Outro lugar de falar sobre racismo, fascismo e aborto

A escravidão, transmutada e perpetuada, é nossa principal mazela social não resolvida, fonte da maioria das tensões, disparidades e desigualdades atuais



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Como Marcelo Adnet disse no programa Roda Viva em agosto, não tenho lugar de fala para discorrer sobre as inúmeras mazelas do país por ser homem, branco e hétero. Só não incluí o rótulo de rico, como fez o ator. Procuro, no entanto, apresentar algumas considerações como uma possibilidade à discussão, usando outros lugares que possuo e em que estou inserido.

O debate se enriquece quando a pessoa certa, no lugar certo, também tem o devido espaço na mídia. A tão criticada Folha de S. Paulo, por exemplo, ganha muito com a chegada do professor e ativista Silvio Almeida, ainda mais quando assina seu primeiro texto dizendo que escreve o que quer. Precisamos entender que a discussão racial não é apenas a defesa de um grupo, mas da sobrevivência de toda a sociedade. A escravidão, transmutada e perpetuada, é nossa principal mazela social não resolvida, fonte da maioria das tensões, disparidades e desigualdades atuais. Silvio Almeida traz os elementos principais para isso – a filosofia e a política –, pois viver é tomar partido.

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Ainda no começo deste insano e pandemoníaco ano, vários articulistas tocaram o mesmo diapasão, com seus artigos de opinião em explícita oposição aos atos nazistas do governo federal. Naquele momento, o presidente xingava jornalistas – o que é atividade corriqueira – e Roberto Alvim evocava Goebbels. Não há comparação entre crimes contra a humanidade ou perseguições, mas nota-se que os judeus já estavam evitando mostrar seus sinais religiosos, enquanto os negros carregam na pele a marca do preconceito. Fato é que não é compatível a defesa dos direitos humanos e das minorias com o apoio ao governo instalado em Brasília. Esses artigos, especialmente os de representantes da comunidade judaica, são um contraponto à ingenuidade de alguns editoriais da época, ainda apostando em Regina Duarte como a ‘noiva’ da Cultura, pois a única previsibilidade desde então foi a da manutenção do aparelhamento ideológico retrógrado feito pelo presidente. A substituição do já de triste memória Roberto Alvim, como se viu, foi apenas uma mudança de moscas.

Não podemos nos esquecer de que as ações bolsonaristas são sempre articuladas com cortinas de fumaça, ações coordenadas para tirar o foco, frente a mais e mais escândalos de corrupção. No tempo pré-pandemia era a questão da Secom e a repercussão positiva do documentário Democracia em Vertigem, de Petra Costa, em evidência naquele momento. Se antes da pandemia nos perguntávamos até quando aceitaríamos passivamente esses ataques à democracia e à Constituição, a resposta ‘para sempre’ é dada agora em função dos descalabros e crimes diuturnamente praticados.

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Por fim, incluo nessas reflexões o aborto, outra questão importante que veio à tona, ainda mais que Djamila Ribeiro tem sido bem direta e indo ao ponto nos aspectos sociais, religiosos e racistas relacionados ao tema. Ela tem afirmado que “descriminalizar o aborto é desafiar privilégios concedidos aos homens”. Infelizmente, no Brasil evoluiu muito pouco a discussão do aborto como questão de saúde pública, mesmo em governos mais progressistas e menos misóginos. O trágico caso da menina violentada múltiplas vezes, incluindo ter de se deslocar para praticar ato legal e ser perseguida nas redes sociais, é apenas um deles e que ganhou destaque por vir a público. Mas é difícil que isso contribua para estabelecer uma política de saúde pública libertadora e de respeito à mulher.

Adilson Roberto Gonçalves, pesquisador da Unesp

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