sua aula pode ser reproduzida e o exército de reserva se expandiu.
É também uma espécie de mimetismo que tenta juntar a aula presencial e adaptá-la ao mundo virtual. Esses mesmos dizem e vendem a ideia de que as possibilidades que essa nova mídia oferece, seriam imensas, embora, o que se tenha, seja basicamente, a filmagem da aula que antes era presencial. Mas, a tecnologia gera muitas tensões.
Os “especialistas” dizem que “a nova mídia deve ser usada na medida da necessidade e no tempo adequado”. E quem sabe o que é adequado? Simulam-se aulas presenciais no mundo virtual em que os alunos ficam entediados, a família desesperada e os professores encurralados e estressados.
Parece que se deseja dividir ainda mais funções na tarefa de educar, o que seria um neotaylorismo. Há quem sugira professores-atores, que seriam mais aptos a esta tarefa de transmitir e empolgar, num ambiente da sala de aula virtual. Tudo é estranho e diferente. Cansativo. Estressante.
De outro lado é necessário observar o movimento de capitalização e financeirização que os agentes privados que controlam empresas de ensino. Na prática se trata da transformação de um serviço prestado na área de educação que passa a ser tratado como gestão de ativos na lógica que Mazzucato descreve. [5]
As universidades SA, como a Estácio S.A. (hoje Yduqs), Kroton, Ânima, Laureate, Unip, Uninove, etc. crescem nos últimos anos no Brasil, num “mercado” que já supera 3 milhões de matrículas e de algumas dezenas de bilhões de reais de receita. [18] Estes agentes (corporações), naturalmente, estão vibrando com a expansão da EaD, mesmo que cobrada a preço de aula presencial, neste modelo já batizado como híbrido – e definitivo -, à base dos sopapos, em meio aos lucros que são produzidos a partir da colossal redução de custos, professores mais baratos e sem despesas de consumo e quase sem instalações. Muitos dizem que é um caminho sem volta. Importa menos o resultado do processo educacional e mais a lógica do capitalismo de gestão de ativos entre “Retorno & Riscos.
Assim, com um olhar mais geral e numa perspectiva de totalidade sobre esse processo, é possível ainda enxergar nesses movimentos, que “o capitalismo está se deslocando”, como afirma Dowbor. [19] Neste sentido, começam a surgir transformações e novas formas de organizar a sociedade, os negócios econômicos e o funcionamento das instituições estão em curso. A escola e a universidade estão no meio deste processo ou desse tsunami.
Por tudo isso, absolutamente não pode ser considerado razoável ver como natural a intensificação, ou mesmo massificação do uso das plataformas digitais, sem críticas e sem a busca de alternativas e limitações para aqueles que mais ganham com este fenômeno, sem observar os interesses de toda a sociedade. Desta forma, esse esforço para conhecer mais profundamente o processo em curso da plataformização na educação, deve ser visto também como início de ações para a transformação, numa perspectiva de uma utilização da tecnologia a favor da maioria, para além do período de emergência sanitária.
Referências:
[1] CASTELLS, M. A sociedade em rede. Paz e Terra: São Paulo. 2002.
[2] HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: BoiTempo, 2005.
[3] PESSANHA, Roberto Moraes no Portal 247 em 22 de outubro de 2020. Com pandemia, setor de tecnologia é hegemônico no Top 100 do Financial Times. Disponível em: https://www.brasil247.com/blog/com-pandemia-setor-de-tecnologia-e-hegemonico-no-top-100-do-financial-times
[4] PESSANHA, Roberto Moraes no Portal 247 em 22 de outubro de 2020. O modus-operandi das Big Techs. Disponível em: https://www.brasil247.com/blog/o-modus-operandi-das-big-techs
[5] MAZZUCATO, M. O valor de tudo: Produção e apropriação na economia global. São Paulo. Schwarcz S.A. São Paulo. 2020.
