Pedro Castillo

Um professor eleito para desmontar o neoliberalismo no Peru

Pedro Castillo
Pedro Castillo (Foto: REUTERS/Francisco Vigo)


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Por Francisco Dominguez 

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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Pedro Castillo, o candidato à presidência da coalizão de esquerda Peru Libre, venceu, com 50.14% dos votos, Keiko Fujimori, a filha do infame e desonrado ditador corrupto Alberto Fujimori. Keiko, que obteve 49,86% dos votos, era a candidata de direita do partido Fuerza Popular, uma coalizão apoiada pela elite oligárquica do país.

Para muitos, a robusta performance eleitoral de Castillo no primeiro turno, com 18% dos votos, foi uma surpresa. Até aquele ponto, a principal candidata da esquerda era Veronika Mendoza, pela coalizão Juntos por el Peru, que obteve pouco menos de 8% dos votos. Examinaremos, na sequência, os principais eventos e desenvolvimentos que culminariam nesta extraordinária vitória para a esquerda peruana e latinoamericana.

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A longa crise de legitimidade

 Conforme é típico ao domínio oligárquico na América Latina, sempre que a elite encontra uma ameaça séria a seu domínio ela recorre a métodos autoritários, incluindo repressão brutal e, se necessário, genocídio. Foi o que fez a elite peruana quando, no começo dos anos 1990, encontrou uma resistência massiva à imposição do empobrecimento neoliberal; uma das manifestações mais extremas dessa oposição foi o surgimento do grupo guerrilheiro Sendero Luminoso. A repressão estatal foi substancialmente intensificada com a eleição de Alberto Fujimori à presidência em 1990.

O regime ditatorial de Fujimori durou toda uma década (1990-2000), mas ruiu com o peso de sua própria corrupção, engolido por uma crise constitucional de legitimidade causada por seu desprezo pelos procedimentos democráticos: ele fechou o Congresso, usurpou a autoridade judicial, promulgou uma constituição neoliberal e governou brutal e autocraticamente. Hoje, ele responde a uma sentença de 25 anos de prisão por seu papel em assassinatos e sequestros realizados por esquadrões da morte durante a campanha militar de seu governo contra as guerrilhas de esquerda.

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O sucessor de Fujimori, Alejandro Toledo (2001-2006), não se saiu melhor, ainda que, diferentemente de seu antecessor, não recorresse a métodos ilegais e brutais durante sua presidência. Mesmo assim, ele se encontra em prisão domiciliar em São Francisco enquanto aguarda sua extradição devido a acusações de receber propinas multimilionárias.

Foi, então, a vez de Alan Garcia, líder da APRA, um partido originalmente progressista e populista. Garcia sucedeu Toledo no período entre 2006 e 2011 e cometeu suicídio em 2020, enquanto a polícia vinha o prender por suborno e corrupção durante seu governo.

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Ollanta Humala, superficialmente retratado como uma espécie de Chavez peruano – até mesmo apoiado publicamente pelo próprio Comandante –, derrotou Keiko Fujimori nas eleições de 2011, tornando-se, assim, o presidente do país para o período de 2011-2016. No entanto, como parece ser próprio aos presidentes peruanos, ele e sua esposa foram presos em 2017 sob acusações de corrupção e lavagem de dinheiro. Ambos estão proibidos de deixar o Peru e aguardam julgamento.

A eleição de 2017 coroou Pedro Pablo Kuczynski como o presidente do país entre 2016 e 2021, mas ele não conseguiu romper com a ‘tradição cultural’ e foi forçado a abdicar em 2018 (para evitar um processo de impeachment iniciado em 2017) por ter mentido ao Congresso e por receber suborno em troca de contratos governamentais. Kuczynski também declarou sofrer de problemas cardíacos (como fizeram Fujimori, Toledo e Humala) para beneficiar-se de prisão domiciliar. Evidentemente, ser o inquilino da Casa de Pizarro (o nome popular do palácio presidencial do Peru) é uma tarefa difícil, cheia de estímulos empolgantes que podem afetar o sistema cardíaco.

