Os grandes produtores de soja não soltam seus privilégios, não cedem nada e vão ao lockout político
Há 90 dias no governo, Alberto Fernández encontra-se diante do desafio de tirar do sufoco uma Argentina à beira do risco de default
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Aos 90 dias de governo, Alberto Fernandez encontra-se diante do desafio de tirar do sufoco uma Argentina à beira do risco de default, enfrentando uma dívida externa deixada por Macri, impagável a curto prazo; urgem medidas para recuperar a economia e redistribuir fundos dos setores mais concentrados aos golpeados nestes últimos quatro anos de pura execução entreguista do Cambiemos-PRO."
A questão agrária a ser encarada é fundamental para a redistribuição de renda, mas as medidas anunciadas sequer se referem a uma reforma agrária e já criam a reação histérica dos oligarcas instigada pelo Clarín e La Nación. Trata-se simplesmente de uma recuperação de recursos para o Estado, através do pagamento dos direitos de exportação de produtos e serviços (retenções), e distribuição de forma mais justa entre os grandes (que devem pagar mais) e os médios e pequenos proprietários.
O aumento das retenções é apenas de 3% aos grandes produtores que exportam mais de 1.000 toneladas de soja ao ano. A alíquota passou de 30 a 33%. Trata-se de um valor anual irrisório para poderosos afortunados, compreendendo apenas menos de 10% de unidades do país. Um 7% dos produtores e empresas possuem entre 1.500 a 10 mil hectares, um 37% do total (não somente soja) da produção agrícola, que compreendem umas 16 mil pessoas físicas ou jurídicas, moinhos e empresas de azeite. De uma população de 46 milhões de habitantes, menos de 20 mil cidadãos ou pessoas jurídicas produzem quase 74% do que se semeia e colhe. Os que possuem mais de 10 mil hectares são uns 2500 produtores (1%) que recolhem uns 36%. (Fonte: Censo Nacional Agropecuário 2018).
O Ministro da Agricultura, Pecuária e Pesca, Luis Basterra disse: “Tratamos de que determinados segmentos de produtores, que no têm as mesmas capacidades, sofram um menor impacto com as retenções. A arrecadação com o aumento de 3% de incremento se distribuirá entre as economias regionais que com este modelo recuperam cerca de 200 milhões de dólares”. O objetivo é com a arrecadação compensar a diminuição das retenções em outros cultivos (trigo, milho, orzo, etc... que compõem o mercado interno e incidem no preço dos alimentos ou das forragens) e incentivar as economias regionais (amendoim, feijão, etc...); a redução das alíquotas para o girassol (12 a 7%), o milho (9 a 4%), o trigo (9 a 7%). Os produtores médios de 501 a 1000 toneladas pagarão o mesmo que antes, ou seja, 30%. Os produtores de soja de até 500 toneladas, que até agora pagavam 30% pagarão menos. Somente 26% dos produtores terão o aumento de 3%. Os outros 74% de produtores (trigo, milho, carne, girassol) terão uma baixa. A diminuição das alíquotas para os produtores de soja de menos de 1.000 toneladas segue a tabela: até 100 toneladas a retenção será de 21%; entre 100 e 200 toneladas, de 24%; entre 201 e 300 toneladas, 27%; entre 301 e 400 toneladas, 28%; entre 401 e 500 toneladas, 29%; e entre 501 e 1.000 toneladas, mantém-se 30%. Essa reestruturação na arrecadação, além de estimular a agricultura familiar, deve possibilitar ao Estado pagar 3 novos bônus aos aposentados e às famílias beneficiárias da AUH (Benefício Universal por Filho).Mas bastou que o governo de Alberto Fernández anunciara essas medidas, após reunir-se com representantes da chamada “Mesa de Enlace” para que um setor, a dos ruralistas mais concentrados, passasse a declarar a suspensão na comercialização, ou seja, um lockout (boicote) patronal de 4 dias a partir de hoje, que não corresponde à denominação de greve, pois não é dos trabalhadores. É claramente um lockout político que sequer é apoiado por todas as organizações rurais que compõem a “Mesa de Enlace”. Esta foi composta em 2008 pela Sociedade Rural, Coninagro e Federação Agrária. O chamado ao lockout é da CRA (Confederações Rurais Argentinas, organização patronal de ruralistas), mas conta com a oposição de outros membros da Federação Rural como seu ex-presidente Eduardo Bussi. Pablo Moyano, presidente do Sindicato dos Caminhoneiros já advertiu que não permitirão que o lockout da patronal rural corte as estradas.
A tentativa desestabilizadora dos promotores do lockout é reproduzir um movimento patronal-agrário semelhante ao ocorrido em 2008. Naquele momento, ao início do governo de Cristina Kirchner o ministro da economia , Martin Lousteau (atualmente de Cambiemos e opositor) tentou passar a controversa resolução 125 com retenções móveis até 44% que atingiam todos os segmentos agrícolas. O lockout patronal, durou 129 dias. Renunciado Lousteau, a presidenta tratou de levar nova resolução com alterações, abrindo concessões aos pequenos agricultores. A resolução 125/8 foi rechaçada com o voto decisivo de Júlio Cobos, vice-presidente da República e presidente do Senado, num claro sinal de traição política ao governo da Frente para a Vitória do qual era membro. O que se discute porém, nas filas do governo atual é que o contexto econômico não é o mesmo de 2008. A medida atual é de segmentação das retenções, que favorece a média e pequena propriedade rural e empresarial. Portanto, este lockout não conta com a mesma sustentação monolítica que contou no passado com a adesão até de chacareiros, com um fim anti-governo kirchnerista. A medida governamental atual deverá contar com a opinião pública e o apoio social da ampla aliança que compôs a Frente de Todos apenas eleita.
