Os órfãos da barbárie
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“A dor da gente não sai no jornal”. Esse verso emblemático da canção “Notícia de jornal”, de Luis Reis e Haroldo Barbosa (1960), gravada por Chico Buarque no LP do lendário show com Maria Bethânia em 1975, não perdeu a atualidade. No entanto, há uma pequena mudança: ele não se presta apenas aos atritos amorosos passíveis de ganhar destaque nas páginas impressas. Hoje, banalização e espetáculo são os componentes que norteiam as perdas advindas pela selvageria com que se busca a anulação do outro.
Penso, sobretudo, nos mais frágeis quando se atingem os que lhes protegem. Penso em Aiden, o menino de dois anos cujos pais foram mortos este ano, no massacre de 4 de julho em Highland Park, nos Estados Unidos. A demonstração que nem tudo são flores no país que pretende ser o exemplo maior na democracia está na comoção para se arrecadar dinheiro para os avós que ficaram com a guarda da criança. É evidente que a “emoção monetária”, resultante em mais de 2,5 milhões de dólares, surtiria melhor efeito se fosse canalizada para a raiz do problema: a facilitação do acesso às armas, componente fatal para que neuróticos de toda ordem cunhem sua saída do anonimato.
Do lado de cá, penso em Arthur, filho de Anderson Gomes e Agatha Arnaus, que nasceu com necessidades físicas e precisa de cuidados especiais. Enquanto a justiça lagarteia para resolver o assassinato de Marielle e Anderson, cabe à viúva deste, com o coração em luto, vencer as barreiras cotidianas para dar ao filho as melhores condições de vida. Penso, também, em Luyara Franco, filha de Marielle, que tem que tocar seu barco juvenil sem a presença da mãe cuja existência é um legado, para o que há de mais humano em nós, por sua vocação para dar voz aos invisíveis.
Penso nos dois filhos, com dois e três anos, que Bruno Pereira teve com Beatriz Matos, e na sua filha mais velha nascida do primeiro casamento. Cabe à Beatriz a dura missão de manter viva a memória do pai na cabeça de quem não tem a menor condição de entender a violência de tamanha ausência.
Penso nos quatro filhos de Marcelo Arruda que, de repente, não mais que de repente, teve a luz da vida apagada por um tresloucado. Penso na luta de Pamela Suellen, sua viúva, para dar conta, sem a força do companheiro, dos cuidados com a filha Helena, com seis anos, e do bebê Pedro, que tinha quarenta dias no dia tragédia. Penso, também, na filha (ou filho) do assassino e bolsonarista. Penso, sobretudo, nas tentativas de se arrefecer seu gesto fatal ao empunhar uma arma e tingir de sangue o espaço lúdico para o qual não foi convidado, em virtude das agressões que sofreu por parte de alguns convidados quando estava no chão. Somente num país doente, como o Brasil de hoje, esse tipo de reação poderia ser avalizado e compartilhado no território da morte dos afetos e da empatia também conhecido por internet. A barbárie não manda flores.
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