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Kuczynski teve de ser substituído por seu vice-presidente, Martin Vizcarra, que lançou uma ofensiva contra a corrupção mas foi destituido pelo Congresso em novembro de 2020, acusado de receber suborno em diversas ocasiões, no ano de 2014, em troca de contratos públicos. Acredita-se que seu impeachment foi provocado por sua decisão de fechar o Congresso, acusando-o de obstruir as investigações contra a corrupção.[i]

Vizcarra (que ainda não declarou enfrentar problemas cardíacos) aceitou a decisão do Congresso e foi substituído por seu presidente, Manuel Merino, um líder interino cujo gabinete era dominado pela elite dos negócios. O breve governo de 6 dias de Merino emitiu fortes sinais de desprezo pelas demandas populares por reformas nos sistemas político e judicial, e até considerou postergar as eleições marcadas para 2021 sob o pretexto dos problemas gerados pela pandemia de Covid-19.

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O país explodiu em enormes manifestações de massa, recebidas por uma brutal repressão policial que terminou com dois mortos, algumas dúzias de feridos e muitos mais presos. Merino foi forçado a abdicar no dia 15 de novembro de 2020, e o Congresso nomeou Francisco Sagasti (que havia votado contra o impeachment de Vizcarra) como presidente interino, a quem foi confiada a tarefa de organizar as eleições presidenciais de abril de 2021.

Portanto, desde que, há décadas, a elite peruana subverte o Estado de direito e a credibilidade das instituições nacionais, as principais posições do Estado têm sido ocupadas por membros corruptos ou corruptíveis da classe política (envolvendo todos os principais partidos políticos), em um sistema esmagadoramente dominado pelo capital financeiro, por interesses dos mineradores, dos exportadores de matéria-prima, por um monopólio midiático e por empresas multinacionais. Esses grupos poderosos praticamente não pagam impostos enquanto tomam para si a riqueza do país, deixando o setor agricultor em um estado de negligência total. Esse era o contexto das eleições que levaram Pedro Castillo à presidência do Peru.

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As consequências da ditadura neoliberal no Peru

Nas duas últimas décadas, a performance econômica do país tem sido impressionante, recebendo elogios do FMI: “o Peru continua a ser uma das economias latinoamericanas de melhor performance. Com um crescimento anual real do PIB que se aproxima de 5.4% nos últimos quinze anos, o Peru foi uma das economias com crescimento mais rápido na região, o que permitiu um significativo progresso na redução da pobreza.”[ii]

No entanto, um olhar mais aprofundado gera uma impressão diferente. Em 1970, o nível de pobreza no Peru era de 50% e, em 2000, ele amentou para 54,1%;[iii] até 2006, a pobreza mal havia caído para 49,1% e, apesar de ter diminuído para cerca de 20% em 2019, com a pandemia ela voltou para 30%.[iv] Em síntese, metade da população do país continuou em um estado de pobreza por quase duas gerações e, na última década, cerca de um terço encontrou-se nessa condição. Todavia, esses 30% são enganadores, uma vez que o nível de informalidade do trabalho na economia do país é de assustadores 70% – pessoas que vivem um dia após o outro como vendedores de rua; eles, e suas famílias, passaram fome durante o lockdown.[v]

As duas décadas de sucesso macroeconômico e de horror social têm uma correlação com a chegada ao poder de Alberto Fujimori, quem derrotou o abrangente plano de privatização neoliberal de Mario Vargas Llosa nas eleições de 1990. O governo de Fujimori sistematizou o uso do terror estatal contrainsurgente para eliminar círculos eleitorais rebeldes da sociedade, tais como aqueles da Sierra (as montanhas peruanas), habitada por povos indígenas. No fim dos anos 1980, os departamentos de Ayacucho, Apurimac e Huancavelica já estavam sob lei marcial.