[6] Matéria no Valor em 2 de novembro de 2020. Laureate anuncia venda de operações no Brasil por R$ 4,6 bilhões para Ânima. Disponível em: https://valorinveste.globo.com/mercados/renda-variavel/empresas/noticia/2020/11/02/laureate-anuncia-venda-de-operacoes-no-brasil-por-r-46-bilhoes-para-anima.ghtml
[7] A expressão skinerizada deriva das ideias do psicólogo behaviorista americano Burrhus Frederic Skinner. B. F. Skinner foi professor na Universidade Harvard de 1958 até sua aposentadoria, em 1974. Skinner considerava o livre arbítrio uma ilusão e ação humana dependente das consequências de ações anteriores. Para Skinner a educação devia ser planejada passo a passo, de modo a obter os resultados desejados na "modelagem" do aluno. Em síntese, Skinner acreditava na possibilidade de controlar e moldar o comportamento humano.
[8] DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo - Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: BoiTempo, 2017.
[9] DURAND, Cédric. Technoféodalisme: Critique de l’économie numérique (Tecnofeudalismo: crítica da economia digital). Paris. Éditions Zones, 2020.
[10] Artigo da reitora da Universidade de Amsterdã, Karen Maex, em 25 de janeiro de 2021, em faz um chamamento a produção de leis para proteger e garantir a autonomia das universidades da agressão das grandes plataformas de tecnologia. Rector calls for EU law to protect universities’ tech autonomy. Disponível em: https://www.researchprofessionalnews.com/rr-news-europe-regulation-2021-1-rector-calls-for-eu-law-to-protect-universities-tech-autonomy/
[11] PESSANHA, Roberto Moraes. Commoditificação de dados, concentração econômica e controle político como elementos da autofagia do capitalismo de plataforma. Revista ComCiência do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp e SBPC. Disponível em: <http://www.comciencia.br/commoditificacao-de-dados-concentracao-economica-e-controle-politico-como-elementos-da-autofagia-do-capitalismo-de-plataforma/>.
[12] PESSANHA, Roberto Moraes. Inovação, financeirização e startups como instrumentos e etapas do capitalismo de plataformas. In. Geografia da Inovação: territórios, redes e finanças. P.433-468. Rio de Janeiro. Consequência, 2020.
[13] Artigo de Giuseppe Luca Scafiddi publicado em 17 fev. 2020, no portal Outras Palavras. Cronofagia: o roubo do tempo, sono e ideias. Disponível em: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/cronofagia-o-roubo-do-tempo-do-sono-e-das-ideias/
[14] HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte. Editora Âyiné, 2018.
[15] Matéria da Folha de São Paulo em 22 de janeiro de 2021. SALDAÑA, Paulo. Cerca de 4 milhões abandonaram estudos na pandemia, diz pesquisa. Taxa de abandono é de 10,8% no ensino médio e 16,3% no superior, segundo levantamento Datafolha a pedido do C6 Bank. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2021/01/cerca-de-4-milhoes-abandonaram-estudos-na-pandemia-diz-pesquisa.shtml
[16] PESSANHA, Roberto Moraes. Artigo publicado em 16 jul. 2020 no blog do autor e no Portal 247. Pesquisa da UFMG/CNTE sobre o trabalho docente da rede pública pela via digital aponta precariedades, intensificação e baixa participação dos estudantes. Disponível em: http://www.robertomoraes.com.br/2020/07/pesquisa-da-ufmgcnte-sobre-o-trabalho.html. No Portal 247, em 16 de julho de 2020. Ensino digital na pandemia: precariedades e baixa participação dos estudantes. Disponível em: https://www.brasil247.com/blog/ensino-digital-na-pandemia-precariedades-e-baixa-participacao-dos-estudantes
[17] HAN, Byung-Chul. O vírus capitalista do cansaço incessante. Portal Outras Palavras em 13 de maio de 2021. Disponível em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/o-virus-capitalista-do-cansaco-incessante/
[18] Matéria no Valor em 25 de maio de 2021. Curso on-line e compras driblam crise. Grandes grupos de ensino com capital aberto na B3 aumentaram base de alunos no vestibular do começo deste ano. Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2021/05/25/curso-on-line-e-compras-driblam-crise.ghtml
[19] DOWBOR, L. O capitalismo se desloca: novas arquiteturas sociais. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2020.
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