Os cafetões da guerra

"O círculo social dos neocons que orquestraram duas décadas de fiascos militares no Oriente Médio agora atiçam uma guerra com a Rússia", escreve Chris Hedges

(Foto: Deutsche Presse-Agentur GmbH)


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Por Chris Hedges 

(Publicado originalmente no The Chris Hedges Report, traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247)

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Ano após ano, debate após debate, a mesma conspiração de belicistas especialistas, dos especialistas em política exterior e autoridades governamentais presunçosamente esquivam-se da responsabilidade pelos fiascos militares que eles orquestram. Eles são multiformes, mudando habilmente com os ventos políticos, trocando do Partido Republicano para o Partido Democrata e depois voltando, mutando de combatentes da guerra fria para neocons e para intervencionistas liberais. Sendo pseudointelectuais, eles exalam um esnobismo enjoativo da Ivy League [conservadorismo tradicional nos EUA] enquanto vendem o medo perpétuo, a guerra perpétua e uma visão de mundo racista – na qual as raças inferiores da Terra só entendem a violência.

Eles são os cafetões da guerra, fantoches do Pentágono, um estado dentro do estado, e os empreiteiros da defesa que financiam prodigamente os seus 'think tanks' [centros de estudos] – o Projeto para um Novo Século Americano (Project for the New American Century), o Instituto Empresarial Americano (American Enterprise Institute), a Iniciativa de Política Exterior (Foreign Policy Initiative), o Instituto para o Estudo da Guerra (Institute for the Study of War), o Conselho Atlântico (Atlantic Council) e o Instituto Brookings (Brookings Institute). Assim como algumas cepas mutantes de uma bactéria resistente a antibióticos, eles não podem ser vencidos. Não importa quão errados eles estejam, quão absurdas sejam as suas teorias, quantas vezes eles mintam ou denigrem outras culturas e sociedades como sendo não-civilizadas, ou quantas intervenções militares assassinas não deem certo. Eles são adereços inamovíveis, os mandarins parasitários do poder, que são vomitados nos estertores da morte de qualquer império, incluindo o nosso, saltando de uma catástrofe autodestrutiva para a próxima.

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Eu passei 20 anos como correspondente estrangeiro, reportando sobre o sofrimento, a miséria e a violência assassina que esses cúmplices da guerra projetaram e financiaram. O meu primeiro encontro com eles foi na América Central. Elliot Abrams – condenado por dar um testemunho enganoso ao Congresso dos EUA sobre o Affair Irã-Contras e mais tarde perdoado pelo Presidente George H.W. Bush, de modo que voltar ao governo para nos vender a Guerra no Iraque – e Robert Kagan, diretor do escritório de diplomacia pública para a América Latina no Departamento de Estado – foram propagandistas dos brutais regimes militares de El Salvador e da Guatemala, bem como dos estupradores e bandidos homicidas que compunham as forças rebeldes dos Contra que lutavam com o governo sandinista da Nicarágua – os quais eles financiaram ilegalmente. O trabalho deles era de desacreditar as nossas reportagens.

Eles, e o seu círculo de companheiros amantes da guerra, foram diante, pressionando pela expansão da OTAN na Europa Central e Oriental após a queda do Muro de Berlin, violando um acordo para não estender a OTAN para além das fronteiras da Alemanha unificada e imprudentemente antagonizando a Rússia. Eles eram e são os animadores de torcida do estado de apartheid de Israel, justificando os crimes deste contra os palestinos e miopemente confundindo os interesses de Israel com os nossos. Eles advogaram à favor dos ataques aéreos na Sérvia, instando os EUA a “remover” Slobodan Milosevic do poder. Eles foram os autores da política de invasão do Afeganistão, do Iraque, da Síria e da Líbia. Robert Kagan e William Kristol, com a sua ignorância típica, escreveram em abril de 2002 que “o caminho que leva à verdadeira segurança e à paz” é “o caminho que passa por Bagdá.”