A campanha militar contra a esquerda recebeu o auxílio de uma combinação de extremo sectarismo, intenso dogmatismo e métodos insurrecionários e violentos praticados pelo Sendero Luminoso, um grupo dissidente do Partido Comunista. Esse grupo tinha forte apoio precisamente nos departamentos das regiões montanhosas e, no início dos anos 1990, havia realizado consideráveis incursões nas favelas de Lima, não apenas desafiando o Estado, mas também travando uma feroz campanha contra o resto da esquerda do país.

A resposta governamental foi o Fujimorazo, um autogolpe realizado no dia 5 de abril de 1992 em que o presidente dissolveu o Congresso e desmantelou o judiciário, assumindo plenos poderes executivos e legislativos. Ele também se valeu destes poderes para decretar leis trabalhistas severas e repressivas que destruíram o que restava de um movimento trabalhador já seriamente enfraquecido. Sob Fujimori, a legislação trabalhista foi elaborada para fazer do Peru um paraíso do trabalho flexível, do direito dos gestores à demissão e da casualização dos contratos de trabalho; ao mesmo tempo dificultando a sindicalização e a ação coletiva de negociação dos trabalhadores.[vi]

Em 1993, Fujimori já havia aumentado o número de províncias sob estado de emergência militar de 52 para 66 e, em 1994, quase metade da população vivia em tais zonas – áreas nas quais as forças de segurança reprimia toda a esquerda, e não apenas o Sendero Luminoso. Estima-se que, até 1995, “insurgentes, forças de segurança estatal, traficantes de drogas, esquadrões da morte e paramilitares civis haviam matado mais de 27.000 peruanos”. E, de acordo com a Comisión de la Verdad y Reconciliación, o número de vítimas fatais dos conflitos internos entre 1990 e 2000 foi 69.000.[vii] O Peru tornou-se um campo de morte.

A brutal ofensiva estatal contrainsurgente, lançada em 1980, havia não apenas interrompido, mas também revertido o desenvolvimento de uma esquerda que estava se tornando política e eleitoralmente forte. Nas eleições de 1980, ela obteve um resultado eleitoral combinado de cerca de 12-15%, ainda que dividida entre 5 candidatos mas, em 1985, um candidato da esquerda unificada conquistou impressionantes 24%. No entanto, cinco anos depois, sua parcela caiu para 12%, divididos entre dois candidatos. A esquerda esteve praticamente ausente nas eleições em 1995, 2000, 2006 e 2011; e começou a recuperar-se apenas em 2016.

As reformas estruturais neoliberais de Fujimori (o Fuji-choque), em 1993, incluíam a eliminação dos controles de preços, a total desregulação dos mercados, a privatização de companhias e atividades estatais e uma política monetária apertada. O programa de privatização atraiu investimentos estrangeiros (especialmente nos EUA) em recursos naturais e nos mercados financeiro e de consumo. Isso resultou em uma intensa concentração de propriedades em empresas estrangeiras, assim reduzindo a influência e o poder do capital industrial nacional.[viii]

Com o tempo, a distribuição de renda do país piorou drasticamente. Em 2009, os primeiros 1% e  10% receberam, respectivamente, 29,6% e 56,6% do PIB; 40% dos setores médios de renda receberam 35,8% do PIB, enquanto 50% dos setores de baixa renda receberam apenas 9,4% – uma das maiores desigualdades do mundo.[ix] Não surpreende o estrago feito pela Covid-19 entre os pobres, uma vez que um dia de lockdown, para os 70% trabalhando no setor informal (isto é, milhões de pessoas e suas famílias), significa um dia sem renda. Décadas de privatizações neoliberais e cortes nos gastos estatais (saúde, educação e correlatos), tendo jogado milhões na precariedade e na miséria, tornou-lhes vítimas inevitáveis da Covid-19: até o dia 4 de junho [de 2021], o Peru tinha a maior taxa de mortalidade por milhão do mundo (188.000, com 1.998.056 casos confirmados).[x]

