Os Estados desintegrados da América
Supondo-se que os EUA consigam evitar uma total desintegração em "territórios separatistas", Martyanov insiste em que a única maneira que irá permitir que as elites norte-americanas mantenham algum grau de controle "sobre gerações cada vez mais identitárias ou dessensibilizadas por drogas" será por meio da tirania
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Por Pepe Escobar, para o The Saker
Tradução de Patricia Zimbres, para o 247
Andrei Martyanov é incomparável. Um baby boomer de terceira onda, nascido em inícios dos anos 1960 em Baku, no Cáucaso, então parte da antiga URSS, ele pode ser considerado o principal analista militar da esfera russa. Ele vive e trabalha nos Estados Unidos, escreve em inglês para um público global e sempre arrasa em seu blog Reminiscence of the Future (Reminiscência do Futuro).
Tive o prazer de escrever a crítica dos dois livros anteriores de Martyanov. Em Losing Military Supremacy: The Myopia of American Strategic Planning (A Perda da Supremacia Militar: a Miopia do Planejamento Estratégico Americano) ele, há quase três anos, provou conclusivamente, entre outras coisas, que o hiato entre os mísseis dos Estados Unidos e da Rússia era um "abismo tecnológico", e que o Khinzal foi um "total divisor de águas em termos geopolíticos, estratégicos, operacionais, táticos e psicológicos".
Ele mapeou extensivamente "a chegada definitiva de um paradigma totalmente novo" na forma de guerrear e na tecnologia militar. Minha crítica desse livro está incluída em meu e-book publicado pelo Asia Times, Shadow play.
Então veio The (Real) Revolution in Military Affairs (A (Real) Revolução nas Questões Militares), onde Martyanov foi ainda além, explicando de que forma essa "revolução", introduzida no Pentágono pelo falecido Andrew Marshall, também conhecido como Yoda, o real inventor do conceito "pivotar para a Ásia", foi na verdade inventada por teóricos militares soviéticos ainda na década de 1970, com o nome de Revolução Militar-Tecnológica".
Seu novo livro, Disintegration, completa a trilogia. E traz uma ideia surpreendentemente nova.
Aqui, Martyanov, em detalhes meticulosos, analisa de forma temática o declínio imperial - com capítulos sobre Consumo, Geoeconomia, Energia, Derrota na Corrida Armamentista, entre outros, compondo uma acusação devastadora, principalmente aos tóxicos lobbies do Distrito de Colúmbia e à mediocridade política que hoje prevalece em todo o Beltway. O que fica desnudado para o leitor é o complexo interjogo de forças que movem o caos político, ideológico, econômico, cultural e militar norte-americano.
O Capítulo 3, sobre Geoeconomia, é um barato total. Martyanov demonstra que a geoeconomia, como campo separado da guerra e da geopolítica, nada mais é que uma tramóia criada para confundir: o velho conflito de sempre "embrulhado na mortalha fina do intelectualismo raso das ciências políticas" - a matéria da qual são feitos os sonhos de Huntington, Fukuyama e Brzezinski.
Essa tese é desenvolvida a fundo no Capítulo 6 sobre as Elites Ocidentais - que traz uma mordaz desmoralização do "mito de Henry Kissinger": "apenas mais um excepcionalista americano, equivocadamente classificado como um 'realista', membro de uma gangue que "não foi condicionada a pensar de forma multidimensional". Afinal, eles ainda não foram capazes de entender a base lógica e as implicações do discurso de Putin em Munique, em 2007, que declarava que o momento unipolar - um eufemismo grosseiro para Hegemonia - estava morto e enterrado.
Como não ganhar guerras
Uma das principais conclusões de Martyanov é que, tendo perdido a corrida armamentista e rigorosamente todas as guerras provocadas por eles mesmos no século XXI – como fartamente documentado - os Estados Unidos inventaram a geoeconomia que é, essencialmente, um "eufemismo para as incessantes sanções e tentativas de sabotar as economias de quaisquer nações capazes de competir com os Estados Unidos" (ver, por exemplo, a saga do Nord Stream 2 atualmente em curso). Essa é a única ferramenta (os itálicos são dele) que vem sendo usada pelos Estados Unidos para estancar seu próprio declínio.
Em um capítulo sobre Energia, Martyanov demonstra que a aventura norte-americana de extração de petróleo de xisto é financeiramente inviável, e que a subida das exportações de petróleo deveu-se, essencialmente, aos Estados Unidos "coletarem" cotas liberadas principalmente em razão de cortes anteriores feitos pela Rússia e pela Arábia Saudita no contexto da OPEC +, em uma tentativa de equilibrar o mercado mundial de petróleo".
No Capítulo 7, Perdendo a Corrida Armamentista, Martyanov desenvolve seu principal tema, no qual ele é o incontestável superstar: os Estados Unidos não conseguem ganhar guerras. Infligir a Guerra Híbrida é uma outra história totalmente diferente, que significa "criar enorme sofrimento por todo mundo, seja fazendo com que pessoas morram de fome ou matando-as de forma direta".
Um exemplo evidente foram as sanções econômicas de "máxima pressão" impostas ao Irã. Mas a questão é que esses instrumentos - o assassinato do General Soleimani inclusive - que são parte do arsenal da "disseminação da democracia", nada têm a ver com "geoeconomia", embora "tenham tudo a ver com os grosseiros jogos de poder que visam a atingir o principal objetivo clausewitziano da guerra - 'compelir o inimigo a fazer nossa vontade' ". E, "para a América, a maior parte do mundo é o inimigo".
Martyanov também se sente compelido a atualizar aquilo em que ele há anos trata melhor que ninguém: o fato de que a chegada dos mísseis hipersônicos "mudou a arte da guerra para sempre". O Khinzal, colocado em uso já em 2017, tem um alcance de 2.000 quilômetros e "não é interceptável por qualquer sistema anti-mísseis norte-americano atualmente existente". O Zircon 3M22 "altera completamente o cálculo da guerra tanto naval quanto terrestre". O atraso dos Estados Unidos em relação à Rússia em termos de sistemas de defesa aérea é quantitativa e qualitativamente maciço".
Disintegration, além disso, se qualifica como uma crítica acerba ao fenômeno eminentemente pós-modernista - no qual estrela uma fragmentação cultural infinita e a recusa a aceitar que "a verdade é passível de ser conhecida e consensualmente aceita" - responsável pela atual reengenharia social dos Estados Unidos, somada à uma oligarquia que "realisticamente, não é muito brilhante, apesar de ser rica".
E então há a russofobia desenfreada. Martyanov soa o alerta vermelho definitivo: "É claro que os Estados Unidos ainda são capazes de começar uma guerra com a Rússia, mas se o fizerem, isso significará uma única coisa - os Estados Unidos deixarão de existir, assim como a maior parte da civilização humana. O terrível é que há pessoas nos Estados Unidos para quem até mesmo esse preço vale a pena ser pago".
Ao final das contas, um intelecto friamente científico tem que se basear em uma realpolitik sólida: supondo-se que os Estados Unidos consigam evitar uma total desintegração em "territórios separatistas", Martyanov insiste em que a única maneira que irá permitir que as elites norte-americanas mantenham algum grau de controle "sobre gerações cada vez mais identitárias ou dessensibilizadas por drogas" será por meio da tirania. Aliás, da tecno-tirania. E esse parece ser o bravo, novo e disfuncional paradigma que temos pela frente.
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