Os verdadeiros inimigos do STF e das Forças Armadas

Não é o civil que precisa ser enquadrado. As FFAA é que precisam se desenquadrar

Estátuas do STF destruídas por bolsonaristas que invadiram o prédio da Corte, em Brasília, no 8/1
Estátuas do STF destruídas por bolsonaristas que invadiram o prédio da Corte, em Brasília, no 8/1 (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)


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Por Hildegard Angel, para o 247

Quando perguntaram ao presidente Jair Bolsonaro "qual foi o principal feito de seu governo?", ele disse: "Olha, você não via as cores verde e amarela por aí, agora estão por toda parte...".

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Bem, se a resposta fosse de um designer de moda, até cabia, apesar de se esperar muito mais de um estilista do que lançar tendência de cores. 

O grande feito de seu governo, que Jair não mencionou, foi plantar o ódio contra as instituições. Particularmente o ódio contra o STF, a ponto de seus seguidores despedaçarem o prédio do Supremo, arrancarem a cabeça de bronze da "Justiça" e a escantearem longe, sendo encontrada estatelada no gramado, como bola de futebol. 

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Já nos opositores de Bolsonaro o efeito colateral provocado por ele foi uma aversão crescente e generalizada às Forças Armadas. É praticamente um mantra nas redes sociais a frase repetida à exaustão, "as Forças Armadas têm que acabar". A polarização exacerbada na política causa o ímpeto destruidor. Nem o STF precisa acabar, nem as Forças Armadas. Não precisam nem devem.

Ambos foram artífices do próprio enfraquecimento. O exibicionismo das capas e bocas, diante das câmeras de TV, nas transmissões do julgamento da AP 470 (Mensalão), iniciou e processo degradador da alta corte junto aos setores mais críticos da sociedade. Nada como o ridículo para danificar imagens. Paradoxalmente, essa mise-en-scène alegórica deu o "start" na popularidade do Supremo sob os holofotes das redes de TV. 

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Enquanto o juiz Joaquim Barbosa era louvado em capas de revistas por condenar sem provas, tendo como base a "Teoria do domínio do fato", importada da Alemanha, ele era também duramente criticado nos círculos de juristas conceituados, inclusive aquele que desenvolveu a tese, Claus Roxin, que objetou a forma equivocada de sua aplicação pelo tribunal brasileiro. Sob o selo "com Supremo com tudo", cunhado por Romero Jucá em conversa gravada com o presidente da Transpetro, o STF surfou na onda da popularidade e das iniquidades do "golpe" em Dilma e da Lava Jato. Os holofotes da mídia faziam o resto. 

Cego pela fosforescência a ele conferida, o Supremo deixou de ser supremo. A politização lhe fez grande mal, afetou seu discernimento. A lente das conveniências políticas desfocou os saberes técnicos do colegiado, prejudicando sua visão da realidade e da própria Constituição. As doutas decisões não se baseavam mais em artigos das leis, elas dependiam do ministro sorteado. Sabia-se que, fosse o ministro Y, a decisão seria Z. Fosse o ministro Z, seria Y. Nessa fase, os ministros do STF só faltavam voar, como o Batman. Eram os super-heróis do Judiciário, os campeões da luta contra o PT e contra a corrupção. Ali, se apequenavam, descendo ao nível de um juiz provinciano de primeira instância, praticamente disputando com ele o estrelato de salvadores da pátria contra a corrupção.

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No período de seu apoio incondicional à Lava Jato, o STF foi exaltado para, no momento seguinte, ser alvo de desconfianças, a partir das manifestações enérgicas do ministro Gilmar Mendes contra a inversão de papéis, sendo dado a Moro e à Lava Jato poder e protagonismo que não lhes cabiam. 

O STF trocava os passos e as pernas, como um dançarino de tango, de acordo com a música, com a parceira e, no caso específico, com o contexto político. Vamos dançar juntos, voltando passos atrás, até fevereiro de 2009, quando, a partir do julgamento do HC 84.078, de relatoria do ministro Eros Grau, a corte passou a entender que nosso ordenamento jurídico não era compatível com a execução da pena provisória. Porém, em 2016, sob o “clamor” da mídia corporativa e dos que lhe faziam eco, o STF mudou sua posição em relação à possibilidade de execução provisória da pena antes do transitado e julgado, atropelando a tese da presunção da inocência. Isso permitiu prisões a torto e à direita pela Operação Lava Jato.  

