Origens e perspectivas do conflito na Ucrânia
"Na teoria dos jogos, esta guerra é um jogo de perde-perde", analisa o sociólogo Marcelo Zero
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- A invasão da Rússia na Ucrânia foi, sem dúvida, uma violação dos princípios do Direito Internacional Público (DIP) e da Carta das Nações Unidas, a qual criou, no plano mundial, um sistema de segurança coletiva, que só autoriza intervenções em outros países em caso excepcionais, após aprovação do Conselho de Segurança da ONU.
- Muito embora os EUA sistematicamente violem esse sistema (Iugoslávia, Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria etc.), isso não justifica essa nova intervenção.
- É preciso considerar, nesse contexto, que o sistema de segurança coletiva protege, em especial, países que não têm grande poder militar, como o Brasil. Portanto, é do interesse nacional do país defendê-lo e preservá-lo.
- Assim sendo, a condenação da invasão é correta e necessária.
- Entretanto, tal condenação não deve impedir, no nosso entendimento, a análise objetiva e racional das raízes históricas e estruturais do conflito, totalmente ignoradas pela mídia ocidental e brasileira, no quadro de uma russofobia avassaladora, que criminaliza até mesmo o grande Dostoievsky.
- Entender plenamente o conflito não significa justificar a intervenção. Significa compreender as razões e motivações das partes em conflito, primeiro e fundamental passo para a busca consequente da paz.
- Pois bem, o presente conflito entre Rússia e Ucrânia não pode ser entendido sem se levar em consideração dois grandes fatores históricos: a expansão injustificada da Otan em direção ao território da Rússia e a instalação, via golpe, na Ucrânia, de um regime político francamente hostil a Moscou, no qual grupos neonazistas têm considerável influência.
- A Otan foi criada em 1949, pelo Tratado de Washington, já no contexto do início da Guerra Fria. Seu grande objetivo era o de criar um pacto militar e político que fizesse frente à influência da URSS na Europa. Sua existência se justificava no quadro de um conflito geoestratégico que opunha os interesses dos EUA e seus aliados da Europa Ocidental aos interesses da URSS e seus aliados da Europa Oriental, corporificados, por seu turno, no Pacto de Varsóvia.
- Finda a Guerra Fria, após o colapso da URSS, o Pacto de Varsóvia foi extinto, em 1991. Não obstante, a Otan não só foi mantida como consideravelmente expandida, apesar das promessas em contrário dos EUA. Por quê?
- Há duas razões principais para tanto. A primeira tange ao desejo dos EUA de manter o controle geoestratégico e geopolítico da Europa. A extinção da Otan teria propiciado a criação de um pacto militar próprio e independente da Europa, sem a participação dos EUA. Isso contrariava a estratégia de Washington de manter o continente europeu subordinado aos seus interesses. Tal estratégia explica porque os EUA nunca exigiram grandes contrapartidas econômicas de seus aliados europeus para manter a Otan, um organismo bastante dispendioso.
- A segunda razão diz respeito ao fato de que os EUA e alguns de seus aliados, principalmente os do Leste europeu, nunca deixaram de considerar a Rússia como uma ameaça potencial à sua hegemonia naquela região. Considere-se que Yeltsin e Putin, no início de seu primeiro governo, chegaram a solicitar aos EUA que a Rússia fosse incluída num organismo de “segurança pan-europeu”, ou mesmo à Otan. Na década de 90 e no início deste século, a Rússia não se via como uma adversária da Europa. Ao contrário, desejava ser incluída nela. Se via essencialmente como um país europeísta. Mesmo assim, os EUA e alguns aliados rejeitaram tais pretensões da Rússia e mantiveram uma estratégia de exclusão daquele país e de contínua expansão da Otan para o Leste.
- Tal estratégia pode ser resumida pela famosa frase de Lord Ismay, primeiro secretário-geral da Otan: “manter os russos fora; manter os americanos dentro e manter os alemães subordinados” ('keep the Russians out, the Americans in and the Germans down').
- Desse modo, a expansão da Otan para o Leste foi realizada de forma sustentada, apesar das promessas em contrário feitas por James Baker a Gorbatchev (“nenhuma polegada para o Leste”). Em 1999, Polônia, Hungria e República Tcheca foram incorporadas à OTAN, apesar dos protestos russos. Numa grande segunda onda, concluída em 2004, Letônia, Estônia, Lituânia, Eslováquia, Eslovênia, Bulgária e Romênia também foram incorporadas, em meio a muitos protestos da Rússia. Em 2009, foi a vez da Albânia e da Croácia. Em 2020, Montenegro e Macedônia do Norte também foram incorporadas à Otan. De 16 membros, a Otan passou a contar com 30 membros.
- Na conferência da Otan em Bucareste, realizada em 2008, a Rússia esperava que o organismo renunciasse a se expandir para a Ucrânia e para a Georgia. Tal não aconteceu, o que levou Putin a se retirar, furioso, da reunião. Na ocasião, Putin declarou que se a Ucrânia entrasse para a Otan, ela o faria “sem a Crimeia e sem o Donbas”. Vejam bem, Putin antecipou o que a Rússia faria há 14 anos.
- A eventual incorporação da Ucrânia à Otan poderia colocar tropas ou uma base dessa organização a apenas cerca de 500 quilômetros de Moscou.
