Os tempos da revolução em Friedrich Engels
“O direito à revolução é o único ‘direito histórico’ real”
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(Publicado no site A Terra é Redonda)
No 18 de março, em 1871, foi proclamada a Comuna de Paris, a primeira experiência de um governo dos trabalhadores. Durante 72 dias ela despertou o entusiasmo dos igualitaristas de todas as tendências de esquerda. Mas a derrota da Comuna levou a uma situação em que a preservação da Primeira Internacional ficou insustentável.
À virada histórica da relação de forças na França correspondeu também um deslocamento do eixo de organização do movimento à escala internacional para a Alemanha, onde a corrente marxista se uniu a corrente de Ferdinand Lassale no Congresso de Gotha.
Mesmo sob a repressão das leis anti-socialistas de Bismarck o partido de August Bebel e Wilhelm Liebknecht conseguiu estender a sua influência e, a partir de 1890, passou a disputar as eleições sob as suas próprias bandeiras como SPD, com resultados promissores. No “testamento” Friedrich Engels insiste na importância da nova “tática alemã” para todas as seções da Segunda Internacional: “No entanto, utilizando tão eficazmente o sufrágio universal, o proletariado praticara um método de luta inteiramente novo que se desenvolveu com rapidez. Ocorreu então que a burguesia e o governo chegaram a ter mais medo da atuação legal que da atuação ilegal do partido operário, mais temor aos êxitos das eleições que aos êxitos da rebelião”.[i]
O entusiasmo com o partido alemão, com sua vigorosa implantação social e sucessos eleitorais, por um lado e, talvez o balanço histórico amargo da derrota da Comuna, pareceriam indicar que o velho Engels (de quem se disse que nos anos 1990 viveu uma velhice feliz) acreditava que, pelo menos na Alemanha, a questão de poder se enfrentava diante de novas possibilidades. Mas, também, dificuldades novas.
Possibilidades abertas pelo crescente peso social dos trabalhadores, e sua capacidade de elevar a consciência de classe a novos patamares de auto-organização permanente através de sindicatos que filiavam milhões, com a utilização hábil das margens ampliadas de liberdade, enfim, a escola de aprendizagem sindical-parlamentar.
Dificuldades que resultavam do esgotamento histórico das revoluções burguesas, da acomodação bastarda da burguesia com os regimes bonapartistas, do deslocamento das camadas médias, ou seja, a ruptura da frente de “todo o povo pela democracia”, tal como ocorreu na primeira fase de fevereiro de 1848.
Por último, dificuldades que nasciam das novas necessidades políticas subjetivas que surgiam como obstáculos para o proletariado, que não podia contar com triunfos fáceis. Por outro lado, Friedrich Engels sequer considerava o regime bismarquista senil do Kaiser uma democracia. Ao contrário, considerava que as limitadas liberdades estavam ameaçadas justamente pelo crescente peso do SPD e, por isso, baralhava a hipótese de uma revolução em legítima defesa contra uma aventura neobonapartista do regime, ou seja, uma revolução democrática defensiva contra um golpe bonapartista.
Assim explicava Friedrich Engels as suas conclusões sobre os novos desafios da experiência da tática alemã: “O direito à revolução é o único “direito histórico” real, o único sobre o qual repousam todos os Estados modernos sem exceção. (…) Mas, ocorra o que ocorrer nos outros países, a social-democracia alemã tem uma situação particular e, em decorrência pelo menos no momento, uma tarefa também particular. Com dois milhões de eleitores que ela envia às urnas, neles incluídos os jovens e as mulheres que estão por detrás dos sufragantes na qualidade de não eleitores, constituem a massa mais numerosa, mais compacta, a “força de choque” decisiva do exército proletário internacional. (…) Ora, só há um meio de poder conter durante certo prazo o crescimento continuo das forças combatentes socialistas na Alemanha, e mesmo de fazê-las regredir momentaneamente: um choque de grande envergadura com as tropas, uma sangria como a de 1871, em Paris”.[ii]
Friedrich Engels alertava, portanto, para uma reação burguesa contrarrevolucionária impiedosa, com recursos renovados, bases sociais de apoio ampliadas, capacidade de iniciativa política e até um dispositivo militar moderno, muito superior aos que se abateu sobre a Comuna. Mas ponderava também que seria fundamental aprender as lições do período histórico anterior. A principal era a necessidade de conquistar o apoio entre a maioria das camadas oprimidas do povo, e escolher o momento político do confronto, evitando a qualquer preço um combate prematuro, sem que as melhores condições estivessem reunidas, e conclui: “Só poderão conter a subversão social-democrática, que no momento se dá tão bem respeitando a lei, mediante a subversão dos partidos da ordem, os quais não podem viver sem violar as leis(….) ensinaram-lhes o único caminho pelo qual talvez possam pegar pelo gasganete os operários, que simplesmente se recusam a deixar-se arrastar aos combates de rua. Violação da Constituição, ditadura, volta ao absolutismo. (…) Não vos esqueçais, porém, de que o Império Alemão, como todos os pequenos Estados e, em geral, todos os Estados modernos, é produto de um pacto; primeiramente, de um pacto de príncipes entre si e, depois, dos príncipes com o povo. Se uma das partes quebra o pacto, todo ele é nulo e a outra parte está desobrigada. Bismarck demonstrou isso brilhantemente em 1866. Portanto, se violais a Constituição do Reich, a social-democracia ficará livre para fazer o que lhe parecer melhor a vosso respeito. Mas o que fará então não há de vos dizer hoje”.[iii]
Destes fragmentos se retiram quatro conclusões: (a) que sendo revoluções de maioria, as revoluções proletárias seriam, paradoxalmente, socialmente mais poderosas mas, ao mesmo tempo, politicamente mais difíceis que as revoluções burguesas; (b) que a conquista da democracia repousaria agora nas mãos do proletariado, superando a hipótese de 1848 das duas revoluções, ainda que naquelas circunstâncias pensadas como um processo ininterrupto de revolução em permanência; (c) que a nova hipótese estratégica exigiria a capacidade dos partidos de utilizar os espaços de legalidade, por reduzidos que fossem, para acumular forças, estimular a auto-organização e elevar o nível de atividade, confiança e consciência de classe, mas também evitar, em particular na Alemanha, um confronto precipitado; (d) que a luta pelo poder deveria ser buscada no melhor momento e, se possível, em condições de legítima defesa, em resposta defensiva à iniciativa contra revolucionária do regime que seria incapaz de conviver de forma perene com um forte movimento operário na legalidade.
