Paulo Freire – a prática da liberdade

O professor de ciência política na UFMG Juarez Guimarães apresenta prefácio do livro recém-lançado de Venício A. de Lima

Paulo Freire
Paulo Freire


✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.

Por Juarez Guimarães 

(Publicado no site A Terra é Redonda)

continua após o anúncio

A política como prática da liberdade

Os pensamentos humanistas têm um verdadeiro horror ao vício da departamentalização dos saberes e a uma certa cultura analítica que compreende a totalidade a partir da justaposição funcional dos conhecimentos especializados sobre as diferentes esferas da vida social. Nas tradições da filosofia política clássica, renascentista e moderna, o princípio da totalidade elabora as relações de mútua compenetração com as particularidades, o singular e o universal.

continua após o anúncio

Não há maior equívoco do que classificar o pensamento de Paulo Freire na pasta da educação, promovendo uma ruptura ou colocando como mero fundo de inspiração a sua relação com a cultura do humanismo. Mas é assim, como “pensador da educação” que ele tem sido quase invariavelmente identificado.

O mérito exponencial, subversivo e possibilitador de uma nova compreensão do pensamento de Paulo Freire deste livro de Venício Lima, sintético e súmula de cinco décadas de pesquisa e reflexão, é o de identificar Paulo Freire como um pensador da política que se expressa na educação e na cultura. É um passo coerente, que vai além de toda uma trajetória de pesquisa: já a sua tese de doutorado, editada em 1981, trilhava o caminho da interdisciplinaridade e procurava pensar a obra de Paulo Freire a partir do campo da comunicação pública.

continua após o anúncio

Esta departamentalização da recepção das obras de autores que tinham exatamente a busca de uma visão histórica da totalidade, o seu alfa e ômega, não é, decerto, um limite apenas para pensar Paulo Freire: Celso Furtado, “economista”; Antonio Candido, “crítico literário”; Florestan Fernandes, “sociólogo”; Caio Prado Jr., “historiador”; Milton Santos, “geógrafo”. Um caso clássico: Mary Woolstonecraft, a grande pensadora, fundadora do feminismo moderno e autora do clássico A Vindication of the rights of Woman, de 1792, foi, à sua época recebida como uma pensadora da educação…

O que se ganha ao pensar a obra de Paulo Freire como uma criação no interior de uma tradição política moderna, a do humanismo cívico, é nada menos do que a possibilidade de bem compreendê-lo. Esta tradição, de Rousseau a Thomas Jefferson, de Mary Woolstonecraft a Gramsci, em suas várias matrizes modernas, sempre pensou a educação no plano da política ativa na cidade, como fundamento da cidadania, como elixir da liberdade, que se quer pública, comunicativa, intersubjetiva, expressão de sujeitos autônomos que mudam o mundo.

continua após o anúncio

Talvez a singular e de sentido universal contribuição de Paulo Freire a esta tradição de pensar a educação a partir da política da liberdade seja a de, inserido em um contexto periférico de opressão, radicalizá-la como uma práxis de superação de um sujeito historicamente oprimido.

Encontramos já em Émile, de Rousseau, a crítica à educação que Freire chama de “bancária” (depósito de conhecimento), a formação como consciência da autonomia do sujeito que se preparara para ser cidadão. Mas Émile não é propriamente um sujeito em estado de opressão: em Paulo Freire, mais do que um exercício da formação em liberdade, a educação é umas práxis de libertação. O conflito entre opressor e oprimido está no centro do pensamento de Paulo Freire, no centro mesmo da personalidade do oprimido, e se conecta às estruturas históricas da dominação. Se não se pode ler Émile sem O contrato Social, por uma razão mais forte ainda não se pode ler Pedagogia do Oprimido sem a política da libertação de Paulo Freire.

continua após o anúncio

Por isto, esta obra é visceralmente uma práxis da liberdade. A revolução paulofreireana, a radicalidade de seu pensamento que o tornou hoje objeto central de execração da cultura mais regressiva da história brasileira, desde aquela que legitimava o genocídio de índios ou a escravidão dos negros, é o de ser um verdadeiro epicentro da cultura da emancipação dos brasileiros e latino-americanos.

Neste exato sentido, este livro de Venício Lima é, ao mesmo tempo, um documento de reparação e uma moção de esperança. Porque o que pode refundar a democracia brasileira é este sentimento político radical de liberdade que sopra na obra de Paulo Freire.

continua após o anúncio

Uma polêmica clássica e contemporânea

Devemos às obras de grandes historiadores eruditos do pensamento político clássico, renascentista e moderno a releitura da gênese da Modernidade, antes referida de modo antipluralista, à beira do sectário, apenas ao liberalismo. A documentação de um momento maquiaveliano nas revoluções dos séculos XVII e XVIII, a longa viagem do humanismo cívico na fertilização de culturas da emancipação contra o domínio colonial, o patriarcado, a escravidão e o racismo, levaram à incontornável identificação de um conceito de liberdade anterior ao próprio nascimento do liberalismo. Este conceito de liberdade, irmanado à ideia de igualdade, formulado a partir das noções de autonomia do cidadão e da soberania popular, está na origem das declarações de sentido universalizante dos direitos humanos na Modernidade.

continua após o anúncio

Esta verdadeira revolução na consciência do passado que nos formou é, por isso mesmo, uma chave imprescindível para a compreensão dos impasses democráticos da contemporaneidade. A modernidade deixa de ser vista apenas como um desenrolar historicamente progressivo da história do liberalismo e passa ser, ela própria, um lugar, desde sempre, do conflito entre os que querem dominar e os que não querem ser dominados. A cultura da liberdade nasce deste conflito no centro da política.