Porém, isso não exclui a atenção necessária do governo para soluções preventivas e ofensivas mais contundentes . Alberto Fernández alerta para esse lockout “de dirigentes disfarçados de chacareiros!”. Pela rádio, o jornalista Roberto Navarro conscientiza os ouvintes: “É importante que você entenda que os privilégios deles são as suas penúrias. O que eles estão pedindo (os ruralistas) está relacionado com a sua vida quotidiana. Quanto maior é o lucro dos donos da soja macristas, será mais difícil você se alimentar." Outros como Pedro Peretti, ex-diretor da Federação Agrária propõe na Página12 um maior controle do Estado sobre a venda direta do produtor ao exportador, sobre o comércio exterior e sobre os portos. Ele chama a atenção de que as exportadoras não pagam impostos (Cargill, Dreyfus, Vicentin); destaca a boa atuação de Axel Kicillof, atual governador de Buenos Aires, de criar a Lei Impositiva para “cobrar até 75% mais de imposto imobiliário às grandes propriedades rurais de mais de 2 mil hectares (que compreendem somente 211 proprietários) e outorgar exceções aos chacareiros de menos de 100 hectares destinadas a gado e produção leiteira”. Leia.
Lockout após poucos dias das revelações da conexão da mídia hegemônica com o lawfare
O lockout das corporações rurais contra o governo de Alberto/Cristina Fernández não indica ser uma simples reclamação econômica, é uma boicote anti-patriótico. Trata-se de uma reação política das piores forças macristas, da direita, frente às evidências que desmontam publicamente os instrumentos do lawfare que se impuseram desde 2016 na Argentina, da mídia ao Judiciário. O jornalista Carlos Pagni, do jornal La Nación, revelou as pressões exercidas por essa mídia hegemônica, a juízes federais para que tomassem medidas contra políticos do governo anterior, com a ameaça de publicar fotos dos mesmos na manchete, como sendo responsáveis pela impunidade do kirchnerismo. O jornalista revela que La Nación e os juízes do Tribunal Comodoro Py foram cúmplices de trocar a capa do jornal com a notícia da prisão de Ricardo Jaime, a qual iniciou um sequência de perseguições, de uso “compulsivo, indiscriminado e violador” de prisões preventivas de outros membros do governo anterior, como Júlio de Vido (deputado, recentemente libertado), Amado Boudou (ex-vice-presidente), Luis D’Elia e outros. “A opinião pública e a imprensa fizeram com que os juízes atuassem contrafobicamente com as prisões preventivas que, agora, em muitos casos vemos como aberrantes”, disse Pagni. A vice-presidenta Cristina Kirchner contestou as revelações do jornalista qualificando-as como uma meia-verdade, destacando que o principal motivo dessa manobra midiática do La Nación foi tirar de cena a notícia que estava constituir escândalo internacional sobre os paraísos fiscais dos Panamá Papers e onde Maurício Macri estava diretamente envolvido. “Foi por isso que o juiz Ercolini, ordenou no dia anterior a detenção do ex-funcionário Ricardo Jaime.” O objetivo era proteger midiaticamente o Macri.
Este lockout dos oligarcas rurais, será parte da mesma estratégia midiática para encobrir as medidas urgentes de impacto social deste novo governo de Alberto a favor dos despossuídos, e as inúmeras descobertas de corrupção e inconstitucionalidade de juízes, de abandono de obras públicas no Senado (denunciadas por Cristina Kirchner contra a ex-vice presidenta Gabriela Michetti que licitou 180 milhões de pesos por obras inconclusas), nos hospitais, nos arquivos da AMIA e nas obras públicas, e da causa sobre o Correio Argentino contra Maurício Macri.
Mas, hoje é 9 de março e as mulheres argentinas protagonistas do exemplar movimento “Nem uma a menos”, se ausentam do trabalho e marcham da Praça de Maio ao Congresso para exigir entre todos os direitos de igualdade de gênero, a eliminação da brecha salarial de 30%, o fim do feminicídio (1 a cada 30 horas), a aprovação da Lei do Aborto Legal, Seguro e Gratuito, enviada por Alberto/Cristina à votação no Parlamento, respondendo a anos de lutas pelos direitos das mulheres, com seus lenços verdes, brancos, azuis, vermelhos e de todas as cores. Enfim, as mulheres, mesmo sem declarar, põem em questão as desigualdades e violências inerentes ao monstro capitalista. Essa é a Argentina de hoje, com tantos desafios e dores de cabeça, que recomeça a contar com um Estado popular disposto a organizar sua estrutura sanitária para que o “terror instigado do coronavírus” não inocule o ódio, o temor, o racismo, e nem destrua a consciência política e a solidariedade entre os povos.
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