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Vimos como isso funcionou. Aquele caminho levou à dissolução do Iraque, a destruição da sua infraestrutura civil, incluindo a obliteração de 18 das 20 usinas de geração de eletricidade e quase todos os sistemas de bombeamento de água e saneamento durante um período de 43 dias, quando 90 mil toneladas de bombas foram despejadas no país, o surgimento de grupos radicais jihadistas em toda a região e os estados falidos. Junto com a humilhante derrota no Afeganistão, a guerra no Iraque estraçalhou a ilusão da hegemonia militar e global dos EUA. Isto também infligiu aos iraquianos – que nada tinham a ver com os ataques às torres-gêmeas em New York (em 11 de setembro de 2001) – a matança generalizada de civis, a tortura e humilhação sexual dos prisioneiros iraquianos, e a ascensão do Irã enquanto a potência proeminente na região. Eles continuam a clamar por uma guerra contra o Irã, com Fred Kagan declarando que “não há nada que possamos fazer a não ser atacar para forçar o Irã a desistir das suas armas nucleares”. Eles incitaram a derrubada do presidente venezuelano Nicolas Maduro, depois de tentarem fazer a mesma coisa contra Hugo Chavez. Eles miraram contra Daniel Ortega, o seu inimigo na Nicarágua.

Eles assumem um nacionalismo cego que os proíbe de ver o mundo a partir de qualquer perspectiva que não seja a deles. Eles nada sabem sobre a maquinaria da guerra, as suas consequências, ou o seu inevitável contragolpe. Eles nada sabem sobre os povos e culturas nos quais eles miram para uma violenta regeneração. Eles acreditam no seu direito divino de impor por força os seus “valores” sobre outros. Um fiasco após o outro. Agora eles estão alimentando uma guerra com a Rússia.

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“O nacionalista é, por definição, um ignorante”, observou o escritor iugoslavo Danilo Kis. “O nacionalismo é a linha de menor resistência, o jeito fácil. O nacionalista é imperturbável, ele sabe, ou pensa que sabe, que os seus valores são seus – quer dizer, são nacionais; quer dizer que os valores da nação a qual ele pertence são éticos e políticos; ele não está interessado nos outros, estes não o concernem – ao inferno com eles, são um outro povo (outras nações, outra tribo). Eles sequer precisam investigar, O nacionalista vê os outros nas suas próprias imagens – como nacionalistas.”

O governo Biden está repleto destes ignorantes, incluindo a Joe Biden. A esposa de Robert Kagam, Victoria Nuland, trabalha para Biden como subsecretária de Estado para assuntos políticos. Anthony Blinken é o secretário de Estado [ministro de relações exteriores]. Jake Sullivan é o conselheiro para a segurança nacional. Eles provêm deste círculo de duendes morais e intelectuais que inclui Kimberly Kagan, a esposa de Fred Kagan, que fundou o Instituto para o Estudo da Guerra (The Institute for the Study of War); William Krystol, Max Boot, John Podhoretz, Gary Schmitt, Richard Perle, Douglas Feith, David Frum e outros. Muito deles foram outrora republicanos convictos ou, como Nuland, trabalharam tanto em governos republicanos, quanto democratas. Nuland foi a principal vice-conselheira de política exterior do vice-presidente Dick Cheney.

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Eles se unem pela demanda por orçamentos cada vez maiores para a defesa e forças militares sempre em expansão. Julian Brenda chamou estes cortesãos do poder de “os bárbaros 'self made' [se fizeram por si próprios] da inteligência”.

Em outras épocas, eles bradavam contra a fraqueza e a conciliação dos liberais. Porém eles migraram rapidamente para o Partido Democrata, ao invés de apoiar Donald Trump – que não demonstrava desejo algum de iniciar um conflito com a Rússia e que chamou a invasão do Iraque de “um grande e gordo erro”.  Além disso, como eles assinalaram corretamente, Hillary Clinton era uma companheira neocon. E os liberais se espantam de que quase metade do eleitorado – que insultam estes arrogantes e não-eleitos corretores do poder, como deveriam fazê-lo – votaram em Trump.

