Para um cartão de Natal



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Os cartões de Natal são sintéticos, com frases ternas ou comoventes. Na abertura, possuem imagens para enternecer corações, que de um modo geral vivem tão carentes de carinho, de uma palavra que conforte. E não adianta nada a gente se revoltar contra essas manifestações de fraternidade marcadas no calendário, pois Natal é isto:  a data magna das promessas de humanidades que se traem em uma semana. Então, que fazer?  

O bom da literatura, o bom de toda arte é que ela modifica os gêneros, até mesmo deste que muitos chamam de Cartão de Natal. Assim, penso que eu poderia talvez compor um, com o que tenho escrito há algum tempo.  

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Para este possível cartão, retiro de “Soledad no Recife” um trecho:  

“Declaração da advogada Mércia Albuquerque: ‘eu tomei conhecimento de que seis corpos se encontravam no necrotério.... em um barril estava Soledad Barrett Viedma. Ela estava despida, tinha muito sangue nas coxas, nas pernas. No fundo do barril se encontrava também um feto.  

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Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror. Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela’”  

De “O filho renegado de Deus” esta página:  

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“No entanto, o apresentador, que se chamava animador de auditório, achou pouco o sucesso de Doroteia entre os homens e quis integrar como uma variante as mulheres. Ele, no que julgou ser um achado de gênio, lançou um concurso dirigido somente ao público feminino: a mulher cujo peso igualasse o de Doroteia, ganharia a ‘linha completa dos produtos Atkinsons, sabonete e perfume Damosel’. Todas as semanas ele informava, no ar, o peso da cantora em vigor no programa. O que era sempre algo bem pesado para a cantora. Então dona Maria foi ao encontro do ridículo. Passou a semana ora comendo mais, ora comendo menos massa, farinha, a se pesar na balança da farmácia com sapato ou de sandália para os ajustes, e com as pernas trêmulas, e o ‘coração pela boca’, como dizia, foi ao programa de auditório e subiu no palco. Lá, havia uma balança imensa, queremos dizer, uma balança grande para os olhos de menino, ao lado da qual o animador se portava como um juiz implacável. E, entre muitas gordas de subúrbio, Marias do Carmo, Marias da Conceição, dona Maria foi quem mais se aproximou do peso da cantora obesa de auditório. E ganhou o seu maior prêmio, vale dizer, único prêmio em toda a vida, uma caixa com perfumes da linha Atkinsons, com o mais cobiçado, Damosel.  Aquele do cheiro que dava às mulheres um ar romântico, de namoro à luz do luar, à margem de um lago manso. Era de se ver a felicidade com que ela cruzou o batente da sua casinha na Vila Alegria, com os olhinhos negros marejados. Enquanto abria a caixa, chamou as vizinhas para lhes anunciar – como se elas não soubessem, como se elas não houvessem ouvido o programa – que ela era do mesmo peso da estrela do rádio. E não podia haver dúvida, porque ela abria o frasco do prêmio, e generosa perfumava as mãos, os braços das mulheres vizinhas:  

- Cheira! Cheira! É bom ou não é? Eu ganhei.  

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A vizinha Dona Lúcia fechava os olhos e lembrava que conhecia perfumes melhores, a outra, Dona Esmeralda, sabia, usava extratos mais ativos para atingir as narinas do vizinho Valfrido, mas ambas responderam, de coração, que não havia perfume no mundo como aquele.  Elas, pensou o menino  muitos anos depois, de volta do cemitério, elas queriam dizer que para as condições de dona Maria melhor perfume era impossível no mundo. ‘Pois a nossa liberdade é limitada’, ele se disse. Quando seria melhor, em um maior esforço, que ele se dissesse ‘a desgraça das mulheres pobres não tem limite’. Mas isso era tão duro, tão desagradável, que em busca da Maria gorda os seus olhos românticos recusavam, saltavam a extensão e memória funda, aquela que fulgia da mulher que nada tinha, nem mesmo um perfume barato. Daquela Maria que conseguira algo pela beleza de ser muito gorda. Com o peso igualzinho ao da cantora do rádio”.

Então eu paro e reflito, agora, que somente consegui recuperar manifestações  de fraternidade entre mulheres, de mulher para mulher. Da dor para a dor, da grandeza para a grandeza. É justo, isso é verdade, mas é preciso lembrar o afeto solidário que também existe entre homens. E busco e recupero.     

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Antes de falecer aos 74 anos de idade, o meu amigo José Amaro Correia estava cego, em uma cadeira de rodas, mas socialista sem fraquejar um só instante. Então há quatro anos, com a vista que lhe chegava apenas pelos ouvidos e memória, ele adaptou a passagem do cometa para esta mensagem:  

“Eram quatro horas da manhã, e até as cinco, durante uma hora ouvimos o novo som que os cientistas ouviam do cometa. Depois de alguns dias estudando os sons, entendemos o cometa que passava pelo alto das praias. Ele nos desejava um bom natal e um novo ano de solidariedade e amizade”.       

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E assim termino. A gente quer fugir do gênero de um cartão de esperança, mas esses bravos nos impedem.  

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