Os Estados Unidos da Paralisia

Quanto mais o Estado corporativo corrói os laços sociais que nos unem à sociedade, mais inevitável se torna um Estado autoritário e um cristianismo fascista

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Originalmente publicado no The Chris Hedges Report em 23/4/23. Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247

A paralisia política está extinguindo o que resta da nossa democracia anêmica.

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Esta é a paralisia de fazer nada enquanto os oligarcas dominantes, que aumentaram a sua riqueza em quase um terço desde que a pandemia começou e de cerca de 90% na década passada, orquestram boicotes virtuais de impostos; enquanto milhões de estadunidenses vão à falência para pagar contas médicas, hipotecas, dívidas de cartão de crédito, dívidas estudantis, empréstimos de carros e altas contas de serviços públicos exigidas por um sistema que privatizou quase todos os aspectos das nossas vidas.

É a paralisia de fazer nada sobre aumentar o salário mínimo, apesar das devastações da inflação, de 600.000 estadunidenses sem moradias e 33,8 milhões de pessoas vivendo em lares com insegurança alimentícia — incluindo 9,3 milhões de crianças.

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É a paralisia de ignorar a crise climática, a maior ameaça existencial que enfrentamos, para expandir a extração de combustíveis fósseis.

É a paralisia de despejar centenas de bilhões de dólares na economia de guerra permanente, ao invés de reparar as estradas, ferrovias, pontes, escolas, redes elétricas e suprimento de água que estão em colapso na nação.

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É a paralisia de se recusar a instituir cuidados universais de saúde e regular as indústrias de seguro e farmacêuticas com fins lucrativos, para consertar o pior sistema de cuidados de saúde de qualquer nação altamente industrializada — na qual a expectativa de vida está diminuindo e cada vez mais estadunidenses morrem de causas evitáveis que em nações comparáveis. Mais de 80% das mortes maternas nos EUA são evitáveis, segundo os Centros de Controle e Prevenção de Doenças.

É a paralisia de não estar disposto a conter a violência policial, de desmontar o maior sistema de prisões do mundo, de acabar com a vigilância governamental do público feita por atacado e de reformar um sistema de justiça disfuncional no qual quase todos, a não ser que eles possam pagar advogados caríssimos, são coagidos a aceitarem onerosos acordos judiciais.

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É a paralisia de ficar parado passivamente enquanto o público, armado com arsenais de armas de combate, massacram uns aos outros por cruzarem pelo seu quintal, por entrarem na sua entrada de garagem, por tocarem na sua campainha, por irritá-los no trabalho ou na escola, ou estão tão alienados e amargurados por terem sido deixados para trás, que fuzilam grupos de pessoas inocentes em atos de autoimolação assassina.

As democracias não são assassinadas por bufões reacionários como Donald Trump — que era rotineiramente processado por deixar de pagar trabalhadores e empreiteiros e cuja persona televisiva fictícia era vendida a um eleitorado crédulo — ou por políticos superficiais como Joe Biden — cuja carreira política tem sido devotada a servir doadores corporativos. Estes políticos provêm um falso conforto de individualizar as nossas crises, como se remover esta figura pública ou censurar aquele grupo nos salvará.

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As democracias são assassinadas quando um pequeno conluio — no nosso caso, sendo corporativo — assume o controle da economia, da cultura e do sistema político e os distorce para servir exclusivamente aos seus próprios interesses. As instituições que deveriam prover compensações ao público se tornam paródias delas próprias, se atrofiam e morrem. Há alguma outra maneira para se explicar corpos legislativos que só se unem para aprovar programas de austeridade, cortes nos impostos para a classe bilionária, orçamentos inchados para a polícia e os militares e para reduzir gastos sociais? Como se pode explicar tribunais que despojam trabalhadores e cidadãos dos seus direitos mais básicos? Como explicar um sistema de educação pública no qual se ensina aos pobres, na melhor das hipóteses, uma alfabetização numérica básica e os ricos mandam os seus filhos a escolas e universidades privadas — com dotações nos bilhões de dólares?

As democracias são assassinadas com promessas falsas e banalidades ocas. Como candidato, Biden nos contou que aumentaria o salário mínimo para US$ 15 e daria cheques de estímulo de US$ 2.000. Ele nos disse que o seu Plano Americano de Empregos (American Jobs Plan) criaria “milhões de bons empregos”. Ele nos contou que fortaleceria o poder de barganha coletiva dos trabalhadores e asseguraria a educação pré-jardim de infância universal. Ele prometeu dar uma opção de cuidados de saúde financiada publicamente. Ele prometeu não permitir perfurações de petróleo em terras federais e promover uma “revolução verde e a justiça ambiental”. Nada disso ocorreu.

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Porém, a esta altura, a maioria das pessoas entendeu o jogo. Por que não votar em Trump e as suas promessas grandiosas e movidas por fantasias? Será que estas são menos reais do que aquelas vendidas por Biden e os Democratas? Por que prestar homenagens a um sistema político que se trata de traição? Por que não se separar do mundo racional que só trouxe miséria? Por que manter fidelidade a velhas verdades que se tornaram banalidades hipócritas? Por que não explodir a coisa toda?

Como enfatiza a pesquisa dos professores Martin Gilens e Benjamin I. Page, o nosso sistema político tornou o consentimento dos governados em uma piada cruel. “O ponto central que emerge da nossa pesquisa é que as elites econômicas e grupos organizados que representam os interesses das empresas têm impactos independentes substanciais na política do governo estadunidense, enquanto os interesses das massas e dos cidadãos médios têm pouca ou nenhuma influência independente”, eles escrevem.