A longa marcha de Castillo

Noticiou-se que, quando foi anunciado que um professor havia ganhado o primeiro turno das eleições, a equipe da CCN (Cable Canal de Notícias) teve de correr para obter informações sobre, e conseguir uma foto de, Pedro Castillo, pois não havia uma imagem sequer dele em seu banco de dados. Como Pedro Castillo e o Peru Livre conseguiram vencer a presidência, ainda que por um fio? O manifesto de Castillo dificulta ainda mais a resposta, posto que os princípios chave de seu programa de governo incluem um ataque frontal ao neoliberalismo; propor a eleição de uma Assembleia Constituinte para elaborar e promulgar uma nova constituição que substitua o modelo econômico neoliberal dominante; uma reforma agrária, a nacionalização dos recursos naturais do país, de forma a garantir que a maior parte da riqueza por eles gerada fique no Peru para erradicar a pobreza; o aumento do gasto estatal em serviços sociais (saúde e educação); e a implementação de redistribuição de renda.[xi] Pior (ou melhor) ainda, Castillo se declara um marxista e um mariateguista (seguidor do intelectual peruano José Carlos Mariátegui, possivelmente um dos pensadores marxistas mais originais e influentes da América Latina).[xii]

O Partido Nacional Peru Libre (PNPL) dá ênfase política às demandas específicas do campesinato peruano: reforma agrária, direitos sociais, educação e saúde, assim expressando as demandas e as aspirações do Peru rural e indígena. Mariátegui, escrevendo nos anos 1920, afirmou que não haveria uma revolução burguesa no Peru porque não havia uma classe social interessada em levá-la adiante. Portanto, a única possibilidade concreta de uma transformação estrutural da sociedade viria de uma revolução socialista, cujo pressuposto era trazer o povo indígena como agente fundamental dessa mudança.

Esse quadro geral ainda é, basicamente, correto no Peru de 2021. Keiko Fujimori teve forte apoio em cidades importantes (por exemplo, Lima e Callao, com 65% e 67%, respectivamente), mas Castillo teve uma vitória esmagadora nas províncias andinas (indígenas), tais como Puno (89%), Huancavelica (85%), Cusco (83%), Ayacucho (82%), Apurimac (81%), Moquegua (73%), Cajamarca (71%), Huánuco (68%) e Pasco (66%). Trata-se de uma vitória[xiii] indígena que não é idêntica a uma vitória do Peru rural contra o urbano, conforme alguns na mídia descreveram a conquista de Castillo. Afinal, 73% da população vive em cidades, enquanto apenas 27% vivem em zonas rurais, isto é, o professor marxista não poderia ter vencido sem apoio substancial nos centros urbanos. A validade do princípio central do PNPL de refundar a nação como um Estado Plurinacional nas linhas do Equador e da Bolívia é, portanto, inegável: pelo país, existem 4 línguas indígenas na região andina (Quechua, Aymara, Cauqui e Jaqaru) e mais 43 na região da Amazônia, 500 anos após a Conquista Espanhola.

A implementação de políticas neoliberais brutais, associadas a uma ‘guerra às drogas’ inspirada na DEA americana, principalmente na região da Amazônia (La Selva), a partir dos anos 1990, significou que comunidades amazônicas sofreram com a parte mais pesada da ‘guerra suja’ contra o Sendero Luminoso e da luta, liderada pelo exército, contra o tráfico de drogas. Enquanto isso, nos Andes, comunidades indígenas foram ainda mais marginalizadas pela mineração agressiva operada por companhias multinacionais. O racismo que suplementou essas agressões levou à resistência organizada e, portanto, ao surgimento de lideranças populares, comunitárias e indígenas.

