Pequim vê o dedo de Trump e não irá ceder

A histeria sinofóbica atinge níveis inéditos nos Estados Unidos, e o contra-ataque chinês é um novo e maciço plano econômico

Donald Trump e Xi Jinping
Donald Trump e Xi Jinping (Foto: REUTERS / Carlos Barria)


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Por Pepe Escobar, para o Asia Times

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

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Coisas ainda mais estranhas aconteceram.

Todos esperavam que Donald Trump, Presidente dos Estados Unidos, virasse a mesa e decretasse o que seria, na prática, uma pena capital contra a China em razão da situação em Hong Kong. Em um ambiente onde o Twitter e o Presidente dos Estados Unidos travam uma guerra aberta, a regra agora é que não há mais regras.

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Então, no final das contas, as medidas anunciadas contra a China acabaram sendo um anticlímax.

Os Estados Unidos, no momento atual, estão rompendo relações com a Organização Mundial de Saúde (OMS). As repercussões geopolíticas são imensas, e vai levar tempo para que esse fato seja assimilado por completo. No curto prazo, algo tem que servir de bode expiatório para o pavoroso fracasso dos Estados Unidos no enfrentamento da Covid-19, então, que seja uma instituição da ONU. 

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O status preferencial de Hong Kong nas transações de comércio internacional também será extinto, embora em um futuro nebuloso e em termos ainda indeterminados. 

A fase 1 do acordo comercial Estados Unidos-China permanece em vigor - pelo menos por enquanto. No entanto, não há qualquer garantia de que Pequim não passe a duvidar dele.

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Resumindo: os "investidores" foram devidamente pacificados, por enquanto. O Time Trump parece não ser exatamente versado nas sutilezas da Lei Básica de Hong Kong, já que o presidente insistiu na "pura e simples violação das obrigações, constantes em tratado, de Pequim para com o  Reino Unido".  A lei de segurança nacional foi atacada como sendo "a mais recente" agressão chinesa contra sua própria região administrativa especial. 

Compare-se tudo isso às Duas Sessões que tiveram lugar em Pequim no dia anterior, com a intrigante e keynesiana performance do Primeiro-Ministro Li Keqiang. Seu desempenho foi admirável não apenas pelo que não foi dito, mas também pelo que ele se decidiu por trazer a público. 

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Analisemos alguns dos principais pontos dessa fala. Li enfatizou que a resolução do Congresso Nacional do Povo estipulando uma lei de segurança nacional para Hong Kong tem como objetivo proteger o "um país, dois sistemas", não consistindo em um ato de "agressão".

Ao invés de demonizar a OMS, Pequim comprometeu-se com uma investigação científica séria das origens do Sars-Cov-2. "Nenhum acobertamento" será admitido, disse Li, acrescentando que uma compreensão clara e científica irá contribuir para a saúde pública mundial. Pequim, além disso, apóia uma análise independente do tratamento dado à Covid-19 pela OMS. 

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Em termos geopolíticos, a China rejeita uma "mentalidade de Guerra Fria", e espera que a China e os Estados Unidos tenham condições de  cooperar. Li enfatizou que essa relação pode ser ou mutuamente benéfica ou mutuamente nociva. O desacoplamento foi descrito como uma péssima ideia, tanto para as relações bilaterais como para o mundo em geral. A China, afinal de contas, vai começar a importar mais, e isso poderá beneficiar as empresas dos Estados Unidos. 

Internamente, o foco absoluto - 70% de todas as novas dotações orçamentárias - irá para o emprego, o apoio a pequenas e médias empresas e medidas voltadas ao estímulo ao consumo, mais que para investimentos em construção de infraestrutura. Resumindo, nas palavras do próprio Li: "O governo central irá operar com um orçamento apertado". 

