Para o futuro começar
"Para se não desperdiçarem as oportunidades que a pandemia criou seria necessário que o tal consenso político fosse sujeito à condição que a experiência recente nos ensinou: se a esquerda fizer a política da direita, os cidadãos concluirão que a direita a faz melhor", escreve Boaventura de Souza Santos
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Disfarçamos com gráficos e estatísticas todo o nosso desconhecimento sobre a dinâmica da pandemia do novo coronavírus, sobre as suas causas próximas e remotas, sobre a eficácia relativa das diferentes políticas de contenção e de mitigação. Confiamos na ciência e a ciência confia em que o nosso comportamento vá confirmando a estatística. Mas sabemos, nós e os cientistas, que os números estão forçosamente viciados. Não sabemos o número exacto dos infectados (por falta de testagem) ou dos mortos (por via da subnotificação). E mesmo dando crédito aos números, estes nada nos dizem sobre os insondáveis critérios com que o vírus seleciona as suas vítimas, quantas vezes apoiado pelas políticas actuais ou anteriores do Estado. Três perguntas bastarão. A que classe pertence e que cor da pele tem a maioria dos que estão a morrer no Brasil? Qual a percentagem de imigrantes e refugiados entre os mortos pelo vírus na Suécia? As ondas de calor dos anos anteriores não tinham avisado as autoridades de Portugal e de outros países da Europa que os lares, tal como existem, seriam uma perigosa zona de risco? Comparamo-nos aos países mais próximos que apresentam indicadores piores que os nossos. Não se nos ocorre compararmo-nos com o Vietnam que, com 91 milhões de habitantes e com uma fronteira de 1.281 quilómetros com a China, não conta até hoje com nenhum morto. E aparentemente sem excessiva invasão da liberdade dos cidadãos.
Atuamos no escuro e no escuro há pouco espaço para a política, sobretudo para a política democrática. É por isso também que se torna mais fácil o consenso político, e ainda bem que assim é enquanto durar a emergência. Basta pensar nos casos trágicos e patéticos dos EUA e do Brasil onde a gestão da crise pandémica se transformou em gestão da crise política. Mas por quanto tempo vai durar a emergência? Para já, é claro que o que chamamos pós-pandemia é, de facto, o início de um longo período de pandemia intermitente. Um período que nem sequer termina com a distribuição generalizada da vacina, uma vez que, a continuar o actual modelo de desenvolvimento e de consumo, a actual matriz energética, em suma, o actual padrão civilizacional, outras pandemias virão, e certamente mais letais. E, se assim for, teremos de viver num Estado de emergência intermitente ou permanente? A protecção da vida será no futuro incompatível com a democracia? Sabemos de vários Estados asiáticos que obtiveram bons resultados confiando na disciplina dos cidadãos. Por que será que no Ocidente temos de aplicar multas para que as pessoas se protejam? Não estará aqui a condenação dos nossos sistemas educativos, uma educação centrada na falácia do empreendedorismo, que não educa para a solidariedade e para a cooperação, para os bens comuns e para tudo o mais que compõe o nosso destino comum?
Dizer que durante a pandemia as acções do Estado ocorrem no escuro, significa dizer que não se conhecem todas as consequências das acções. Mas obviamente conhecem-se algumas, e é na análise delas que podemos começar a suspeitar quais serão os cenários da pós-pandemia. Os países que decidiram cedo pelo confinamento, como Portugal, fizeram-no em geral por uma questão de princípio (defesa da vida) e por uma questão pragmática (evitar o colapso do sistema público de saúde). Qual delas dominou, saberemos no período seguinte. Durante a pandemia, o Estado revelou uma notável autonomia em relação aos mercados, que se eclipsaram, e aos interesses económicos, que, de repente, se converteram (interesseiramente?) à ideia da importância do Estado na regulação social. Foi sol de pouca dura? Vejamos os sinais.
O confinamento tem uma lógica de tal modo contra-corrente que a sua duração tem de ser limitada. Para os países que recorreram cedo a ele, a política começa com o abrandamento do confinamento e, com ela, o fim do consenso. Durante o confinamento, se os números aumentavam a culpa era do vírus e se os números diminuíam, o crédito era do Estado. A partir de agora, qualquer resultado negativo será atribuído à actuação do Estado, enquanto qualquer resultado positivo será atribuído à disciplina dos cidadãos. A dimensão do dissenso vai depender da exploração dos resultados negativos por parte de uma ultra-direita troikificada que existe em Portugal e a que a RTP pública intrigantemente continua a dar amplo espaço.
No que respeita à relativa autonomia do Estado português no próximo período, os sinais são desanimadores. Podemos vir mesmo a ter de concluir que o consenso entre o Presidente da República e o Governo, de saudar durante a pandemia, poderá vir a cobrar um preço alto no imediato pós-pandemia. A questão fundamental é a das mudanças no modelo social e económico cuja urgência foi exposta com particular veemência durante a pandemia. Haverá mudanças na medida em que o Estado tenha força para valorizar os novos ou renovados interesses revelados pela pandemia e para os impor aos velhos interesses de sempre. Alguns exemplos. Durante a pandemia gerou-se um consenso enorme sobre a valorização do serviço nacional de saúde. Esse consenso assentou não só no que o SNS fez, mas também no modo como o sistema privado se comportou. Não podendo beneficiar indevidamente com a crise, o sistema privado retirou-se para a posição parasitária à espera que a tormenta passasse e o sistema de saúde lhe voltasse a cair nas mãos. Por incrível que pareça, é isto o que vai suceder quando a Ministra da Saúde anuncia o recurso ao sistema privado para diminuir as listas de espera. Ou seja, voltamos ao passado, disfarçado de benefício a curto prazo para os cidadãos. Assim nos despreparamos activamente para a próxima pandemia. O regresso do velho também pode estar presente no modo como se pretende lidar com a TAP, uma intervenção do Estado que foi feita (e bem) à beira do abismo, mas que agora se podia corrigir desde que a oportunidade não se desperdiçasse.
Um outro sinal perturbador é o da permanência da lógica dos subsídios e incentivos dados às indústrias e serviços que alimentam o actual modelo de consumo de massas assente no transporte individual, na energia fóssil, na agricultura industrial e nos imensos centros comerciais que não tardarão a ser considerados zonas de alto risco se, entretanto, não forem redimensionados. Este modelo está intimamente ligado às mudanças climáticas e à iminente catástrofe ecológica que, segundo o último relatório da Plataforma Intergovernamental de Política Científica sobre a Biodiversidade e os Serviços Ecológicos (IPBES, no acrónimo do nome em inglês), estão directamente relacionados com a recorrência das pandemias. Ou seja, subsidiar o actual modelo produtivo e de consumo significa subsidiar a ocorrência de novas pandemias. Para se não desperdiçarem as oportunidades que a pandemia criou seria necessário que o tal consenso político fosse sujeito à condição que a experiência recente nos ensinou: se a esquerda fizer a política da direita, os cidadãos concluirão que a direita a faz melhor.
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