Para o Leviatã, é tão frio no Alasca

Wang Yi e Yang Jiechi tentarão fazer sopa de barbatana de tubarão de Antony Blinken e Jake Sullivan na cúpula de Anchorage

Autoridades de EUA e China durante reunião em Anchorage, no Alasca
Autoridades de EUA e China durante reunião em Anchorage, no Alasca (Foto: Reuters)


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Por Pepe Escobar, para o Asia Times

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

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Leviatã parece estar se posicionando para uma matança geopolítica tipo Kill Bill - embora brandindo uma enferrujada espada de samurai de aço de alto carbono.

Como seria de se prever, os senhores do Deep State dos Estados Unidos não contaram com a possibilidade de virem a ser neutralizados por uma Técnica de Cinco Pontos que Explode o Coração geopolítica.

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Em um ensaio cáustico e conciso, Alastair Crooke apontou para o cerne da questão. Aqui vão os dois principais insights - incluindo uma elegante alusão orwelliana:

  1. "Assim que o controle sobre o mito justificador da América foi perdido, a máscara caiu". 
  2. "Os Estados Unidos pensam em liderar as potências marítimas e costeiras na imposição de uma amarga derrota psicológica e tecnológica à aliança Rússia-China-Irã. No passado, o resultado teria sido previsível. Desta vez, é perfeitamente possível que a Eurásia se coloque solidamente contra uma Oceania enfraquecida (e uma Europa acovardada)".

O que nos leva a duas cúpulas interligadas: o Quad e a China-EUA 2+2 no Alasca.

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O Quad virtual, ocorrido na sexta-feira passada, veio e se foi como nuvem passageira. Quando o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, disse que o Quad "era uma força para o bem global", não é de admirar que muitas sobrancelhas tenham-se arqueado por todo o Sul Global.

O Ministro das Relações Exteriores chinês, Wang Yi, observou, no ano passado, que o Quad era parte de uma iniciativa de criar uma "OTAN asiática".

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E é. Mas o hegêmona, reinando sobre a Índia, o Japão e a Austrália, não  pode afirmá-lo com todas as letras. Daí a retórica vaga sobre um "Indo-Pacífico livre e aberto", "valores democráticos", "integridade territorial" - linguagem-código para caracterizar a contenção da China, em especial no Mar do Sul da China.

O sonho molhado excepcionalista - rotineiramente expresso na Think-tanklândia americana - é posicionar uma bateria de mísseis na primeira cadeia de ilhas, apontando para a China como um porco-espinho armamentista. Pequim tem perfeito conhecimento disso tudo.

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Fora uma mansa declaração conjunta, o Quad prometeu entregar um bilhão de doses de vacinas contra a covid-19 a toda a região do Indo-Pacífico até o fim de... 2022.

A vacina seria produzida na Índia, financiada pelos Estados Unidos e o Japão, e a logística de distribuição viria da Austrália.

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Tudo isso, como seria previsível, foi rotulado de "contrapor-se à influência chinesa na região". Pouco demais, tarde demais. O cerne da questão é: o hegêmona está furioso porque a diplomacia da vacina chinesa vem tendo um estrondoso sucesso - não apenas na Ásia, mas por todo o Sul Global.

Isso não é "diálogo estratégico"

Tony Blinken, secretário de estado dos Estados Unidos, não passa de um mero apparatchick e ardoroso chefe da torcida do Choque e Terror usado contra o Iraque há dezoito anos, em 2003. Naquela época, ele era chefe de gabinete para os democratas na Comissão de Relações Exteriores do Senado, então presidida pelo Senador Joe Biden.

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Agora, Blinken está na direção da política externa dos Estados Unidos para uma entidade de papelão senil  que balbucia, ao vivo, em frente às câmeras: "Eu faço tudo que você quiser que eu faça, Nance" falando a Nancy Pelosi; e que descreve o presidente russo como "um matador", "desalmado", "que irá pagar um preço".

Parafraseando Pulp Fiction: "A diplomacia morreu, baby. A diplomacia morreu".