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Se não totalmente sisífica no longo prazo, essa meta será no mínimo uma "tarefa intimidante", na terminologia de Li, tendo em vista que o prazo proposto pelo Presidente Xi Jinping para o atingimento da meta de eliminar a pobreza em toda a China seria o final de 2020.  

Li não disse absolutamente nada sobre três temas-chave: o alarmante impasse no conflito de fronteira entre a Índia e a China, nos Himalaias; as perspectivas dos projetos da Iniciativa Cinturão e Rota; e as complexas relações geopolíticas e geoeconômicas com a União Europeia. 

A não-menção a esse último tema é especialmente digna de nota face à avaliação muito animadora feita pela Chanceler Merkel no início desta semana, e também ao comentário proferido pelo chefe das relações exteriores da União Europeia, Josep Borrell, a um grupo de embaixadores alemães, dizendo que "o fim do sistema liderado pelos americanos e a chegada de um século asiático" está agora "acontecendo em frente a nossos olhos".

Confirmando boatos que emanam constantemente de Frankfurt, Berlim, Bruxelas e Paris, a China e o Leste Asiático vêm ascendendo à posição de principal parceiro comercial da União Europeia. Esse é um assunto que será amplamente discutido na cúpula União Europeia-China, a ser realizada no próximo outono na Alemanha. A União Europeia está se transformando na Eurásia. O Time Trump não vai gostar nem um pouco. 

O dançando com lobos remixado 

Como seria previsível, as lideranças de Pequim têm que concentrar o foco no consumo interno e alcançar o nível seguinte da produção tecnológica, para  não cair na notória "cilada da renda média". A regulagem fina do equilíbrio entre a estabilidade interna e um fortíssimo e amplo alcance global é uma outra tarefa que faz pensar em Sísifo. 

Xi, Li e o Politburo sabem perfeitamente que a covid-19 afetou fortemente a migrantes, agricultores e pequenos empreendedores. O risco de turbulência social é muito alto. A proteção contra o desemprego está longe dos níveis escandinavos. Então, voltar ao trabalho, rapidamente, tem que ser a prioridade número um.     

Essa estratégia vem envolta em uma nova ofensiva diplomática.  O ministro das relações exteriores Wang Yi, em geral meticulosamente nuançado e polido, vem se tornando cada vez mais exasperado. No início desta semana, Yi definiu a demonização da China pelos Estados Unidos com relação à covid-19 como "um produto de três negativas: nenhum fundamento, nenhuma base factual e nenhum precedente internacional".

Ele, além disso, descreveu como "fantasias" as tentativas de chantagear a China com ameaças. O Global Times, de sua parte, atacou o governo Trump por sua "típica bandidagem internacional", enfatizando também que "tachar a diplomacia chinesa de 'lobo guerreiro' reflete uma ideologia extremada". 

A narrativa do "lobo guerreiro" fatalmente irá pegar fogo. Pequim parece pronta a transformar seu corpo diplomático em um bando de lobos guerreiros. Não devemos nos esquecer do General Qiao Liang: se a China for forçada a dançar com lobos, que seja ela quem dita o ritmo. 

Isso se aplica perfeitamente à questão de Hong Kong. Pense o Time Trump o que pensar, Pequim não tem o mínimo interesse em perturbar o sistema financeiro de Hong Kong nem em provocar o colapso do índice Hang Seng. Mas foi exatamente isso que os protestos black block conseguiram, no ano passado. 

O que vimos acontecer ao longo desta semana é o resultado daquilo que uma força-tarefa enviada a Shenzhen no ano passado com a missão de examinar todos os ângulos dos protestos relatou às lideranças de Pequim. 

Consta que foram cortadas as fontes de financiamento dos black blocks mais radicais. Os  "líderes" quinta-colunistas locais foram isolados. Pequim vinha sendo extremamente paciente ao lidar com essa grande bagunça. Então veio a covid-19. 

O consenso econômico em Pequim é que a presente recuperação será em forma de L - aliás, muito lenta na base do L. Portanto, o Ocidente comprará muito menos e investirá muito menos na China. 

