Os impérios das estepes alimentam os sonhos de Erdogan Khan

O encontro com Putin se aproxima, e ninguém em Moscou acredita mais em qualquer palavra, promessa ou bajulação vindas de Erdogan

Tayyip Erdogan
Tayyip Erdogan (Foto: Umit Bektas/Reuters)


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Por Pepe Escobar, para o Asia Times

Tradução de Patricia Zimbres para o 247

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O mais recente capítulo da interminável tragédia síria pode ser interpretado com a Grécia mal conseguindo bloquear uma "invasão" da Europa por refugiados sírios. A invasão foi usada como ameaça pelo Presidente Erdogan ao mesmo tempo em que ele recusava a mísera "oferta que dá para recusar" da União Europeia de apenas um bilhão de euros.

Bem, é mais complicado do que isso. Esses a quem Erdogan está de fato usando como arma são, em sua maioria, migrantes econômicos - do Afeganistão ao Sahel - e não refugiados sírios. 

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Observadores bem-informados de Genebra sabem que as Máfias interligadas - iraquianas, afegãs, egípcias, tunisianas e marroquinas - vêm operando há bastante tempo no contrabando de qualquer um que se habilite, do Sahel via Turquia, já que a rota grega para o Santo Graal da União Europeia é muito mais segura que o Mediterrâneo Central.

O fato de a União Europeia estar enviando um emissário de última hora para Ancara não irá produzir nenhum fato novo - mesmo que algumas  figuras de Bruxelas, de pura má fé, continuem a carpir que o um milhão de "refugiados" que tentam sair de Idlib poderia dobrar, e que se a Turquia não abrir suas fronteiras com a Síria haverá um "massacre". 

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Essa figuras de Bruxelas que pintam o cenário da "Turquia como vítima" listam três condições para uma possível solução. A primeira é um cessar-fogo - que de fato já existe no acordo de Sochi, que não foi respeitado por Ancara. A segunda é um "processo político" - que, mais uma vez, já existe: o processo Astana envolvendo a Rússia, a Turquia e o Irã. E a terceira é a "ajuda humanitária" - um eufemismo que, na verdade, significa a intervenção da OTAN do mesmo tipo que o "imperialismo humanitário" na Líbia. 

Nas atuais circunstâncias, dois fatos são inescapáveis. Número um: as forças armadas da Grécia, na prática, não têm capacidade para resistir ao uso bélico que Ancara pretende fazer dos supostos "refugiados". 

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Número dois: o tipo de coisa que faz os fanáticos da OTAN se crisparem de horror. Desde o cerco otomano de Viena, essa é a primeira vez em quatro séculos que uma 'invasão muçulmana" da Europa está sendo evitada - por quem mais poderia ser? - pela Rússia.    

Fartos do sultão

Neste último domingo, Ancara lançou mais uma aventura militar ao estilo do Pentágono batizada de Escudo da Primavera. Todas as decisões são centralizadas em um triunvirato: Erdogan, o ministro da defesa Hulusi Akar e o chefe da MIT (a agência de inteligência turca) Hakan Fidan. John Helmer, numa tirada memorável, chamou-os de o Sultão e os Vizires Feios (SUV, em inglês). 

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Behlul Ozkan, da Universidade de Marmara, um respeitado acadêmico kemalista, diz que toda essa tragédia vem sendo encenada desde a década de 1980, voltando ao palco em escala muito maior a partir do início do assim chamado capítulo sírio da Primavera Árabe de 2011. 

Ozkan acusa Erdogan da criação de "tropas de conquista a partir de cinco improváveis grupos fundamentalistas", "dando aos grupos armados os nomes de sultões otomanos", e afirmando que eles são uma espécie de exército da salvação nacional. Mas desta vez, argumenta Ozkan, os resultados foram muito piores - de milhões de refugiados à terrível destruição da Síria, e ao "surgimento de estruturas políticas e militares que afetam nossa segurança nacional de forma perigosa".  

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Dizer que o Estado Maior Russo está absolutamente farto das trapaças do SUV é o eufemismo máximo. Esse é o pano de fundo do encontro a ser realizado nesta quinta-feira (5) em Moscou entre Putin e Erdogan. Metodicamente, os russos vêm obstruindo as operações turcas a um nível insustentável - voltando a dar cobertura aérea ao Exército Árabe Sírio e empregando contramedidas eletrônicas para destruir a totalidade dos drones turcos.

Fontes diplomáticas russas confirmam que ninguém em Moscou acredita mais em qualquer palavra, promessa ou bajulação vindas de Erdogan. É inútil, portanto, pedir que ele respeite o  acordo de Sochi. Imaginem uma reunião ao estilo de Sun Tzu, com o lado russo demonstrando o mais perfeito auto-controle e, ao mesmo tempo, examinando minuciosamente Erdogan para determinar o quanto ele se dispõe a sofrer antes de desistir de sua aventura em Idlib.