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Em 7 de abril de 2018, Lula se entregou à PF e foi preso, após grande suspense, com o STF negando o pedido de Habeas Corpus preventivo, apresentado pela defesa, para que a pena fosse cumprida após esgotados todos os recursos aos Tribunais Superiores. Consta que o tal “segredo” que Bolsonaro e o ex-comandante do Exército Villas-Boas compartilham é o tuíte intimidatório* do general, na véspera da decisão da alta corte, dia 4 de abril, que tirou o franco favorito Lula do páreo eleitoral. 

Em 2019, houve outra guinada de interpretação no STF, retornando à versão daquela de a partir de fevereiro de 2009, de que o cumprimento da pena somente pode ter início ao fim de todas as possibilidades de recursos, golpe fatal para a Lava Jato. Em 14/04/2021, o Plenário do Supremo Tribunal Federal confirmou a incompetência da 13ª Vara da Justiça Federal de Curitiba e anulou as ações penais contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por não se enquadrarem no contexto da operação Lava Jato. 

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Ao som deste “Corrientes 348”*, o povo brasileiro dançou pra lá e pra cá e a reputação do STF escorregou no salão de dança. Tombo de que agora se recupera graças, sobretudo, à assertividade do ministro Alexandre de Moraes e a sua obediência rigorosa aos artigos e incisos da Constituição. Sem tango. 

Bem, agora vamos às Forças Armadas. O que antes era um tabu se tornou praticamente corriqueiro no Brasil: ataques abertos às Forças Armadas. Este é também um feito do Governo de Bolsonaro. Antes de 1964, um sentimento respeitoso dos cidadãos os fazia se manifestarem com reverência, quando se referiam às Forças Armadas. Havia a sensação geral de que a instituição das Forças Armadas fazia bem ao Brasil, era patriota, nacionalista, protegia as fronteiras, a soberania e o povo. O soldadinho de papel era um personagem querido do imaginário infantil, dos jogos recreativos nos pátios escolares. Depois de 21 anos de ditadura, o respeito deu lugar ao medo. Aquela geração, que não havia vivido a truculência da ditadura de Vargas, aprendeu na carne dos seus e dos outros o quão perigosos podiam ser os militares. Era o respeito somado ao medo. 

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E assim os brasileiros foram aceitando tudo, sem anistia, sem grandes cobranças, ao contrário do povo argentino e outros. Haja vista as comissões de mortos, de desaparecidos, da verdade, que se restringiram a não ir além das denúncias. Toda essa gentileza, parece, não foi bem entendida pelos militares, que viram nas denúncias, na mera menção de fatos e nomes, uma grave provocação. A ela reagiram, tramando seu retorno ao poder “através do voto”, e o cavalo escolhido para incorporar o “presidente” foi Jair Bolsonaro. Não por ele ter sido da cavalaria. 

Cavalo, na umbanda, é o médium da incorporação, é aquela pessoa em estado de transe com sua entidade. É um papel honroso, que implica em que o “filho de fé” escolhido tenha nobreza nas atitudes, seja fiel, honesto, tenha força de vontade, desapego material, para que os espíritos desencarnados e encarnados atinjam, através dele, a plenitude e a sublimação. Para ser um Presidente da República, se o cavalo que vai encarnar o papel não é tudo isso, ao menos tem que parecer ser.  

Jair Bolsonaro não é nem se parece. As Forças Armadas montaram no cavalo errado. Bolsonaro é praticamente um pangaré, que se recusa a obedecer às rédeas de seu jóquei, enfia a pata na lama, no mata-burro, não galopa, dá alguns passos de pocotó e logo para pra descansar, come a ração dos outros cavalos, suja o pasto todo, apronta briga com garanhão e, como é covarde, anda seguido de uma manada de cavalos musculosos, de preferencia armados, para botar medo nos outros do pasto. 

Bolsonaro não é nenhum cavalo branco de Napoleão, que, aliás, se chamava Marengo; não é o cavalo Bucéfalo, de Alexandre, o Grande; o Rocinante famoso, cavalo gente fina de Dom Quixote; o Palomo, em que Simon Bolívar cavalgou em todas as conquistas e por isso as suas ferraduras estão exposta num museu na Colômbia; o Pégaso de Zeus, único cavalo do Olimpo. O cavalo que Bolsonaro incorpora talvez seja o de Tróia, que era de madeira, e cara de pau é atributo seu. Além do que o Cavalo de Troia foi usado como estratégia para atravessar as espessas muralhas de um território (Troia/Brasil) e chegando lá abriu as portas de sua barriga, de onde saltou um Exército! Disseram que a História se repete como farsa. Dito e feito.

