Por Roberto Amaral
É majoritária entre os analistas da cena republicana a convicção de que caminhamos para a mais importante das eleições presidenciais desde o fim da última ditadura. Serão, porém, eleições graves, e disputadas em clima de exacerbado antagonismo, ensejador da violência política, terreno pelo qual a extrema-direita brasileira (como suas congêneres mundo afora) tem demonstrado predileção. Mais que indicar o próximo inquilino do palácio do planalto, estaremos, em outubro próximo, definindo que país pretendemos construir. O próprio embate, reduzido a duas candidaturas antípodas, a opostas visões de mundo, de país e de sociedade, dá ao pleito o seu caráter plebiscitário, sem meio termo, pois estaremos decidindo entre a promessa de futuro e a persistência de um passado que enodoa a história.
Poderemos estar ditando o fim de um ciclo escatológico.
O futuro presidente, e a hipótese com a qual trabalho é a da eleição do ex-presidente Lula, defrontar-se-á com uma sociedade cindida e polarizada como jamais esteve, opondo os interesses irreconciliáveis da casa-grande contra as grandes massas dos deserdados do capitalismo. Aos exorbitantes lucros do sistema financeiro corresponde o desemprego e a queda de renda dos trabalhadores. Nada menos de 33 milhões de brasileiros passam fome, quando seu país é um dos três maiores produtores de alimentos do mundo, quando a humanidade produz alimentos como nunca. Nossa burguesia, alienada e alienígena, governa uma das maiores concentrações de renda do planeta. Somos o paraíso de 1% de brasileiros brancos, milionários e bilionários, os herdeiros da casa-grande colonial, do império escravagista e da república do latifúndio e do agrarismo.
Alimento a expectativa de que o candidato Lula e os cardeais do PT já estejam convencidos de que dias mais graves desafiarão a resistência do processo democrático brasileiro, contra o qual investe, despudoradamente, o ainda presidente e seu séquito de áulicos, civis e militares, uns ainda fardados e outros já de pijama, aos quais se junta o atual presidente da Câmara dos Deputados, que, como bem assinalou o deputado Glauber Braga, não tem vergonha de conspirar contra o patrimônio público. Porque se trata da versão atualizada de Eduardo Cunha. O ex-presidente da Câmara, comandante do impeachment contra Dilma Rousseff, e o atual, são irmãos siameses em despudor e truculência a serviço do que há de mais abjeto na política brasileira.
Eduardo Cunha, corrupto de carteirinha, abriu as porteiras para a ascensão do bolsonarismo. Lira, fruto tardio do latifúndio e da pistolagem que por tantos anos presidiram a política alagoana, não conhece limites – morais ou legais – quando se trata de prorrogar o bolsonarismo e investir contra o interesse nacional, como quando opera contra a Eletrobras e a Petrobras. É esse serviçal do atraso, já candidato à reeleição, que presidirá a Câmara dos Deputados no curso da campanha eleitoral e até a posse do novo presidente.
Por consequência, a realização de eleições limpas e seguras e a posse sem traumas do eleito elevam-se à categoria de prioridade para as forças democráticas brasileiras. A eleição de Lula, nesse cenário, será a reafirmação do processo democrático. Não se trata, mais, de um projeto pessoal, ou de um partido, ou de um conjunto de partidos, pois representará a opção de nosso povo pela via democrática e popular, quando em grande parte do mundo dito desenvolvido, como os EUA de Trump e a França de Le Pen, avançam as hordas da direita. A América do Sul de Gabriel Boric, Gustavo Petro e Lula pode ser o outro lado, alvissareiro, da mesma moeda.
Além de comandar sua campanha, como qualquer candidato, Lula haverá de cuidar da questão democrática (e nessa faina deveria ser acompanhado por todos os partidos), quando a preservação do processo eleitoral volta a ser ameaçada, com o foi em 1955. Naquele então, não podendo barrar a candidatura de Juscelino Kubitscheck, os golpistas intentaram impedir sua posse, mobilizando a imprensa conservadora, o próprio presidente da República (o interino deputado Carlos Luz, presidente da Câmara Federal) e setores mais reacionários das forças militares, à frente das quais se perfilavam o marechal Juarez Távora e o brigadeiro Eduardo Gomes. A insurgência deu no contragolpe de 11 de novembro.
No momento, as mesmas forças do atraso, com o mesmo objetivo golpista, comandadas acintosamente pelo atual presidente da República, tentam desestabilizar o processo eleitoral, ao desqualificar o sistema de votação e apuração. Para isso contam com apoio ostensivo do ministro da defesa – que não se dá conta do papel anticonstitucional que desempenha quando procura coagir o TSE, a “força desarmada” na auto-conceituação do tímido ministro Edson Fachin. Contam, ainda, com a presidência da Câmara dos Deputados e a fragilidade do insípido presidente do Senado Federal. E com apoio popular de difícil mensuração.
Não é pouco, convenhamos.
