Perdas e danos

O golpe de 2016 e o que o sucedeu, incluindo a eleição de Jair Bolsonaro, incluem-se no terreno das dores que não transformam, a não ser pelo retrocesso, desviando a condução dos nossos sistemas de organização para a destruição e o atraso. Por azar, a irrupção da Convid-19, maltratando e matando frações importantes da população



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As crises que afligem um país são muitas vezes dores de afirmação. A sociedade, digamos assim, escolhe os problemas que deve resolver como se sofresse de cãibras ou contrações musculares. Algumas apontam para processos de transformação que alteram, de fato, a qualidade de um país, do ponto de vista econômico ou cultural. Na França do século XVIII, dando a impressão de que se previa o que surgiria a seguir, produziu-se pensamento e ciência em proporções inéditas, antes que a população saísse às ruas para fazer o que havia necessidade de ser feito. Outras dores, no entanto, dão a impressão de ser provocadas, quando um grupo político, uma facção ou mesmo setores do poder acertam medidas que, em vez de ajudar, desencadeiam fúrias erínias, personificações que, nos mitos gregos, punem os mortais. 

O golpe de 2016, retirando arbitrariamente Dilma Rousseff do poder, e o que o sucedeu, incluindo a eleição de Jair Bolsonaro, incluem-se no terreno das dores que não transformam, a não ser pelo retrocesso, desviando a condução dos nossos sistemas de organização para a destruição e o atraso. Por azar, a irrupção da Convid-19, maltratando e matando frações importantes da população, associou-se ao sofrimento em curso como se, entre as fúrias, merecêssemos as mais venenosas e perniciosas. Cabe consignar que, no aspecto das medidas para contornar este problema, não encontramos na sede do governo uma administração à altura dos desafios, com ministros da saúde que simplesmente não sabiam o que escolher, entre o que dizia a ciência, por um lado, e o Presidente, por outro. As hesitações escandalosas confundiram a população e o vírus se espalhou a passos galopantes. Uma última manifestação de inconveniência: o ministro do STF Kássio Nunes Marques, agradando ao chefe, concedeu liminar favorável ao funcionamento das Igrejas, a despeito das determinações das Prefeituras em favor de uma segregação social mais rígida que detivesse a expansão da doença. Como se estivéssemos numa guerra com os canhões inativos, as baixas se acumulam umas sobre as outras. Não pode ser mais aterrador.

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Contudo, confusões nunca vêm sozinhas. Numa troca de ministros, a presidência achou por bem desmontar a equipe de comando do Ministério da Defesa. Logo se imaginou um Golpe de Estado. Como temos trauma só de pensar na ideia, levamos certo tempo para entender que não. Tratava-se de uma manobra talvez para garantir mais servilismo por parte desse corpo constitucional. Não houve grandes transtornos, a não ser, como recentemente nos habituamos aos diminutivos, uma “dorzinha”, como uma “gripezinha” ou “afliçãozinha” na barriga. 

Não é preciso estudar muito para constatar que, no nosso caso, não há em processo, uma crise de afirmação. De sofrimento, sem dúvida. De angústia, sim. Mas de afirmação, como em 1789, na França, ou 1917, na Rússia, estamos distantes. Navegamos nas águas das perdas e danos, atrás de um porto, quem sabe um pleito com bons quadros para recolocar a Presidência da República no lugar de onde nunca deveria ter saído. Vale a pena, aliás, quanto a Perdas e danos, o filme de Louis Malle, de 1993, com Jeremy Irons e Juliette Binoche, retornar ao que diz, em determinado instante: “Cuidado com as pessoas que sofreram. Elas sabem que podem sobreviver”.

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