Destes quatro postulados somente o último não sobreviveu à prova do balanço histórico. O que não é irrelevante (sabemos como esta premissa teve razoável importância nas formulações “quietistas” de Karl Kautsky que enfureciam Rosa Luxemburgo no SPD). Em que medida, a leitura que Kautsky posteriormente fez da herança deixada por Friedrich Engels para justificar a sua defesa de uma política de adaptação do SPD aos limites da legalidade da democracia monárquica do Kaiser é outro problema.
Poder-se-ia, por último, afirmar que uma teoria dos tempos da revolução em Marx e Engels, um pensamento sobre época, situação e crise revolucionária, com distintos ritmos, desigualmente desenvolvidos, mas entrelaçados em circunstâncias históricas únicas, foi-se construindo como expressão de uma dualidade tensionada de fatores. [iv]
No seu centro está uma ênfase na pulsação circular da crise econômica, como um tempo de movimento e inércia do capital, que se desenvolve à escala do mercado mundial e encontra refrações nacionais em cada país; e outro é o tempo das lutas de classes: “A primeira prova ocorreu quando Marx, a partir da primavera de 1850, encontrou lazeres para se entregar a estudos econômicos e empreendeu, primeiramente, o da História econômica dos dez últimos anos. Desse modo, ele extraiu, com toda clareza, dos próprios fatos, o que até então não fizera senão deduzir, semi-aprioristicamente, de materiais insuficientes, isto é, que a crise do comércio mundial, ocorrida em 1847, fora a verdadeira mãe das revoluções de fevereiro e de março e que a prosperidade industrial, que voltara pouco a pouco, (…) foi a força vivificante na qual a reação europeia hauriu renovado vigor (…) não é possível uma nova revolução senão em consequência de uma nova crise. Mas esta é tão certa quanto aquela”.[v]
Esses dois tempos são distintos, mas estão articulados, em formas que são, para o essencial, imprevisíveis, porque amadurecem em ritmos que lhes são próprios, únicos e discordantes.[vi]
No entanto, essas duas forças motrizes do processo histórico estão amalgamadas no sentido de uma unidade substantiva do tempo. Assim como a crise econômica incide sobre as lutas de classes, porque abre e precipita a crise social, a lutas de classes, a maior insegurança ou maior determinação de cada classe social na defesa de seus interesses, também incide sobre o processo econômico aprofundando as tendências à crise ou favorecendo a recuperação.
Notas
[i] Engels insiste de forma inequívoca nas vantagens políticas que a utilização da legalidade trouxe ao fortalecimento do partido operário e na necessidade de explorar até o limite as possibilidades das novas liberdades como parte de um processo de acumulação de forças. Esta passagem do Testamento tem permitido, todavia, uma polêmica sobre uma nova atitude de Engels, supostamente mais “deslumbrada” face à democracia. Não parece ser o caso. Marx e Engels sempre consideraram a democracia um regime progressivo contra o absolutismo, e não cansaram de escrever incontáveis páginas em sua defesa, inclusive lamentando a covardia histórica da burguesia alemã de recusar a luta por uma revolução política contra o regime de Bismarck. O novo no Testamento era a defesa clara da “tática alemã” para todo o movimento operário internacional: “Mesmo que o sufrágio universal não tivesse produzido outros benefícios que o de permitir contar-nos a nós mesmos cada três anos, que o de aumentar, pelo ascenso regularmente verificado e extremamente rápido do número de votos, a certeza dos operários na vitória, bem como na mesma medida o pavor entre seus adversários, tornando-se assim nosso melhor meio de propaganda; mesmo que só servisse para nos informar exatamente nossa própria força (…) preservando-nos tanto de um inoportuno temor como de uma louca audácia igualmente despropositada, e esse fosse o único benefício que tivéssemos tirado do direito de sufrágio, já seria mais do que suficiente. Mas ele nos deu muito mais. Forneceu-nos, com a agitação eleitoral, um meio inigualável para entrar em contacto com as massas populares onde elas ainda estão afastadas de nós, para obrigar todos os partidos a defender diante do povo suas opiniões; (…) ademais abriu a nossos representantes no Reichstag uma tribuna do alto da qual podem falar não apenas a seus adversários no Parlamento, mas também às massas do lado de fora com maior autoridade e maior liberdade que na imprensa e nas reuniões”. ENGELS, Friedrich. “Introdução à A Luta de classes na França” In MARX e ENGELS. Obras escolhidas. São Paulo, Alfa-Omega, volume 1. p.103.