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Estes ideólogos não viram os cadáveres das suas vítimas. Eu os ví. Incluindo crianças. Cada corpo morto que eu ví mês após mês, ano após ano, na Guatemala, em El Salvador, na Nicarágua, em Gaza, no Iraque, no Sudão, no Iêmen ou no Kosovo, expunha a falência moral deles, a sua desonestidade intelectual e a sua sede de sangue doentia. Eles não serviram nas forças armadas. Os filhos eles não serviram nas forças armadas. Porém eles despachavam ansiosamente jovens homens e mulheres estadunidenses para lutar e morrer pelos seus sonhos auto-ilusórios de um império e da hegemonia dos EUA. Ou, como na Ucrânia, eles provêm centenas de milhões de dólares em armamentos e apoio logístico para sustentar longas e sangrentas guerras por procuração.

Para eles, o tempo histórico parou no final da Segunda Guerra Mundial. A derrubada de governos democraticamente eleitos executada pelos EUA durante a Guerra Fria na Indonésia, na Guatemala, no Congo, no Irã e no Chile (onde a CIA supervisionou o assassinato do comandante-chefe do exército, o General René Schneider, e o presidente Salvador Allende); [o ataque] a Baía dos Porcos, as atrocidades e crimes de guerra que definiram as guerras no Vietname, no Cambodia e no Laos, até os desastres que eles fabricaram no Oriente Médio, despareceram todos no buraco negro da sua amnesia histórica coletiva. Eles alegam que a dominação estadunidense é benigna, é uma força do bem, é uma “hegemonia benevolente”. Segundo Charles Krauthammer insistiu, o mundo dá as boas-vindas “ao nosso poder”. Todos os inimigos - de Saddam Hussein a Vladimir Putin – são os novos Hitler. Todas as intervenções dos EUA são lutas pela liberdade que tornam o mundo um lugar mais seguro. Todas as recusas de bombardear e ocupar um outro país são momentos de Munique 1938 [os acordos do Reino Unido com a Alemanha], um recuo patético da confrontação com o mal feito pelo novo Neville Chamberlain. Nós temos inimigos no estrangeiro. Mas o nosso inimigo mais perigoso está dentro [dos EUA].

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Os belicistas constroem uma campanha contra um país como o Iraque, ou a Rússia, e depois aguardam pela crise – eles a chama de o próximo Pearl Harbour [o ataque japonês ao Havaí] para justificar o injustificável. Em 1998, William Kristol e Robert Kagan, junto com uma dúzia de outros proeminentes neoconservadores, escreveram uma carta aberta o presidente Bill Clinton, denunciando a sua política de contenção do Iraque como um fracasso e exigindo que ele fosse à guerra para derrubar Saddam Hussein. Eles advertem que continuar com a “conduta de fraqueza e deriva” seria “colocar os nossos interesses e o nosso futuro em risco.” Enormes maiorias no Congresso dos EUA, Republicanos e Democratas, apressaram-se a passar o Ato de Libertação do Iraque (Iraq Liberation Act). Poucos Democratas e Republicanos ousaram ser vistos como brandos em questões de segurança nacional. O ato declara que o governo dos Estados Unidos trabalharia para “remover o regime liderado por Saddam Hussein” e autorizou a alocação de US$ 99 milhões para realizar esta meta – uma parte da qual a ser usada para financiar o Congresso Nacional Iraquiano (Iraqui National Congress) de Ahmed Chalabi, o qual se tornaria instrumental na disseminação de fabricações e mentiras usadas para justificar a guerra contra o Iraque no governo de George W. Bush.  

Os ataques de 11 de setembro de 2001 [às torres-gêmeas em New York] deu ao partido da guerra a sua abertura – primeiro com o Afeganistão e depois o Iraque. Krauthammer, que nada sabe sobre o mundo muçulmano, escreveu que “a maneira para domar a rua árabe não é com apaziguamento e doce sensibilidade, mas sim com poder cru e vitória... A verdade elementar que parece iludir os especialistas repetidas vezes... é que o poder é a sua própria recompensa. A vitória muda tudo, acima de tudo psicologicamente. A psicologia [no Oriente Médio] agora é uma de medo e profundo respeito pelo poder dos EUA. Agora é a hora de usá-lo.” Kristol cantou a pedra: remover Saddam Hussein do poder “transformaria a paisagem política do Oriente Médio”.

Obviamente, transformou, porém não de maneiras que beficiaram os EUA.

