Pastel português



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- Tio.

- Não dá.

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- Não é dinheiro, não.

- Estou com pressa.

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- Um minuto.

- Tô atrasado.

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Gerson nem vira a cara trancada, apenas confirma no celular o atraso. Onze minutos.

A jovem, preta e só com a sandália de borracha do pé direito, fica pra trás. Já a imagem dela, o cheiro, os cabelos desgrenhados e os dentes branquíssimos em contraste com olhos de jaboticaba acompanham o homem.

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Enquanto espera o verde do sinal de pedestre e se atrasa em mais um minuto, reflete sobre o que a moça queria. O pedido só podia ser... um doce. Pode parecer estranho, luxo descabido para quem passa fome, mas era o que ela iria implorar, acredita. Quem gosta de doce troca fácil uma cerveja por um brigadeiro, uma fatia de pizza por um quindim.

A ideia não surge à toa na cabeça lisa e lustrosa de Gerson. A moça está em frente a um ponto famoso no bairro: a loja de quitutes portugueses. Sucesso, tem fila na porta e pedidos aos montes pela internet.

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Delicados pastéis lusitanos descansam no balcão envidraçado. Ovo, leite, fermento e açúcar em fornadas crocantes. Massa finíssima e sabores estonteantes.

O clássico pastel de Belém, com recheio de nata e cobertura levemente tostada. Ao lado, um pastel de denso doce de leite. Outro vem coberto de creme de amêndoas. No lugar reservado ao folheado pastel de Sintra o espaço vazio informa: fica pra próxima.

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A 500 metros do metrô, resmunga:

- Eu podia pagar, eu podia.

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Uma ponta de amargura espeta o peito. Gerson aguarda o último farol de pedestre, mais quarenta segundos.

A 200 metros da estação, pensa e repensa no doce sonho de moça, que ele frustrou, avarento e estressado.

Ela podia ter pedido um pacote de fraldas pro filho precoce, um quilo de café, um xampu, tudo acima dos 9 reais do pastel de Belém e de seus vizinhos.

Teve a chance de começar o dia com generosidade em tempos de tanto egoísmo.

Perdeu a oportunidade e - covarde, ele mesmo se acusa - botou a culpa no tempo.

Gastou minutos escolhendo a gravata? Demorou no banho? Exagerou nas mensagens nas redes sociais? Seja o que for, foi ele que deixou o tempo fugir.

9 reais. Quanto vale o prazer de saborear um doce saído do forno?

9 reais. Quanto vale satisfazer o desejo de quem precisa da bondade alheia?

Lembra a história que a mãe repetia com graça. Com o primeiro salário de recenseadora do IBGE, comprou um papo de anjo.

Na época, o doce da moda. Formato de empadinha, massa fofa de ovo, encharcada na calda de açúcar.

Primeiro comeu sozinha, depois chamou os pais, o namorado, a tia Diná, amigas... quase deixou o salário na luxuosa confeitaria do centro do Rio. Após anos a namorar a delícia sem poder comprar por causa do preço, enfim realizava o desejo. O melhor doce do mundo já não era tão caro.

De anjo ou sovina, chega de papo.

Enfim, a plataforma do metrô. O trem aponta no início do túnel. E agora, Gerson? Banca o atraso e o doce ou corre para o escritório como um escravo envergonhado? São dez minutos até a moça, até o pastel crocante e seu recheio de natas portuguesas.

*Você encontra outras crônicas do escritor Luis Cosme Pinto no livro Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da editora Kotter.

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