[ii] ENGELS, Friedrich, “Introdução A Luta de classes na França” In MARX e ENGELS. Obras escolhidas. São Paulo, Alfa-Omega, volume1, p.108
[iii] ENGELS, Friedrich. “Introdução à A Luta de classes na França” In MARX e ENGELS. Obras escolhidas. São Paulo, Alfa-Omega, volume1, p.108).
[iv] As crises revolucionárias germinaram onde a crise econômica abriu o caminho para uma crise social profunda, gerou divisões de projetos no interior das classes dominantes que se expressaram em crise dos regimes políticos. As situações revolucionárias são aquelas em que se abre a crise do regime, e podem ou não evoluir na direção de crises revolucionárias. Não confundir, contudo, uma crise do regime de dominação com uma crise política de governo: nas primeiras precipita-se um questionamento às instituições, pela entrada em cena através de mobilizações políticas unificadas das massas, nas segundas está em disputa, somente, quais entre os partidos do regime, exercerá o poder e com que táticas políticas. Engels, contudo, não simplifica nem facilita a questão: a crise econômica nos é apresentada como condição necessária, mas não suficiente. É preciso que ela encontre um terreno fértil na crise social, não somente uma divisão entre as classes proprietárias, mas também uma disposição de luta e confiança das camadas populares nas suas próprias forças.
[v] Engels, nesta citação da Introdução de 1895, insiste em reestabelecer o vínculo entre a crise revolucionária de 1848 na França (sobretudo em Paris, como aliás voltará a ocorrer em 1871, e será uma das razões chaves para a derrota da Comuna, o atraso da chamada “França profunda”) na Alemanha e no Império Austro-Húngaro com a crise econômica. Esta preocupação não é, como sabemos, metodologicamente irrelevante. Não é incomum que se critique esta interpretação das relações entre crise econômica e crise revolucionária como ou economicista ou catastrofista. Mas uma interpretação marxista dos tempos da politica, das suas acelerações e desacelerações, deveria estar indissoluvelmente articulada com uma revalorização das oscilações da vida econômica. (ENGELS, Friedrich. “Introdução A Luta de classes na França” In MARX e ENGELS. Obras escolhidas. São Paulo, Alfa-Omega, volume1. p.95)
[vi] Imprevisíveis exige esclarecimento. Não se confunda com mistério. Entenda-se imprevisíveis por excesso de determinações e não por ausência. Na verdade, é intrigante a relação entre crises econômicas e revoluções. As crises econômicas, como sabemos, são fenômenos regulares e quase decenais. É possível inclusive que estejamos assistindo a um processo histórico de abreviamento do movimento de rotação do capital fixo. Evidentemente, não há uma correspondência simples entre esses ciclos e as vagas de ascenso da luta de classes. Mas há regularidades curiosas. Expliquemo-nos. Ainda que o século XX seja por excelência o século das guerras e revoluções (e elas atravessaram impiedosamente todos os continentes e décadas), não deixa de ser interessante observar algumas circunstâncias das quatro grandes ondas da revolução mundial: (a) a de 1917/23 que atinge severamente a Europa Central e tem no seu epicentro a Rússia; (b) a dos anos 30 que sucedeu a grande crise de 29 e teve seu epicentro na Alemanha em 33, mas se extendeu para a Espanha e França (guerra civil e frente popular); (c) a que se precipita ao final da Segunda Guerra Mundial, se estende pelo Mediterrâneo e tem o epicentro na Itália e nos Balcãs;(d) a de 1968/79, e que é contemporânea do esgotamento da onda longa de crescimento do pós- guerra, e que se abre com o Maio Francês, passa pela década vermelha na Itália, revolução dos Cravos e crise do franquismo, nos países dependentes pela derrota americana no Vietnam, e, finalmente, em 1979, culmina com a revolução sandinista e a queda do Xá no Irã; Duas estão associadas à crise do sistema inter-estados ao final de guerras mundiais, quando esteve em jogo a construção de uma nova ordem mundial. Outras duas coincidem com o fim das fases ascendentes das últimas duas ondas longas Kondratiev, quando às crises econômicas do ciclo curto se uniram à crise sistêmica de acumulação de longa duração, e se abriu um quadro de depressão prolongada que exige novas condições históricas para um relançamento sustentado do crescimento. Alguma razão tinha o velho Engels…
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