Disso decore, por exemplo, a eleição de alguns destes líderes emergentes aos governos de Puno, Junín e Moquegua. Muitos também foram eleitos para dirigir províncias e municipalidades, com professores assumindo um papel importante (o próprio Castillo foi prefeito de sua cidade, Anguía, em Cajamarca).[xiv] Logo, como resultado de um desenvolvimento político que durou décadas, o PNPL é um conjunto político militante bem organizado com forte apoio territorial em áreas importantes, com associações e colaborações sólidas com comunidades e organizações camponesas e indígenas (tais como os ronderos[xv]), e sindicatos, especialmente (mas não exclusivamente), de professores. O próprio Castillo liderou a greve dos professores de 2017 em defesa dos salários e demandando incrementos orçamentários para a educação.

Resumidamente, o PNPL teve acesso a recursos locais, dispôs de uma presença institucional em governos locais, provinciais e regionais e, como 60% dos peruanos não possuem acesso à internet, contou, em sua campanha eleitoral, com rádios comunitárias, visitas individuais a cidades pequenas e eventos culturais. Assim, no contexto das eleições de 2021 (no primeiro e no segundo turno), Castillo não apenas foi o outsider; foi um sopro de ar fresco que, no meio de uma pandemia criminalmente gerenciada e de uma profunda crise institucional, trouxe esperança e voz aos oprimidos rurais e urbanos.[xvi]

As próximas tarefas

O resultado eleitoral foi incrivelmente apertado: 8.883.185 votos para Castillo contra 8.783.765 para Keiko Fujimori. Além disso, o PNPL obteve uma minoria de 37 cadeiras que, somadas às 5 obtidas pelo Juntos por el Peru, deixarão 42, das 130, sob o comando de Castillo no  Congresso. Enquanto isso, a Fuerza Popular de Fujimori e as outras coalizões eleitorais de direita alcançaram uma força parlamentar combinada de ao menos 80 cadeiras. Essa última, com toda cumplicidade e apoio da mídia nacional, realizou uma tóxica campanha eleitoral baseada no medo, acusando Castillo de ser um simpatizante do Sendero Luminoso, um “terruco” – gíria pejorativa que significa ‘terrorista’, usada pelo establishment peruano para estigmatizar a esquerda.

Dias antes do segundo turno, Keiko mobilizou o escritor peruano arqui-reacionário Mario Vargas Llosa e o criminoso golpista venezuelano de direita Leopoldo Lopez para apoiar sua campanha eleitoral e derrotar o “comunismo” de Castillo. Keiko, sem qualquer evidência, persistiu na acusação de fraude eleitoral pelo PNPL, demandando a anulação dos votos de mais de 800 seções eleitorais no interior do país. Ela então mobilizou 22 ex-presidentes latinoamericanos e espanhóis de direita (com Aznar e Uribe sendo proeminentes) que divulgaram um comunicado com alegações semelhantes, cobrando que Castillo não fosse proclamado vencedor. Em desespero, ela então organizou marchas em direção a quartéis militares e ao Ministério da Defesa (9 de Junho de 2021) para requisitar uma ação do exército que prevenisse a “vitória do comunismo”. No entanto, poucas horas depois, Castillo se proclamou vencedor, e o Ministério da Defessa emitiu uma nota confirmando a neutralidade política das Forças Armadas e cobrando respeito aos resultados eleitorais.

Essas ameaças foram recebidas por amplas manifestações em Lima e no resto do país, com os ronderos prometendo marchar pela capital se, por fraude eleitoral, a vitória de Castillo fosse roubada. Em 22 de maio de 2021, a Confederação Nacional dos Reservistas do Exército, da Marinha, da Força Aérea e da Polícia – CONAFAP – emitiu uma forte declaração alertando contra qualquer possível fraude no segundo turno, apoiando Pedro Castillo. Ainda que não seja clara a força do apoio que Castillo possui nas Forças Armadas, há nelas uma histórica influência nacionalista de esquerda que origina-se do Governo Revolucionário das Forças Armadas, liderado pelo General Juan Velasco Alvarado (1968-1975);[xvii] muitas das propostas do PNPL assemelham-se àquelas de Velasco.