Tendo isso em mente, não há muita dúvida de que o formidável Yang Jiechi, diretor do gabinete da Comissão de Relações Exteriores do Comitê Central do Partido Comunista da China, lado a lado com o ministro das relações exteriores Wang Yi, irão fazer sopa de barbatana de tubarão de seus interlocutores Blinken e do Consultor de segurança nacional Jake Sullivan na cúpula 2 + 2 em Anchorage, no Alasca.

Apenas dois dias antes do início das Duas Sessões de Pequim, Blinken proclamou que a China é a "maior ameaça geopolítica do século XXI".

Segundo Blinken, a China é o "único país com poder econômico, diplomático, militar e tecnológico para ameaçar seriamente o sistema internacional estável e aberto - todas as regras, valores e relações que fazem com que o mundo funcione como queremos, porque, em última análise, esse sistema serve aos interesses e reflete os valores do povo americano".

Blinken, portanto, admite que o realmente importante é "que o mundo funcione como queremos"  - "nós", aí, se referindo ao Hegêmona que, antes de mais nada,  foi quem estabeleceu essas regras. E essas regras  "servem aos interesses e refletem os valores do povo americano". Ou, melhor dizendo, tem que ser do jeito que nós queremos e ponto final.

Blinken poderia até ser  desculpado, por ser um novato deslumbrado no palco internacional. Mas fica ainda muito mais vergonhoso.

Aqui vai um breve resumo de sua política externa ("sua" porque o holograma que ocupa a Casa Branca precisa receber em seu fone de ouvido instruções  24/7 até para saber que horas são).

Sanções, sanções por toda a parte, Guerra Fria 2.0 contra a Rússia e o "matador" Putin; a China culpada de "genocídio" em Xinjiang; um estado notoriamente apartheid ganhando passe livre para fazer o que bem entender; o Irã tem que piscar primeiro ou não haverá retorno ao acordo nuclear; Guaidó Aleatório reconhecido como Presidente da Venezuela, e a mudança de regime continuando como a grande prioridade.

Aqui, está em jogo um curioso kabuki. Seguindo a lógica da proverbial porta giratória típica do Distrito de Colúmbia, Blinken foi um dos sócios fundadores da WestExec Advisors, cuja principal linha de ação é oferecer "conhecimentos políticos e geopolíticos" a multinacionais americanas, cuja esmagadora maioria tem interesse - em que mais seria? - na China.

O Alasca, então, talvez, em certa medida, aponte para um trade-off na área do comércio exterior. Mas o problema parece insuperável. Pequim não quer abrir mão do lucrativo mercado americano e, para Washington, a expansão da tecnologia chinesa no Ocidente é anátema.

O próprio Blinken esvaziou o Alasca dizendo que não se trata  de "diálogo estratégico". Então, estamos de volta ao apoio à fraude do Indo-Pacífico; a recriminações sobre a "perda de liberdade" em Hong Kong - cujo papel de quinta-coluna para os Estados Unidos/Reino Unido agora acabou definitivamente; ao Tibé; e à "invasão" de Taiwan, agora a todo vapor, com o Pentágono afirmando que ela provavelmente ocorrerá antes de 2027.

Não é "diálogo estratégico" coisa nenhuma.

Um drogado em uma viagem ruim

Wang Yi, em uma entrevista coletiva tratando do 13º Congresso Popular Nacional e do anúncio do próximo Plano Quinquenal afirmou que "daremos o exemplo de confiança mútua estratégica, ao nos apoiarmos mutuamente de forma firme na defesa dos grandes interesses essenciais, na oposição à "revoluções coloridas" e à desinformação, e na salvaguarda da soberania nacional e da segurança política".

Essa posição contrasta nitidamente com a escola "altamente provável" de pós-verdade e mentiras privilegiada por mascates do Russiagate e por uma variedade de sinófobos.

O renomado acadêmico chinês Wang Jisi - que era próximo ao falecido Ezra Vogel, autor da que pode ser considerada a melhor biografia de Deng Xiao Ping em inglês - trouxe uma medida adicional de sanidade ao relembrar a ênfase dada por Vogel à necessidade de os Estados Unidos e o Leste Asiático compreenderem a cultura um do outro.

