Os perigos da gestão pública CEO
Afinal, se dá lucro e, portanto, permite ampliação dos investimentos no campo empresarial, por que não seria assim no âmbito público, resultando na criação de escolas e hospitais e em melhorias na segurança? A questão é tentadora e engana muitos brasileiros que, honestamente, buscam melhorar a eficiência do Estado e os serviços públicos
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Fosse a gestão pública tal qual a privada, há muito os Governos municipais, estaduais e federal teriam sido ocupados por gestores de sucesso em grandes empresas. O cenário atual que temos no Brasil é de conflagração de um tipo de olhar para o Estado que legitima essa visão pouco abrangente dos problemas e deveres da gestão pública, que identifica nos empreendimentos privados o modelo de administração que deve ser levado ao Governo.
Afinal, se dá lucro e, portanto, permite ampliação dos investimentos no campo empresarial, por que não seria assim no âmbito público, resultando na criação de escolas e hospitais e em melhorias na segurança?
A questão é tentadora e engana muitos brasileiros que, honestamente, buscam melhorar a eficiência do Estado (esta que lhe é princípio constitucional) e os serviços públicos. Recentemente, porém, o governador eleito de Minas Gerais, Romeu Zema, deu declarações que oferecem pistas ao cidadão mineiro de que, mesmo no curto prazo, a gestão do autodenominado “Partido Novo” (nesta coluna, “PN”, visto que nomeá-lo “Novo”, um adjetivo depreciativo aos partidos tradicionais, vai contra os princípios do jornalismo e, ainda mais, àquele situado no campo das esquerdas) pode se mostrar exemplarmente rejeitada.
“Estado está mais para caridade que para empresa”; “Se o mercado precificar bem (a Cemig), por que esperar (para privatizar)?”; “É necessário rever direito adquirido dentro da realidade da sociedade (relativo à estabilidade do servidor público)”. As considerações sobre o perigo da “gestão CEO” sucedem-se nesta ordem.
Já alerta o economista e estrategista político Carlos Matus, consultor de gestões públicas latino-americanas de sucesso nos últimos 20 anos, à direita e à esquerda, que o administrador do Estado deve estar atento ao que chama de “cintos de gestão”, que ele ora aperta ora afrouxa, conforme as necessidades de sua administração. Para ser aprovado, ele precisa estar bem em ao menos dois deles: econômico, social, político. O primeiro, sim, diz respeito às contas públicas, à eficácia econômica do Estado e ao seu papel como intermediador de contratos privados (o que inclui eventuais privatizações e concessões). O segundo e o terceiro, porém, impõem limites àquele primeiro ponto de vista, assim como ele modera estes últimos. O administrador deve dar retorno à sua população quando o critério de avaliação são as oportunidades de trabalho, estudo, atendimento em saúde, tudo que lhe oferece qualidade de vida. Assim como, igualmente, deve conciliar esses dois campos com a plutocracia política, de modo a ter respaldo com as classes que lhe garantem, efetivamente, o poder de Governo: parlamentares, Ministério Público, Justiça, Forças Armadas.
Exemplos não faltam de gestões que malograram por conciliarem mal os três campos, permitindo escapar-lhes a autoridade pela falta de legitimidade. Embora derrubados por golpes (um militar, outro, parlamentar), os ex-presidentes João Goulart (PTB) e Dilma Rousseff (PT) caíram, em 1964 pelas mãos do Exército e em 2016 pelo Congresso Nacional, não por faltarem com os compromissos ante as necessidades sociais de seu povo, mas por carências nas relações com o poder econômico e a elite política. Michel Temer (MDB), por sua vez, manteve-se no cargo até o fim do mandato porque “municiou de satisfações pouco ortodoxas” a elite política, com dinheiro para deputados e poderes cedidos às Forças Armadas, mas tornou-se um fantasma nos corredores do poder por perder a mão do social e do econômico. O ex-presidente Lula (PT), ao contrário, manteve viável seu primeiro Governo e reelegeu-se em 2006, apesar da crise política do chamado “mensalão” em 2005, por estar bem social e economicamente à frente do Planalto.
Tal como se apresentam, os “novos gestores” como Romeu Zema, que nessa leva pode ser acompanhado pelo presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), buscam tornar a administração eficaz pelo excessivo aperto do cinto econômico, tentando garantir o político e, assim, permitindo-lhes o afrouxo do social. A ideia é garantir lucro às empresas e, desta forma, no médio prazo tentar oferecer ao povo paliativos sociais como “mais empregos”, porém precarizados, “acesso facilitado a planos de saúde”, mas de qualidade e cobertura aquém daqueles usufruídos pela classe média e pela elite. “Criação de 'vale estudo' em escolas e universidades particulares”, para poucos, em detrimento da educação para todos.
O lucro como solução para os problemas de um país é resultado de uma visão simplista dos problemas da gestão pública. No longo prazo, a chance de que tais medidas perpetuem a desigualdade e, como desdobramento, a insatisfação popular, é considerável e pode afetar as relações com o campo político, fazendo desmoronar o tripé colocado por Matus para o sucesso da administração.
O Estado não existe para encher os cofres, assim como suas empresas ligadas a setores estratégicos existem para servir à população e à sua cadeia produtiva, bem como sua prestação de serviços essenciais como saúde, educação e segurança são o pilar para que a sociedade possa dar oportunidades para todos o mais equânimes possíveis. Isto para que os cidadãos possam competir em condições razoáveis dentro da realidade do capitalismo, a priori desconsiderando a possibilidade de outros modelos de organização social e econômica.
Portanto, não é questão de estar mais para “caridade” do que para “empresa”. Não deve estar para nenhum dos dois. Deve, sim, servir ao povo em primeiro lugar. Igualmente, a Cemig, empresa estratégica porque impacta a qualidade de vida das pessoas e o desempenho das empresas, não é “precificável” e não deve estar vinculada às regras do mercado privado. O servidor público, por fim, deve ser fiscalizado na eficácia de sua prestação de serviços, sendo considerável a possibilidade de acompanhamento de seu desempenho por órgãos independentes e especializados, porém sua demissibilidade permite a redução da prestação de serviços em razão de interesses econômicos (imaginem demissões no setor público em razão de finanças ruins, causadas por determinado governador ou prefeito?) ou, pior, coerção do servidor público por razões políticas, sob ameaça de desligamento.
A partir das afirmações de Zema, estas são apenas três desconstruções sobre qual o perigo da “gestão CEO” no Estado brasileiro.
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