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Esses proto-mongóis pragmáticos 

Que fantasmas do passado se revolvem no inconsciente de Erdogan? Que a história seja nosso guia - e vamos dar uma volta pelos impérios das estepes.  

No século V, o povo Juan Juan, tão proto-mongol quanto seus primos, os hunos brancos (que habitavam o atual Afeganistão), foram os primeiros a dar a seus príncipes o título de khan – que mais tarde foi usado não apenas pelos mongóis mas também pelos turcos. 

Um vasto espectro linguístico eurasiano e turco-mongol - estudado em detalhe por especialistas franceses, como o craque J.P. Roux - evoluiu por meio de migrações de conquista, estados imperiais mais ou menos efêmeros e a agregação de diversos grupos étnicos em torno de dinastias rivais turcas ou mongólicas. É possível falar de um espaço eurasiano turco, se estendendo da Ásia Central ao Mediterrâneo, que durou nada menos que um milênio e meio, mas, o que é de importância fundamental, apenas novecentos anos na Ásia Menor (a atual Anatólia).  

Essas sociedades eram altamente hierárquicas e militarizadas, instáveis mas ainda assim capazes, dadas as condições corretas, como o surgimento de uma personalidade carismática, de se engajar em um forte projeto coletivo de construção de estruturas políticas. A mentalidade carismática de Erdogan Khan, portanto, não é muito diferente do que aconteceu séculos atrás. 

Essa primeira forma de tradição sociocultural surgiu mesmo antes da conversão ao islamismo - que ocorreu depois da batalha de Talas, em 751, ganha pelos árabes contra os chineses. Mas foi principalmente a partir dos séculos X e XI que essa forma se cristalizou na Ásia Central.  

Ao contrário da Grécia Egeica, da Índia e da China Han, nunca existiu um foco central em termos de um espaço cultural ou de uma identidade suprema que organizasse esse processo. Hoje, na Turquia, esse papel é desempenhado pela Anatólia - mas esse é um fenômeno do século XX.

O que a história mostrou foi um eixo eurasiano leste-oeste cruzando as estepes da Ásia Central à Anatólia, pelo qual tribos nômades, turcas e turcomenas, e posteriormente os turcos otomanos, migraram e avançaram como conquistadores entre os séculos VII e XVII: todo um milênio de construção de uma constelação de sultanatos, emirados e impérios. Não é de admirar que o presidente turco se veja como Erdogan Khan ou Sultão Erdogan. 

"Idlib é minha"

Há portanto um elo entre as tribos turcófonas da Ásia Central dos séculos V e VI e a atual nação turca. Do século VI ao XI elas se configuravam como uma confederação de grandes tribos. Então, rumando para o sudoeste, elas fundaram estados. Fontes chinesas documentam os primeiros turkut (impérios turcos) como os turcos orientais na Mongólia e os turcos ocidentais no Turquestão. 

Essas tribos foram seguidas por impérios das estepes mais ou menos estáveis, como os uigures, no século VIII (que, por sinal, originalmente eram budistas). É interessante que esse passado original dos turcos da Ásia Central anterior ao Islã tenha, até certo ponto, sido elevado a um status mítico pelos kemalistas.

Esse universo era sempre enriquecido por elementos externos - tais como o Islã árabe-persa com suas instituições herdadas dos sassânidas, e também o Império Bizantino, cujos elementos estruturais foram adaptados pelos otomanos. O fim do Império Otomano e múltiplas outras convulsões (a guerra dos Bálcãs, a Primeira Guerra Mundial, a guerra Greco-turca) acabaram por levar a um estado-nação cujo santuário é a Ásia Menor (ou Anatólia) e a Trácia oriental, que configuram um território exclusivamente turco, que rejeita a presença de qualquer minoria que seja não-sunita e não-turcófona. 

Evidentemente, isso não é o bastante para Erdogan Khan. 

Até mesmo a província de Hatay, que se juntou à Turquia em 1939, não é o bastante. Berço da Antióquia e da Alexandreta históricas, Hatay foi então rebatizada como Antáquia e Iskederun.

Nos termos do Tratado de Lausanne, Hatay foi incluída no mandato francês da Síria e do Líbano. A versão turca é que Hatay declarou sua independência em 1938 - quando Ataturco ainda vivia - e então decidiu se juntar à Turquia. A versão síria é que Hatay foi comprada por meio de um referendo fraudado, por ordem da França, a fim de contornar o Tratado de Lausanne.

Erdogan Khan proclamou: "Idlib é minha". A Síria e a Rússia respondem: "Não, não é". Bons tempos aqueles em que os impérios turcófonos das estepes podiam simplesmente avançar e capturar sua presa.

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