Esta consciência nova do passado atualiza a presença da obra de Paulo Freire na cultura política brasileira. Não por acaso ele é o único autor brasileiro clássico, no sentido que formou uma irradiação e uma herança de ideias em movimento, que traz a liberdade e a superação de seu outro, a opressão, no título de suas obras nucleares. Em quatro sentidos, a sua concepção de liberdade é afim a este conceito de liberdade que formou as revoluções democráticas da modernidade.

Em primeiro lugar, a sua identificação com o sentido de autonomia, que a vincula à noção de igualdade estrutural: não pode ser livre aquele que está submetido a uma situação de escravidão, servidão ou dependência estrutural de um outro.

Em segundo lugar, o sentido intersubjetivo, público e dialogal da construção da liberdade. Ela não preexiste à comunidade política, não pode ser naturalizada, depende da vida pública.

Em terceiro lugar, ela reivindica o sujeito ativo, não conformado e não conformista, mas criativo e disposto à transformação do mundo como criador.

Por fim, ela só pode existir em uma cultura cívica, que institua o amor à liberdade compartilhada entre os cidadãos e cidadãs, a fraternidade. Ela demanda, pois, uma revolução cultural dos valores que antes legitimavam a opressão.

O modo como Paulo Freire se vincula a esta tradição é através do socialismo democrático. Daí o seu diálogo com Marx e com os autores humanistas do marxismo.

Uma obra de 1968

Esta perspectiva política da obra de Paulo Freire permite melhor situá-la em seu contexto de criação: ela é atravessada pela imaginação libertária de 1968. Pedagogia do Oprimido, identificado como uma espécie de ponto elevado a partir do qual se pode perscrutar toda a obra freireana, é um livro todo ele escrito em fogo e liberdade. Queima nas mãos do leitor. Escrito desde o Chile, parece sair mesmo das barricadas de 1968.

É muito feliz, neste sentido, o segundo capítulo deste livro ao trazer à tona os modos de presença de Frantz Fanon na obra de Freire. A conjuntura de 1968 ligou a luta pela liberdade nos países capitalistas centrais, contra os regimes burocráticos do Leste Europeu e as lutas anticoloniais.

Paulo Freire escreve sobre a liberdade em meio ao subdesenvolvimento, ali onde a colonização e suas permanências exerce sobre o oprimido sua potência de desumanização. A moção de Fanon, que reivindica a legitimidade do uso da violência contra o colonizador e seus necropoderes, é recepcionada pela cultura da emancipação de Freire como uma contraviolência, como uma reação a uma violência de origem e estrutural.

Se 1968 marcou o dramático e feliz reencontro das esquerdas no século XX com o fundamento da liberdade, após décadas de dominância do estalinismo, o livro de Paulo Freire é o grande documento na história intelectual dos brasileiros do reencontro de um pensador com Marx livre, fora dos dogmas e pensado a partir da emancipação. Todo o livro é vazado pelas referências e diálogos com as tradições humanistas da leitura de Marx, inspirando-se, mas indo muito além das reflexões dos cristãos brasileiros iniciadas no fim dos anos 1950 pelo jesuíta e eminente filósofo Henrique de Lima Vaz.

No centro do livro, como se fosse uma âncora, o terceiro aforisma das chamadas “Teses sobre Feuerbach”, de Marx, que Freire cita na nota 15: “A doutrina materialista sobre a modificação das circunstâncias e da educação esquece que as circunstâncias são modificadas pelos homens e que o próprio educador tem de ser educado. Ela tem, por isto, de dividir a sociedade em suas partes – a primeira das quais está colocada acima da sociedade. A coincidência entre a alteração das circunstâncias e a atividade ou automodificação humanas só pode ser apreendida e racionalmente entendida como prática revolucionária” (Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido).

Esta tese, para ser melhor compreendida, deve ser pensada como uma crítica ao dilema da cultura do iluminismo – educar os homens para mudar as circunstâncias ou mudar as circunstâncias para educar o homem? – e às teses socialistas autoritárias ou substitucionistas. A síntese está escrita em letras garrafais em Pedagogia do Oprimido: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão.” A coincidência entre o ato da mudança e a mudança do sujeito faz toda a fortuna da obra de Freire.

Paulo Freire, em documento quase perdido e que Venício Lima, que o recebeu do autor manuscrito, publica nesta edição, afirma a pedagogia da revolução, a função pedagógica do partido da transformação, ele próprio transformado no processo de libertação. A sua obra é, neste sentido, uma grande moção de fundação de um socialismo democrático em um período de profundo impasse das vanguardas e da própria história da matriz histórica dominante do marxismo no Brasil, que havia cindido tragicamente socialismo e liberdade.

