Os rumos das esquerdas e problemas de hegemonia

"Sem renovação e reposicionamento as esquerdas tendem a demorar em reconquistar reputação e posições majoritárias de influência e força na sociedade. Dependerão menos de suas virtudes e capacidades e mais das injunções dos imprevistos e das vicissitudes e erros de seus inimigos", diz o professor Aldo Fornazieri

Pesquisa do Instituto Paraná mostra Lula líder e que eleição presidencial é 'água parada'
Pesquisa do Instituto Paraná mostra Lula líder e que eleição presidencial é 'água parada' (Foto: Ricardo Stuckert)


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Alguns números de pesquisas que foram divulgadas nos últimos tempos sinalizam uma situação pouco confortável para as esquerdas e para o campo progressista quando se olha para uma perspectiva de futuro. É certo que a liberdade de Lula tem o beneplácito da maioria da população e isto é algo significativo. Mas existem contrafaces a este dado da política. Por exemplo: a avaliação de Bolsonaro se estabilizou em torno dos 30% e ela pode se recuperar com a tendência da recuperação da economia, ainda que lenta. Se esta tendência se confirmar, e salvo as incursões do imprevisto e do acaso, Bolsonaro chegará competitivo em 2022.

Alguns podem argumentar que Bolsonaro não acumulará força significativa nas eleições municipais de 2020. Isto é verdade. Mas é verdade também que existe um elevado grau de autonomia entre as eleições municipais e as eleições presidenciais, como já comprovaram vários estudos a partir de dados pregressos. O próprio Bolsonaro venceu as eleições de 2018 sem que seu partido tivesse qualquer força no âmbito dos municípios. 

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Existem dois outros números que devem preocupar as esquerdas. O primeiro diz respeito à alta popularidade de Sérgio Moro. Segundo o Datafolha ele tem 53% de avaliação positiva. Alguns analistas, equivocadamente, dizem que isto deve preocupar Bolsonaro. Pelo contrário: isto deve preocupar as esquerdas – especialmente o PT. Uma chapa Bolsonaro-Moro teria alta competitividade. Nem os ataques recorrentes das esquerdas contra Moro e nem as revelações da Vaza Jato conseguiram derrubar sua popularidade. Ou surge algo muito contundente contra ele ou terá que se rever a estratégia de ataque, pois até agora ela tem sido ineficaz.

O segundo número que deve ser alvo das atenções das esquerdas se remete à elevada aprovação da Lava Jato. Segundo o mesmo Datafolha, ela tem apoio de 81% da população. Aqui também se revela um fracasso das estratégias de ataque das esquerdas contra a operação. 

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Neste ponto surge um problema de disputa da hegemonia. Quando Antônio Gramasci indicou a necessidade de mudança da estratégia revolucionária no Ocidente, no famoso texto “A Revolução contra o Capital de Karl Marx”, preconizando a passagem da estratégia da “guerra de movimento”, aplicada vitoriosamente na Rússia, para a “guerra de posição” na Europa Ocidental, definiu o conceito de hegemonia como uma combinação variável, dependendo de cada Estado nacional, entre força e consentimento no processo de dominação ou de liderança. O concito de consentimento, por um lado, significa as concessões que se deve fazer aos grupos que se pretende dirigir, aos grupos subalternos. Por outro, significa os sistemas de crenças como valores morais, concepções de mundo, religião, cultura etc., que orientam as escolhas e as atitudes das pessoas. 

A repulsa à corrupção é hoje um valor alastrado nas sociedades em geral e no Brasil em particular. As esquerdas perderam a batalha em torno deste valor e parece que se recusam em tentar recuperar esta bandeira na luta contra a direita. A rigor, as esquerdas estão perdendo a luta pela hegemonia porque não promovem uma eficiente luta em torno de valores, crenças, visão de mundo e ideologia. A direita está numa clara ofensiva neste terreno e conta com dois poderosíssimos aliados: 1) de um lado, o conservadorismo natural das sociedades; 2) de outro, o concurso das igrejas evangélicas, que reforçam o conservadorismo e crescem no âmbito dos momentos de crise, como mostra pesquisa recente feita por três economistas e divulgada pela Folha. 

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Valores, crenças e ideologias têm um peso menor em eleições municipais, pois nelas prevalecem as questões locais, mas têm um peso significativo em eleições nacionais. Se as esquerdas quiserem recuperar terreno até 2022 precisam se reposicionar em relação a diversos temas: valores morais, combate à corrupção, ética na política, transparência, segurança pública, crise e emergência ambiental, privilégios no setor público nos três poderes, sonegação fiscal, distribuição da carga tributária etc. O conservadorismo oferece aos mais pobres a ajuda de Deus, o empreendedorismo comunitário, a prosperidade, o triunfo individual e uma vida melhor a partir do esforço individual. Este ideário se casa com o ideário do ultraliberalismo do governo e de Paulo Guedes. As esquerdas precisam ter alternativas para disputar a hegemonia junto às multidões pobres e sofridas das periferias.

Num momento em que a desigualdade se torna avassaladora, as esquerdas precisam erguer a bandeira do socialismo democrático, ressignificando-o em relação a acepções do passado. É preciso defender a solidariedade, a justiça, a igualdade, a liberdade, os direitos e o humanismo. A direita está travando uma ampla guerra no campo dos valores, na disputa pela hegemonia. As esquerdas precisam entrar com força nesta guerra, com estratégias e meios eficazes. 

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A crise das democracias ocidentais é, ao mesmo tempo, uma crise das esquerdas, da social-democracia e da centro-direita tradicional. Ganha terreno a extrema-direita, a direita neoliberal, de um lado, e os agrupamentos ambientalistas (Verdes) e novos grupos de esquerda, de outro. As esquerdas brasileiras, configuradas no PT, PCdoB e PSol e nos partidos de centro-esquerda como PSB e PDT não souberam se reposicionar. O PSol acena este reposicionamento. Se ele vier, será menos obra dos grupos tradicionais que compõem o partido e mais pela pressão dos novos movimentos que a ele estão aderindo. Os grupos da esquerda tradicional que articularam o surgimento do PSol tendem a se tornar focos de resistência à renovação e ao reposicionamento do partido. 

No PCdoB e no PT a renovação e o reposicionamento serão ainda mais difíceis. No PCdoB, por conta de sua ideologia marxista tradicional. No PT, o que dificulta a renovação e o reposicionamento é o pacto em torno de interesses de mandatos, dos grupos dominantes e da burocracia. Lula joga um duplo papel nesse ambiente: por um lado, é o avalista do pacto do status quo do PT. Por outro, pressiona o PT como um todo a partir de fora do partido. A partir das demandas populares. Mas o que termina prevalecendo é o establishment partidário. 

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Sem renovação e reposicionamento as esquerdas tendem a demorar em reconquistar reputação e posições majoritárias de influência e força na sociedade. Dependerão menos de suas virtudes e capacidades e mais das injunções dos imprevistos e das vicissitudes e erros de seus inimigos.

Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).

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