Para o aniversário do Recife
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Se fosse possível uma trégua para a guerra contra a pandemia, contra o vírus da presidência, seria neste 12 março, aniversário do Recife. Digo isso e me ponho a procurar a síntese da cidade em um poema, em um poeta, em uma rua, em uma ponte, em cheiros, vozes e canções. Mas que ambição descabida! São tantos e tantas faces, tantos bairros, tantas calçadas, tantos encontros, como poderia expressar uma síntese da diversidade mais contraditória do Recife?
Então cedo à compreensão do meu fracasso na difícil pesquisa. E reconsidero que não se deve procurar no longe o que está aqui, tão perto do coração. Para que tesouros sonhados em outras terras, para que frutos raros nunca provados, para que buscar almas altíssimas, quando temos o mais simples vivido e inexplorado? Dentro da memória da gente pode estar a nossa apaixonante cidade. Quero e preciso dizer:
Lembro os sem nomes, aqui nomeados pela primeira vez. Lembro a professora Termutes, do Ginásio Ipiranga, que sumiu no tempo. Ela, Termutes, a professora Termutes, ensinou a todos os alunos a dádiva da leitura em voz alta, e de tal modo que parecia formar atores do rádio, pelo que ela sabia extrair do texto com pausas, ênfases, inflexões na voz conforme o sentido da palavra escrita. No antigo segundo ano primário.
Lembro Euclides, o desenhista Euclides, soldado de polícia aposentado depois de um AVC, “derrame”, como chamávamos. Euclides ensinava a desenhar de graça a quem aparecesse, na terra, no chão de um beco da Rua Alegre, ou sobre a riqueza de um papel de embrulhar pão, mas sempre os desenhos de perfil em duas cabeças: primeiro, de um sargento da polícia militar de quepe, com destacada pala; depois, a de um índio, com exuberante cocar, que era símbolo da TV Jornal do Commercio. Mas como Euclides desenhava bem as suas duas únicas figuras. Quanta paciência ele punha na mão trêmula ao desenhar o perfil do sargento que ele não fora, e com tal zelo que em Euclides descia um líquido da boca, uma baba que umedecia o chão.
Lembro Jussara, de pele morena e misturada no rosto com traços de índia. Pequena de altura, mas elegante, docemente perfumada, com uma inteligência e graça que poucas vezes pude ver depois em qualquer mulher adulta. Quanta generosidade havia na sua beleza. Ela, tão franca e altiva, se deixava amar e sabia que era amada pelos olhos mais grosseiros.
Lembro Zelita, a moça solteira, Zelita, solteirona, que era discriminada por sofrer de epilepsia. Perdoem a barbárie, mas era assim, pessoas recebiam o tratamento de inválidas, estúpidas e loucas, porque de repente caíam entre convulsões. Quem tocasse na sua baba seria eletrocutado, passaria também a sofrer descargas nervosas. No entanto, nesse Recife bárbaro, Zelita se erguia e ensinava aos meninos contas de dividir, imensas, com divisores de quatro ou cinco algarismos, sorrindo, que era sua maneira de estar com os meninos. Zelita erguida a nos ensinar conta de dividir, pensávamos. Engano. Zelita nos ensinava coração. No chão da terra sem calçada, em aulas magníficas sem pagamento e sem cátedra. Sabemos hoje, Zelita nos desejava e abrigava todos como seus filhos, de todos os tamanhos.
Lembro a professora Rosa a ensinar desenho e artes plásticas aos meninos pobres do Colégio Alfredo Freyre. Alta, magra, com uma dedicação e afeto por aqueles jovens que um dia, talvez, quem sabe, se Deus provesse, poderiam ser ilustres pintores. Salve, salve, professora Rosa.
Lembro Dona Nicinha, a gorda, mãe de Spinelli, que era uma cozinheira magistral, que teve os seus dons elogiados por Gilberto Freyre. (O que é prova de muito bom gosto do velho sociólogo.) Dona Nicinha abria as portas da sua casa de pobre, de paredes de taipa, de trabalho, mantida pelo marido, o gráfico Lindoso, outro herói em silêncio, Dona Nicinha abria a sua casa todos os domingos para receber altos convidados: as pessoas amigas da sua altura e condição social. Quando não, de pior status. Todos ali compareciam em estado de prelibação, à espera da Sétima Maravilha do Arruda e do Recife: o rocambole salgado, macio, a joia da gastronomia máxima de todos os domingos. Compareciam na casinha de taipa da Rua do Triunfo, para deixar ainda mais satisfeita Dona Nicinha, que satisfeita ficava com a nossa emocionada satisfação.
Lembro os vendedores de mel de engenho, que esquecidos da sua profissão, em prejuízo do seu pequeno lucro, estendiam uma conchinha de mel para as mãos dos meninos sem dinheiro. Lembro e lembro. E noto enfim que o traço comum a todos eles foi a doação do próprio corpo e da própria alma a outros, uma doação que vinha da sua pessoa toda, íntegra e total. Eles, que tão pouco tinham para dar, deram mais do que seria muito dar: a sua pessoa inteira.
E, fundamental, lembro do romance “O filho renegado de Deus”, em uma feliz página:
“O menino sentia um gozo parecido ao que lhe dava no coração à hora do pão assado com manteiga. Devia haver naquilo, naquela alegria íntima que lhe aquecia o peito, a mesma alegria da noite, das seis horas, quando soava a hora do Ângelus no rádio, e, do lar, ele possuía apenas a mãe e o pão assado com manteiga. Nada mais, e tão fornecedores de plenitude, mãe e pão assado. A felicidade girava sempre em torno de coisas essenciais, comer e ternura, ou mesmo comer ternura, pois casava a fome ao alimento do afago da mãe. Comer carinho, comer afeto, comer pão com manteiga. Bem assado. Torrado, torradinho com o mesmo calor dos dedos quentes do toque. Maria e seu irmão gêmeo a se confidenciarem na minúscula cozinha compunham um quadro de fraternidade além do parentesco, do sangue e origem do ventre comum. O menino, como um secreta de Deus, observava-os. Irá compreendê-los só na memória, pela reconstrução dos cacos espalhados do quadro, das coisas mais orgânicas”.
Da cidade, pessoas assim que são mais eternas que pontes, edifícios, praças e ruas. As queridas pessoas da história viva do Recife.
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