Paulo Freire e o pensamento político brasileiro

A relação entre educação e democracia é certamente um dos temas mais ricos e constituidores das tradições do pensamento brasileiro que buscaram um caminho para romper os impasses da formação. Esta relação esteve no centro do pensamento liberal de Rui Barbosa – formulando um progressivismocapacitário de inclusão progressiva dos pobres e  negros na ordem política –; do pensamento republicano democrático de Manoel Bomfim – a universalização da educação como modo de constituir a soberania popular e, depois, a necessidade de uma revolução para produzir a reforma almejada da educação –; dos pensamentos desenvolvimentistas – que concebiam a educação como fundamento do progresso soberano e autônomo do país –; das utopias antropológicas e civilizatórias de Darcy Ribeiro –  a educação pública como expressão mesma de nossa singularidade como civilização multiétnica.

Paulo Freire dissolve o impasse entre reforma e revolução através da educação como prática da liberdade, isto é, diferenciando a “educação sistemática” após a revolução do “trabalho educativo” que a precede. Ao exaltar o sentido pedagógico da política que se quer libertadora, ao propor uma dialética entre mestre e aluno, entre vanguarda e povo, o que Paulo Freire está fazendo é assentar os fundamentos de um pensamento e de uma perspectiva socialista democrática. Está, pois, fundando ou refundando esta tradição no pensamento político brasileiro, dando corpo a ela, abrindo um caminho para sua formação.

“Não há palavra verdadeira que não seja práxis”, diz Paulo Freire. Romper a dura crosta da cultura do silêncio, formar o direito público de voz, construir com quem nunca pôde falar e ser ouvido a plena expressão e possibilidade de formar o poder, a soberania popular é uma democracia radical, nos fala a obra da vida inteira de Venício Lima.

Venício e Freire

Há, decerto, uma diferença fundamental entre cultuar, fazer o culto, de um autor e cultivar um autor, apropriar-se de suas conquistas e desenvolvê-las criticamente. É desta ordem, a de uma dialogação crítica, que está a relação de cinco décadas de Venício com a obra de Freire e que este livro condensa e atualiza.

O conceito que sintetiza toda a obra de Venício, referência incontornável para quem pretende estudar os dilemas históricos da formação de uma opinião pública democrática no Brasil, e que dialoga com o centro mesmo das teorias freireanas é o de cultura do silêncio. Pois o oprimido começa a superar a sua condição na medida mesmo em que é capaz de falar de si em sua própria linguagem – “não há palavra verdadeira que não seja práxis” –, de biografar-se em uma narrativa de sentido, humanizando-se através do diálogo com o seu mundo e o mundo dos outros. A opressão é um roubo da fala, um silenciamento de voz, “uma estrutura constituinte de mutismo”. A obra de Venício é a crítica da permanência desta “estrutura constituinte de mutismo” na democracia brasileira pós-constituinte de 1988.

A sua pesquisa sobre este conceito, levou-o, necessariamente, ao caminho de sua historicização, das origens da sociedade colonial, da formação do Estado nacional, do Império à República, dos vários regimes da república, da ditadura ao processo de redemocratização: a longa continuidade das estruturas institucionais de silenciamento dos povos indígenas, dos negros, dos trabalhadores, das mulheres, dos camponeses em meio a seus esforços, sempre reprimidos, de fazer emergir as suas vozes livres.

É possível e necessário, pois, escrever a história da formação do Brasil a partir da cultura do silenciamento, nas suas formas coloniais, modernas e contemporâneas. É este o sentido inscrito de classicização da obra do próprio Venício. Pois nenhum outro clássico da formação do Brasil trouxe ao centro da narrativa o direito dos brasileiros, o seu direito inalienável, como cidadãos e cidadãs, a falarem em democracia e pluralismo através de sua própria voz.

“Falar, por exemplo, em democracia e silenciar o povo é uma farsa”, afirma Paulo Freire em Pedagogia do Oprimido. A frase é tipicamente, no sentido autoral, de Venício Lima, no sentido de ser expressiva do seu trabalho crítico sobre a separação entre o direito de voto e o direito de voz na democracia liberal brasileira.

A cultura do silêncio é o par de oposição à educação e à política como dialogicidade que propõe Freire, como bom humanista, que não separa a isonomia da isegoria. A obra de Venício, ao dar um estatuto conceitual e uma documentação histórica à cultura do silêncio, ilumina com luz própria a obra freireana.

Referência

Venício A. de Lima. Paulo Freire: a prática da liberdade, para além da alfabetização. Belo Horizonte, Autêntica, 2021, 158 págs.

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

Este artigo não representa a opinião do Brasil 247 e é de responsabilidade do colunista.

Comentários

Os comentários aqui postados expressam a opinião dos seus autores, responsáveis por seu teor, e não do 247

continua após o anúncio

Ao vivo na TV 247

Cortes 247