Após as iniciativas dos militares, cobrando o falso direito de supervisionar o processo eleitoral, agora é a Polícia Federal que anuncia a decisão de proceder a uma apuração paralela do pleito. O intuito de ambos é, na eventualidade de episódica divergência de números, instaurar a crise política, construtora do caos que antecede a violência institucional. A encenação nem original é: foi intentada nos EUA por Donald Trump, e fracassou, porque lhe faltou o apoio das estruturas governamentais, de que é exemplo a recusa do vice Mike Pence de tumultuar a sessão do Congresso que deveria referendar o resultado das urnas, a culminância do precário e arcaico sistema eleitoral norte-americano. Mas não lhe faltaram meios de mobilização popular, o que culminou com a invasão do Capitólio.
De tanto anunciado e de tanto ensaiado, como no 7 de setembro de 2020, o golpe dos sonhos de Jair Bolsonaro não mais conta com o fator surpresa, e já alimenta a resistência de setores ponderáveis da sociedade, temerosos do voo cego que os esperaria. Mesmo a grande imprensa, principalmente por intermédio de seus principais articulistas, já denuncia o golpismo, em que pese sua solidariedade à política econômica do presidente, mormente em seu programa de privatizações e no esforço por destruir a Petrobras, o pleito mor do grande capital.
Não se deduza, porém, das aparências, que o projeto golpista foi removido. Há muitos interesses em jogo, na caserna e fora dela, e o que não escasseia é a falta de escrúpulos. Essa gente não tergiversará em açular suas multidões de seguidores e jogá-las irresponsavelmente contra as instituições democráticas, se a alternativa for a queda do poder e a perda das tetas da viúva onde se banqueteiam com toda sorte de benesses, vilegiaturas, sinecuras e privilégios incompatíveis com a índole republicana, como a compra, pelo exército, com recursos públicos, de Botox, Viagra e próteses penianas, para o gozo de suas fileiras.
O cenário, pois, é de uma campanha eleitoral na fronteira da violência política, o trunfo com que conta o bolsonarismo. O antídoto é uma vitória esmagadora da oposição, a única forma de assegurar uma transição tão tranquila quanto possível, abrindo caminho para um quatriênio de normalidade política.
Eleito, Lula terá ainda uma grande jornada à frente.
Os termos de sua eleição determinarão as condições da posse e o caráter de seu governo. Um dos fatores condicionantes do golpe de Estado de 2016 foi a estreita margem de votos que separaram a presidente Dilma Rousseff de seu oponente, e a pequena bancada do PT que chega à Câmara em janeiro de 2015: 70 deputados num coletivo de 513. O futuro presidente terá de governar com um Congresso majoritariamente conservador comandando algo como 80% do orçamento federal. Um Congresso envilecido, controlado pelo Centrão e a cada eleição mais e mais desapartado do caráter de representação popular que o justifica.
As futuras bancadas chegarão cevadas pelo erário e pela intervenção do governo federal na distribuição de recursos aos seus apaniguados, uma choldra que manipulará R$ 16,5 bilhões (o total do orçamento secreto operado pelo atual presidente da Câmara), e outros tantos bilhões derivados dos fundos partidários e eleitorais que alimentam os muitos partidos que dão sustentação ao bolsonarismo.
Nesse Congresso que se instalará em 2023, certamente uma versão ainda mais deplorável do Congresso de nossos dias, o provável governo de Lula, considerando a coalizão partidária que o apoia no pleito, não contará com uma base de apoio sólida, como não contou Dilma. E, como a ex-presidente, terá como certa a má vontade da Faria Lima, do grande capital nacional e internacional, do agronegócio, do capital especulativo, dos rentistas de todos os naipes, e da grande imprensa, representante desses interesses, e que já o hostiliza, como o hostilizou nos idos da infâmia que a História registrará como “Operação Lava Jato”. Infâmia que não teria logrado seus objetivos se não tivesse tido, como teve, como coadjuvantes destacados, os grandes meios de comunicação, que, até agora, não tiveram a dignidade de proceder à autocrítica que cobram de Lula e do PT.
Lula haverá, ainda, de conviver com o bonapartismo do STF e o com o assanhamento dos militares, embriagados como nunca de cargos e benesses, afastados como nunca de seus compromissos constitucionais e ainda convencidos de que o Olimpo lhes deu o poder de curatela sobre o povo e o país.
Além disso tudo, cenário que não foi visto nos idos de seus dois mandatos, Lula conviverá com uma sociedade polarizada, profundamente clivada, e na qual emerge uma extrema-direita de dimensão e extremismo desconhecidos até aqui.
Será preciso, ademais, administrar uma república em crise política e moral, uma federação em frangalhos, um poder público desmoralizado, instituições desacreditadas, reclamando um governo de restauração nacional, e, nesse sentido, o desejado novo governo de Lula será um governo de transição, ao final do qual (e só então) poderemos voltar a aspirar por um novo regime, ainda de centro-esquerda, mas que aponte para a ruptura com a casa-grande. Independentemente do que pensem e pretendam Lula-Alckmin, independentemente do que pretenda o PT e do que nos diga seu programa de campanha, o provável governo Lula será determinado por essas questões objetivas.
Possivelmente, como Gustavo Petro, recém-eleito presidente da Colômbia, Lula será obrigado ao chamamento da conciliação nacional, essa entendida como uma composição com todas as forças democráticas do país, para poder realizar, não o governo desejado, mas aquele ditado pelas circunstâncias, filhas do processo social que chega aos nossos dias aos trancos e barrancos.
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