Com sua vitória limpa, Castillo e seu programa de progressivas mudanças estruturais estão sendo notados por milhões dentre os pobres nos principais centros urbanos, especialmente em Lima (onde são 10 milhões em uma população de 32 mi). Quanto mais seu governo se engaja, mobiliza e  se compromete com os pobres, apoiando a implementação de suas políticas, maiores são as chances de serem adotadas por eles como seus próprios objetivos político-sociais. Isso lhe permitirá preparar o terreno para um referendo por uma Assembleia Constituinte que redigirá uma constituição antineoliberal que serviria de base para a criação de um Estado Plurinacional, o fundamento de uma transformação socioeconômica mariateguista no Peru.

Contrariamente à deturpação da mídia, o programa do PNLP também inclui, dentre muitas outras políticas interessantes, a descriminalização do aborto; um forte ataque ao tráfico humano – especialmente de mulheres –; a eliminação do patriarcado e do machismo no Estado e na sociedade, o respeito e a promoção dos direitos reprodutivos; e a valorização da auto organização das mulheres em qualquer instância.[xviii] Isso está em claro contraste com a defesa de Keiko do legado de seu pai que, dentre outros estigmas, tinha um plano eugenista que levou à esterilização forçada de cerca de 350.000 mulheres majoritariamente camponesas e indígenas, realizada para lidar com o “problema indígena” da nação (taxas de natalidade mais altas entre povos indígenas do que nos peruanos descendentes de europeus).[xix]

A preocupação imediata de Castillo é garantir uma tranquila transição do poder presidencial para garantir a governabilidade do país, evitar uma desvalorização da moeda, prevenir o pânico financeiro, protestos violentos e planos de desestabilização, dentre outras reações que caracterizaram muitas das vitórias eleitorais de candidatos de esquerda na América Latina. Um motivo maior de preocupação é a “inércia trumpiana” do governo Biden, que deixa basicamente inalteradas as agressões dos EUA contra governos de esquerda na região de seu predecessor, a despeito de sua promessa de, por exemplo, restaurar as políticas construtivas de Obama em relação a Cuba.

Por outro lado, o futuro governo de Peru Libre beneficia-se e continuará beneficiando-se de uma relação regional de forças que se altera para melhor, com vitórias robustas da esquerda nos vizinhos: Argentina, Chile e, especialmente, Bolívia. Castillo já recebeu apoio da Nicarágua, do México, de Cuba e de partidos de massas da esquerda latinoamericana, organizada no Foro de São Paulo e no grupo Puebla – esses dois últimos tendo emitido fortes declarações de apoio, demandando respeito à vontade do povo peruano. Castillo também tem a seu favor a visível deterioração da máquina de intervenção regional dos EUA, com Luis Almagro, Secretário Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), em massivo descrédito após sua cumplicidade vergonhosa e criminosa no golpe de estado que removeu Evo Morales do poder em 2019, enfrentando uma acusação criminal da Bolívia na Corte Criminal Internacional. Ele tem sido repudiado aberta e publicamente pelos governos da Argentina e do México. Além disso, o grupo de Lima, inspirado nos EUA, (estabelecido para derrubar o governo bolivariano da Venezuela e liderado por Almagro) perdeu, recentemente, a cidade para um partido cujo programa inclui a saída do Peru da OEA e o retorno à UNASUR. Para completar, o programa do PNLP inclui forte apoio a Cuba e Venezuela.

No Norte imperialista, nossa tarefa é dizer a verdade sobre o programa progressista e antineoliberal de Castillo, voltado para a reversão de décadas de políticas neoliberais, com o objetivo ajudar a sua nação e seu povo, assim combatendo as inevitáveis deturpações da mídia mainstream; também é tarefa nossa continuar vigilantes e denunciar e rejeitar qualquer tentativa externa ou doméstica de minar a vitória do povo peruano por meios obscenos (violência, golpe de estado, lawfare, bloqueio econômico, legislação extraterritorial, sanções, as artimanhas típicas da União Europeia e coisas do tipo). Por fim, nos cabe ajudar a construir o mais amplo movimento de solidariedade em seu apoio.

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