Eles desejam uma guerra apocalíptica global. O historiador militar Fred Kagan, o irmão de Robert, escreveu em 1999 que “os EUA devem ser capazes de lutar contra o Iraque e a Coréia do Norte, e tambémser capaz de lutar contra o genocídio nos Balcãs e outros lugares, sem comprometer a sua capacidade de lutar dois importantes conflitos regionais. E [os EUA] devem ser capazes de contemplar uma guerra com a China ou a Rússia dentro de um tempo considerável (mas não infinito) a partir de agora” [ênfases do autor].

Eles acreditam que a violência resolve automaticamente todas as disputas, até mesmo o atoleiro israelense-palestino. Numa bizarra entrevista imediatamente após o 11 de setembro de 2001 [torres-gêmeas, NYC], Donald Kagan – o classicista de Yale e ideólogo de direita, que foi o pai de Robert e Fred -, junto com o seu filho Fred, pediu a alocação de tropas estadunidenses em Gaza, de modo que nós pudéssemos “levar a guerra a esta gente”. Há muito tempo, eles exigem a colocação de tropas da OTAN na Ucrânia – com Robert Kagan dizendo que “nós mão precisamos nos preocupar que o problema seja o nosso cerco, mas com as ambições da Rússia.” A sua esposa, Victoria Nuland, foi exposta num vazamento de uma conversa telefônica em 2014 com o embaixador dos EUA na Ucrânia, Geoffrey Pyatt, depreciando a União Europeia e tramando para remover o presidente democraticamente eleito [da Ucrânia] Viktor Yanukovych, que era próximo à Rússia, e instalar no poder políticos ucranianos complacentes [com os EUA] – a maioria dos quais acabaram tomando o poder. Eles fizeram lobbying para que tropas dos EUA fossem enviadas à Síria para dar assistência só rebeldes “moderados” que buscavam derrubar Bashar al-Assad. Ao invés disso, a intervenção gerou o Califado. Os EUA acabaram bombardeando as mesmas forças que eles haviam armado, tornando-se assim a força aérea de facto de Assad.

A invasão da Ucrânia pela Rússia – assim como os ataques de 11 de setembro de 2001 [torres-gêmeas, NYC] – é uma profecia autorrealizável. Putin, assim como todos em quem eles [os belicistas] miram, só entende a força. Eles nos asseguram que nós podemos dobrar a Rússia militarmente de acordo com a nossa vontade.

“É verdade ter agido firmemente em 2008 ou em 2014 teria significado arriscar o conflito”, escreveu Robert Kagan na última edição da publicação Foreign Affairs of Ukraine [Assuntos de Relações Exterior da Ucrânia], lamentando a nossa recusa anterior em confrontar militarmente a Rússia. “Mas agora Washington está arriscando o conflito; as ambições da Rússia criaram uma situação inerentemente perigosa. É melhor para os EUA arriscar a confrontação com potências beligerantes quando estas estão nos estágios iniciais de ambição e expansão, e não depois que estas já consolidaram ganhos substanciais. A Rússia pode possuir um temeroso arsenal nuclear, mas o risco de Moscou usá-lo não é maior agora do que teria sido em 2008 ou em 2014 – se o Ocidente tivesse intervido então. E este risco sempre foi extraordinariamente pequeno: Putin jamais iria obter os seus objetivos destroçando a sí próprio e o seu país, juntamente com a maior parte do mundo.”

Resumindo: não se preocupem sobre ir a guerra com a Rússia, Putin não usará a bomba.

Eu não sei se estas pessoas são estúpidas ou cínicas, ou ambas as coisas. Eles são prodigamente financiados pela indústria da guerra. Eles jamais foram retirados das redes [internet] pela sua repetida idiotia. Eles rodam para dentro e para fora do poder, estacionados em lugares como o The Council of Foreign Relations [Conselho de Relações Exteriores] ou o The Brookings Institute [o Instituto Brookings] antes de serem chamados de volta ao governo. Eles são tão bem-vindos na Casa Branca de Obama e Biden quanto na Casa Branca de Bush. Para eles, a Guerra Fria nunca terminou. O mundo permanece sendo binário – nós e eles, o bem e o mal. Eles nunca são responsabilizados. Quando uma intervenção militar se incendeia, eles estão prontos para promover a próxima. Se nós não os impedirmos, estes Dr. Strangeloves acabarão com a vida no planeta como a conhecemos.

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