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No seu livro “Sobre o Suicídio”, o sociólogo francês Émile Durkheim chamou o nosso estado de desesperança e desespero, de anomia, de “ausência de regras”. Ausência de regras significa que as regras que governam a sociedade e criam um sentido de solidariedade orgânica não funcionam mais. Isto significa que as regras que nos ensinaram — trabalho duro e honestidade nos garantirão um lugar na sociedade; vivemos numa meritocracia; somos livres; as nossas opiniões e os nossos votos importam; o nosso governo protege os nossos interesses — são uma mentira. Obviamente, se você é pobre, ou uma pessoa de cor, estas regras sempre foram um mito; mas outrora, a maioria do público estadunidense conseguiu encontrar um lugar seguro na sociedade, que é o baluarte de qualquer democracia — como numerosos teóricos políticos notam, remontando a Aristóteles.

Dezenas de milhões de estadunidenses, lançados à deriva pela desindustrialização, compreendem que as suas vidas não melhorarão, nem tampouco as vidas dos seus filhos. Como Durkheim escreve, a sociedade não é mais “suficientemente presente” para eles. Aqueles que são deixados à deriva, ele escreve, podem participar da sociedade apenas através da tristeza.

O único caminho remanescente para você se afirmar, quando todos os outros caminhos estão fechados, é destruir. A destruição, alimentada por uma grotesca hiper-masculinidade, dá um ímpeto e um prazer, juntamente com sentimentos de onipotência — que são sexualizados e sádicos. Isso tem uma atração mórbida. Esta lascívia de destruir, que Sigmund Freud chamou de instinto de morte, visa todas as formas de vida, incluindo a nossa própria.

Estas patologias de morte, doenças e desespero, são manifestas nas pragas que estão varrendo todo o país — vício de opioides, obesidade mórbida, jogatinas, suicídio, sadismo sexual, grupos de ódio e fuzilamentos de massa. O meu livro “America: The Farewell Tour” é uma exploração dos demônios que controlam a psique estadunidense.

Uma rede de conexões sociais e políticas — amizades e laços de família, cívicos e rituais religiosos, trabalho significativo que transmitem um sentido de lugar, dignidade e esperança no futuro — nos permite engajar-nos num projeto maior do que o ‘eu’. Estas conexões provêm proteção psicológica da iminente mortalidade e ao trauma da rejeição, do isolamento e da solidão. Somos animais sociais. Precisamos uns dos outros. Retire estas conexões e as sociedades descendem para o fratricídio.

O capitalismo é antitético à criação e sustentação de conexões sociais. Os seus atributos centrais — relacionamentos que são transacionais e temporários, priorizando a autopromoção através da manipulação e exploração de outros e a insaciável lascívia pelo lucro — elimina o espaço democrático. A obliteração de todas as restrições ao capitalismo — de sindicatos organizados à supervisão e regulamentação governamental — nos deixou à mercê das forças predatórias que, por natureza, exploram seres humanos e o mundo natural até a exaustão ou o colapso.

Trump, desprovido de empatia e incapaz de sentir remorso, é a personificação da nossa sociedade doentia. Ele é o que aqueles que foram deixados à deriva são ensinados pela cultura corporativa que eles deveriam aspirar a ser. Ele expressa, frequentemente com vulgaridade, a incipiente raiva daqueles que foram deixados para trás e é uma propaganda andante do culto do ‘eu’. Trump não é um produto do roubo dos e-mails de Podesta, dos vazamentos do Comitê Nacional Democrata, ou de James Comey. Ele não é um produto de Vladimir Putin ou dos robôs russos. Assim como os aspirantes a dublês Ron DeSantis, Tom Cotton e Margorie Tylor Greene, ele é um produto da anomia e da decadência social.

Os indivíduos estão “intimamente envolvidos demais na vida da sociedade para que esta fique doente sem que eles sejam afetados”, escreve Durkheim. “O seu sofrimento inevitavelmente torna-se o deles”.

Estes charlatães e demagogos que rejeitam as restrições costumeiras do decoro político e cívico, ridicularizam as elites “polidas” que nos venderam. Eles não oferecem soluções viáveis para as crises que ocupam o país. Eles dinamitam a velha ordem social, que já está podre, e clamam por vingança contra inimigos reais e fantasmas, como se estes atos ressuscitarão magicamente uma era de ouro mítica.

“Desde que a burguesia alegou ser a guardiã das tradições ocidentais e confundiu todas as questões morais ao alardear publicamente as virtudes que ela não só não possuía na vida privada e nos negócios, mas efetivamente desacatava, pareceria revolucionário admitir a crueldade, o desprezo pelos valores humanos e a amoralidade em geral, porque isto pelo menos destruía a duplicidade sobre a qual a sociedade existente parecia se basear”, escreveu Hannah Arendt no seu livro “As Origens do Totalitarismo” sobre aqueles que adotaram a retórica cheia de ódio do fascismo na República de Weimar. “Que tentação era ostentar atitudes extremas no crepúsculo dos padrões duplos de moralidade, de vestir publicamente a máscara da crueldade, se todos eram patentemente inconsiderados e faziam de conta de serem gentis, alardear a perversidade num mundo que não era perverso, mas mesquinho!”

A nossa sociedade está profundamente doente. Devemos curar estas enfermidades sociais. Devemos mitigar esta anomia. Devemos restaurar as conexões sociais rompidas e integrar os despossuídos de volta à sociedade. Se estas conexões sociais permanecerem rompidas, isto garantirá um neofascismo assustador. Há forças muito escuras rondando em volta de nós. Mais cedo do que esperamos, elas podem nos ter sob o seu controle.

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