Paradoxo da intolerância
O debate está aberto. E a necessidade de enfrentamento ao fascismo brasileiro é urgente, sem contemporizações, nem viagens a Paris
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Não obstante as diferenças, somos todos humanos, sujeitos racionais e, portanto, capazes de entender e superar a diversidade de nossas subjetividades. Somos aptos não apenas a entender o outro, mas qualificados ao diálogo por meio do qual construímos o mundo comum civilizado. Consequentemente, podemos e devemos ser tolerantes reciprocamente. Devido ao pluralismo da experiência humana sobre a Terra, a tolerância se torna uma ideia não apenas desejada, mas necessária.
A pergunta que se faz no tempo presente é a seguinte: num Brasil, golpeado em 2016 por frações da classe dominante que apoiou para a presidência da República um caótico militar da reserva, idólatra de torturadores, tendo como plataforma política o discurso do ódio e da apologia à violência contra o diferente e as minorias, com um grande número de séquitos – civis, militares e religiosos – em todo o país, como lidar com atitudes e discursos ameaçadores e intolerantes desse grupamento de gentes no seio de uma sociedade dita democrática e plural?
Rainer Forst (1964), filósofo político alemão, professor de Teoria Política no Departamento de Ciências Sociais da Johann Wolfgang Goethe University (Frankfurt), em seu artigo “Os limites da tolerância” (Novos Estudos, n.84, julho 2009, pp.15-29), assinala que há práticas e crenças com as quais é possível concordar; existem práticas e crenças não aceitas, a partir de um referencial existencial, compreendidas como erradas, mas toleráveis; por fim, ocorrem práticas e crenças que são simplesmente consideradas erradas e rejeitadas, definitivamente intolerantes. O autor indica, a partir desta sua análise acima, quatro concepções principais no que se refere à tolerância: concepção de permissão no sentido de ser uma relação entre autoridade/maioria com relação a uma minoria para viver de acordo com determinadas regras/crenças; concepção de coexistência, diz-se da relação dos sujeitos e objetos de tolerância, uma vez que não se trata de diferenças de poder com relação à submissão, mas de grupos com poder equitativo, porém com objetos diferentes que devem coexistir tolerantemente; concepção de respeito, aquela que se refere ao modo como diferentes cidadãos, com crenças e práticas culturais diversas, reconhecem-se como semelhantes e seguem um mesmo panorama comum de vida social, preservando direitos e liberdades fundamentais garantidas por normas positivas e supostamente neutras; concepção de estima, que não se resume apenas ao respeito a indivíduos de grupos cultural, moral, política e religiosamente diversos, mas também a ter um determinado tipo de estima por estes, isto é, considerá-los eticamente valiosos.
Mas o que fazer quando levantes de intolerância são gerados, continuadamente, de forma antiética e imoral, por determinados modos de ser-no-mundo, principalmente por formadores de opinião e detentores do poder político, que ameaçam e agridem outras formas-de-ser-no-mundo, com seus discursos, atitudes e crenças? Quais desdobramentos no âmbito pessoal, social e institucional devem ser adotados como forma de negação e rechaço por parte de todos os outros que exigem e praticam, reciprocamente, a tolerância?
Karl Popper (1902-1994), filósofo austríaco, fugitivo do nazismo europeu ao emigrar para a Nova Zelândia, afirmava que lutar com palavras, em vez de lutar com armas, constitui o fundamento da nossa civilização, mas é impossível conversar racionalmente com alguém que prefere matar-nos a ser convencido pelos nossos argumentos. Não é à toa que o bolsonarismo incentiva a proliferação de armas, em vez de incentivar a proliferação de livros (palavras). Para Popper, o conhecimento é uma aventura em aberto: o que saberemos amanhã é algo que desconhecemos hoje, e esse algo pode mudar verdades de ontem. Mas o bolsonarismo negacionista não está aberto ao conhecimento, quer obrigar pela força a sua crença baseada na intolerância radical, impondo o seu monólogo homogeneizador. “E ponto final, tá ok?”.
Segundo Popper, se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra a investida intolerante, os tolerantes serão destruídos e, com eles, a tolerância. Por isso é forçoso afirmar que qualquer movimento pregando a intolerância coloca-se fora da lei. Afirmar como crime o estímulo à intolerância e à perseguição, na mesma medida que se considera crime o estímulo ao assassinato, ao tráfico de pessoas, ao trabalho escravo, à tortura ou ao sequestro. (Apud. ARAÚJO, Filipe; KUSSLER, Leonardo. Da Impossibilidade da Tolerância para com o Intolerante. Occursus Revista de Filosofia. Volume 5. Número 1. Fortaleza (CE): junho de 2020). Ou seja, a fim de preservar a tolerância, que se explicita basicamente como coexistência harmônica e minimamente respeitosa das divergências, não se podem acolher formas de pensar e de agir que a agridam e a destituam.
Tolerar não é ser indiferente ou neutro, não é apenas suportar o que não se gosta, não é apenas pluralismo ou encorajamento da diferença, não é apenas não interferência, nem é permissividade. Tolerar trata-se de reconhecer o diferente e nesse reconhecimento abarcar-se o respeito à sua liberdade de coexistir entre humanos e com humanos, no tempo e no espaço civil, contanto que isso não ameace a existência do modo de ser de outrem, seja fisicamente como moralmente.
Diante do fato mais recente, quando um comunicador social fez apologia ao nazismo e à existência de partidos políticos nazistas, há um diálogo na rede social entre um candidato à presidência da República do Brasil e uma candidata ao governo do estado do Ceará. Diz Ciro Gomes (PDT-CE), contemporizando com o comunicador social apologista do nazismo: “Houvesse um pouco mais de leitura e um pouco menos vontade de chocar, que é próprio da juventude, Monark (30 anos de idade) não teria cometido este erro tão grosseiro”. Em resposta imediata, sem titubear, a candidata Adelita Monteiro (Psol – CE), disse: “Já fui bastante jovem, já bebi umas caipirinhas a mais e conheço um monte de gente que não leu quase nada na vida, mesmo assim nunca defenderam o nazismo. Erro é ir pra Paris (Ciro Gomes viajou para Paris no segundo turno da eleição de 2018), quando tem um miliciano prestes a ganhar a presidência. O que Monark fez foi crime!”. Portanto, o debate está aberto. E a necessidade de enfrentamento ao fascismo brasileiro é urgente, sem contemporizações, nem viagens a Paris.
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