Tudo isso para dizer que Bolsonaro foi a estratégia do fracasso. Se o objetivo das Forças Armadas, particularmente do Exército, era quebrar uma noz na boca dos governos que ousaram mexer na ferida nunca cicatrizada das gestões militares, o efeito foi o contrário. Toda a confiança, o encanto ou a consideração, que poderia haver pelas Forças Armadas se diluíram no poço de vulgaridades, perversidades, desvios, maus exemplos, grosserias e desacertos dos últimos quatro anos, quando foi o cavalo quem botou o país no cabresto e não o contrário. 

Não, as Forças Armadas não devem acabar. Elas são necessárias, essenciais, num país de nosso tamanho, com 9.200 quilômetros de extensão de costa, considerando as saliências e reentrâncias; com 16.885,7 km de fronteiras com 10 países dos 12 da América do Sul; com 8.514.876 Km² de área, sendo o quinto maior país do planeta, só menor que Rússia, Canadá, China e Estados Unidos; com população de 215.620.355 milhões; imensa diversidade étnica, cultural, religiosa, climática, de biomas, uma infinidade de riquezas e carências incontáveis.

As FFAA não podem acabar porque se destinam a assegurar a defesa do território nacional, a defesa dos  recursos naturais, industriais e tecnológicos brasileiros; proteger os bens do país; garantirem, com o povo e as demais instituições da República, a soberania do país. Mas, para não acabarem, as FFAA precisam mudar. As FFAA não podem e jamais conseguirão adequar o povo brasileiro a seus princípios morais, conceitos, preconceitos. Não é o povo brasileiro que tem que se adaptar a elas, mas são elas ao povo brasileiro. Não é o povo brasileiro que tem que frequentar as escolas militares, são as escolas militares que precisam adequar seu ensino e suas cartilhas à realidade brasileira, à verdadeira História do Brasil. Não é o jovem brasileiro que tem que raspar a nuca com máquina 2, são as FFAA que precisam atualizar seu penteado. 

Não é a moral conservadora das FFAA que deve se impor, ela é que precisa aceitar as novas atitudes e transformações. As FFAA não vão conseguir encaixotar nossa cultura e a arte dentro de seus padrões estéticos, elas precisam aceitar a ousadia da criatividade artística, não tentar censurá-la, restringi-la. Porque o mundo hoje não tem mais fronteiras nem limites de criação, pensamento, transformação. O mundo é revolução contínua, metamorfose ambulante – toca Raul! 

No mundo da Internet não existem medos, todos têm voz, opinião e coragem para externar o que pensam. Não há como aprisionar a opinião. Assim como não há como esconder mal feitos. Os hackers estão aí, para não nos deixar mentir. São elas, as FFAA, que precisam sanear seus quadros, desmilicianizá-los, coibir os desvios, punir com rigor os que cometem crimes e desonestidades, e não passar mão em suas cabeças, em nome do corporativismo e do companheirismo das casernas. O corporativismo é o segredo do Polichinelo, todos sabem. 

Não é o civil que precisa ser enquadrado. As FFAA é que precisam se desenquadrar, e isso não implica em desobedecer hierarquia e romper padrões, caso não se queira rompê-los. Implica em não ver o civil como um diferente a ser corrigido. O Brasil não quer e não vai se transformar num grande quartel em que todos batem continência. 

O que vemos esses dias é o Exército numa crise de adolescente, batendo a porta, desafiando os superiores, fazendo pirraça porque não pode ser contrariado. O “inimigo interno” das FFAA não é o povo, não são os intelectuais, artistas, jornalistas, comunistas. Não são os que defendem que elas se dediquem ao papel constitucional de assegurar nossa defesa a uma eventual agressão externa, aqueles que igualmente defendem que elas, na forma constitucional, sejam subordinadas ao poder civil. Não são os que querem que elas renunciem a essa cretinice do poder moderador. Estes, aliás, são seus verdadeiros amigos, pois são aqueles que tentam reconduzi-la, através do apelo da razão, à sua legítima essência primária. O inimigo interno está dentro delas, está interno.

*@Gen_VillasBoas – “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais.”

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