Isso significa que Hong Kong não vai ser muito útil. Sua melhor chance já foi oferecida repetidamente: integrar-se à Área da Grande Baía e fazer parte do próspero agrupamento sul do delta do rio das Pérolas. O setor empresarial de Hong Kong apóia essa ideia. 

Uma outra conclusão foi que, faça Pequim o que fizer, a histeria sinofóbica nos Estados Unidos - e, neste caso, também no Reino Unido - continuará inalterada. Agora, portanto, é o momento certo de lançar mão da lei de segurança nacional que, é claro, combate a subversão, combate os "perucas" (juízes) da era britânica que atuam como quinta-colunistas e, acima de tudo, combatem a lavagem de dinheiro.

Um editorial do Global Times foi ao xis da questão: a lei de segurança nacional é o "dobre de finados" da intervenção dos Estados Unidos em Hong Kong. 

Guerra Fria 2.0

Por mais que  Yi tenha insistido, desta vez diplomaticamente, que estamos à beira de uma nova Guerra Fria, o fato é que a guerra híbrida do governo Trump contra a China - ou a Guerra Fria 2.0 - já está a pleno vapor. 

Mike Pompeo, o Secretário de Estado norte-americano,  vem ameaçando abertamente os aliados e vassalos dos Cinco Olhos, e também Israel, com as consequências que irão sofrer caso se recusem a abandonar algum projeto ligado à Cinturão e Rota. 

Isso está intimamente conectado à avalanche de ameaças e medidas tomadas contra a Huawei e tudo que se relacione com a Made in China 2025, que avança a passos rápidos, mas sem usar a terminologia. 

A estratégia oficial da campanha para a reeleição  de Trump, o  "China, China, China", detalhado em um memorando de 57 páginas dirigido aos republicamos, fatalmente será usada como uma guerra híbrida total, incluindo propaganda ininterrupta, ameaças, tecnologias de guerra informática, guerra cibernética  e furos jornalísticos inventados. 

O objetivo último que todas as cepas sinofóbicas têm em comum, sejam elas comerciais ou ligadas a think tanks, é descarrilar a economia chinesa - um concorrente de primeira linha - usando todos os meios que forem necessários, paralisando assim o processo de integração eurasiana atualmente em curso, cujos três grandes nós, a China, a Rússia e o Irã, são as três maiores "ameaças", segundo a estratégia de segurança nacional dos Estados Unidos. 

Mais uma vez, partiu-se para o vale-tudo. E Pequim não vai parar de contra-atacar na mesma moeda. 

É como se Pequim, até agora, tivesse subestimado a magnitude da obsessão máxima do Deep State e do Beltway, que é permanecer para sempre como o hegêmona incontestado, em termos geopolíticos e geoeconômicos. Cada "conflito" que surgir em algum ponto do tabuleiro é e continuará sendo associado aos objetivos gêmeos de conter a Rússia e desmontar a Cinturão e Rota. 

Em ocasiões anteriores, eu me referi ao Império do Caos, onde uma plutocracia, progressivamente, projeta sua própria desintegração interna sobre o resto do mundo. Mas só agora o jogo começa para valer, com Trump proclamando sua intenção de retomar os testes com bombas nucleares. Não contra um bando de "terroristas" pé-de-chinelo, e sim contra um concorrente de peso e um igual: a parceria estratégica eurasiana.
Seria demais esperar que o Time Trump conseguisse aprender alguma coisa com as análises gramscianas sobre a Cinturão e Rota, que demonstram que o Sonho Chinês - uma variante confuciana do neoliberalismo - marca a evolução da China e seu ingresso no centro da zona de produção da economia neoliberal mundial, beneficiando-se da estrutura jurídica global preexistente. 

O Time Trump vociferou sua própria estratégia. Esperem uma série de contragolpes silenciosos ao estilo Sun Tzu.

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