Segundo Wang Jisi, "na minha própria experiência, vejo como altamente esclarecedora uma diferença entre os dois países. Nós, na China, gostamos da ideia de encontrar terreno comum e, ao mesmo tempo, mantermos nossas diferenças". Afirmamos que os interesses em comum entre nossos dois países superam em muito nossas diferenças. Definimos terreno em comum com base em um conjunto de princípios como respeito mútuo e cooperação. Os americanos, ao contrário, tendem a focar questões difíceis, como Taiwan e o Mar do Sul da China. Parece que os chineses querem estabelecer princípios antes de tentar resolver problemas específicos, mas os americanos estão sempre ansiosos para tratar dos problemas antes de estarem prontos a melhorar a relação".

O problema real é que o Hegêmona parece ser congenitamente incapaz de tentar entender O Outro. Ele sempre retoma a notória formulação de Zbigniew Brzezinski, com a arrogância imperial que lhe era característica, em seu magnum opus de 1997, O Grande Tabuleiro de Xadrez.

"Para usar uma terminologia que remete à idade mais brutal dos impérios da Antiguidade, os três grandes imperativos da geoestratégia imperial são evitar o conluio entre os vassalos e mantê-los dependentes em termos de segurança, manter os tributários dóceis e protegidos e evitar que os bárbaros se unam".

O Dr. Zbig se referia, é claro, à Eurásia.  A "dependência em termos de segurança"  entre os vassalos se referia principalmente à Alemanha e ao Japão, centros de importância-chave nas Terras Costeiras. Os "tributários dóceis e protegidos" se aplicava acima de tudo ao Oriente Médio.

E, o que é o mais importante, "evitar que os bárbaros se unam" se aplicava à Rússia, China e Irã.

Essa, resumidamente, era a Pax Americana. E é isso que agora está se desfazendo.

Daí a lógica Kill Bill. Ela tem uma longa história. Menos de dois meses antes do colapso da URSS, as Diretrizes de Planejamento de Defesa de 1997 pregavam o domínio global total e, seguindo o Dr. Zbig, o imperativo absoluto de evitar o surgimento de qualquer futuro concorrente de igual nível.

Em especial a Rússia, definida como "a única potência do mundo com capacidade para destruir os Estados Unidos".

Então, em 2002, no começo da era do "eixo do mal", veio o Domínio de Espectro Total como a pedra de toque da Estratégia de Segurança Nacional. Domínio, domínio por toda a parte: terrestre, aéreo, marítimo, subterrâneo, cósmico, psicológico, biológico, cibertecno.

E, não por acidente, a Estratégia Indo-Pacífico - que orienta o Quad - centra-se em "como manter a primazia estratégica dos Estados Unidos".

Essa mentalidade é o que permite que a Think-tanklândia americana formule "análises"  ridículas, onde a única possibilidade de "ganho" para os Estados Unidos exige imperativamente o fracasso do "regime" chinês.

Afinal, o Leviatã é congenitamente incapaz de aceitar "ganhos para todos". Ele só funciona com base no "soma-zero" baseado no Dividir e Dominar.

E é isso que vem levando a parceria estratégica a progressivamente estabelecer um ambiente de segurança amplo e abrangente, cobrindo tudo desde armamentos high-tech a setores bancários e financeiros, fornecimento de energia e fluxo de informação.

Para evocar uma outra pérola da cultura pop, o Leviatã atarantado agora se parece a Caroline, a drogada retratada no disco Berlin, de Lou Reed: But she's not afraid to die / All of her friends call her Alaska / When she takes speed / They laugh and ask her / What is in your mind / What is in your mind / She put her fist through the window pane / It was such a / funny feeling / It’s so cold / in Alaska (Mas ela não tem medo de morrer / Todos os seus amigos chamam ela de Alasca / Quando ela toma speed / Eles riem e perguntam a ela / O que você tem na cabeça / O que você tem na cabeça / Ela enfiou o punho pela vidraça / Foi uma sensação esquisita / É tão frio / no Alasca.

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