- Dessa posição, um míssil hipersônico de alcance intermediário, que pode ser lançado de plataformas móveis, poderia atingir a capital da Rússia em apenas 5 minutos, gerando um tempo de resposta defensiva extremamente curto. Considere-se que os EUA se retiraram do tratado com o Rússia, que regulava esse tipo de mísseis, na era Trump.
- Agora, imaginem se fosse o contrário. Imaginem um cenário no qual a Rússia tivesse, por exemplo, incorporado ou tentado incorporar o Canadá (membro da Otan) na OSTC, criando a possibilidade de inserir tropas ou mísseis no sul de Québec, a apenas cerca de 500 quilômetros de Nova Iorque. Será que os EUA assistiriam a tudo passivamente? Evidentemente que não. Teriam reagido com extrema agressividade, como fizeram na crise dos mísseis de Cuba, no início da década de 1960, que levou o mundo ao borde uma guerra nuclear.
- Em comparação, a reação de Putin era (não é mais, evidentemente) bastante razoável, embora firme. Queria que os EUA firmassem um tratado de não agressão com a Rússia e que a Ucrânia não entrasse na Otan. Era, até este ano, uma aposta na paz e na negociação. Não obstante, Biden e Blinken recusaram. Por quê?
- Porque sua aposta é no conflito e na rivalidade com a Rússia e a China. Querem encurralar e fragilizar esses países, vistos como “inimigos”, e “adversários”, conforme apregoa publicamente a doutrina de segurança nacional dos EUA, aprovada por Obama, em 2010.
- Com efeito, tal nova doutrina dos EUA não considera mais o combate ao terrorismo como seu alvo prioritário. A grande competição pelo poder mundial - e não o terrorismo - é agora o foco principal da segurança nacional dos EUA.
- E quem são os principais “inimigos” dos EUA nessa competição pelo poder mundial? Segundo a doutrina de segurança nacional e a Nuclear Posture Review, a nova política nuclear norte-americana, divulgada em fevereiro de 2018, são China e Rússia. Eles e eventuais aliados.
- Assim, os EUA declararam “guerra” às novas potências emergentes e à progressiva constituição de uma ordem mundial mais equilibrada e multipolar. Querem sua hegemonia absoluta de volta. Querem a restauração geopolítica da antiga ordem, que prevalecia na década de 90 do século passado e no início deste século. Não querem negociar a sério, como demonstrado recentemente. Exigem, na realidade, rendição e submissão.
- A Nuclear Posture Review é particularmente assustadora. Em primeiro lugar, a nova política prevê gastos da ordem US$ 1,2 trilhão, nos próximos 30 anos, para “modernizar” o arsenal nuclear norte-americano. Muitos analistas consideram que, na verdade, tais gastos, para cumprir os objetivos amplos propostos, deverão chegar ao redor de US$ 2 trilhões, sem levar em conta a inflação. Trata-se de uma ampliação gigantesca dos US$ 70 bilhões que Obama já havia disponibilizado para a modernização do arsenal nuclear dos EUA.
- É uma montanha de dinheiro destinada ao desenvolvimento de novas e sofisticadas armas nucleares. Os EUA pretendem desenvolver, entre várias outras, uma nova geração de mísseis nucleares “cruise”, capazes de evitar os radares do inimigo, novos mísseis nucleares de rápido acionamento lançados de submarinos e uma outra nova geração de mísseis dotados de armas nucleares táticas, de poder explosivo menor que a de armas nucleares estratégicas.
- Conforme a nova política, essas armas nucleares táticas estariam destinadas a responder a ameaças nucleares ou não nucleares à segurança dos EUA ou de seus aliados. Assim, pela nova política, os EUA admitem explicitamente uma resposta nuclear a um ataque não nuclear. No texto, menciona-se um ataque cibernético aos EUA ou a aliados como uma das possíveis motivações para uma resposta nuclear tática.
- Isso é muito preocupante, (e, com certeza, assustou o Kremlin), pois se borra intencionalmente a fronteira entre guerra convencional e guerra nuclear. Uma resposta nuclear, ainda que limitada, a um ataque convencional poderia escalar fácil e rapidamente numa guerra nuclear total, capaz de destruir o planeta várias vezes. Na realidade, essas armas nucleares táticas devem se destinar prioritariamente a ofensivas em conflitos convencionais, algo antes impensável. Não haveria mais o equilíbrio e dissuasão do “terror nuclear”.
- Esse contexto geopolítico conflituoso foi consideravelmente agravado com o golpe da “revolução laranja” na Ucrânia. O atual regime ucraniano, apoiado decisivamente por Washington e evidente satélite estratégico dos EUA, é fortemente hostil à Rússia e a russos em geral. Em 2019, por exemplo, o parlamento ucraniano aprovou lei que torna o idioma ucraniano praticamente o único idioma oficial da Ucrânia, uma afronta num país que sempre foi bilingue, e no qual ucranianos e russos conviviam de forma pacífica.
- Saliente-se que, com a ascensão desse regime, no qual grupos neonazistas têm considerável influência, eclodiu uma guerra civil na região do Donbas. Tal guerra civil já havia matado mais de 14 mil pessoas, sendo cerca de 10 mil civis, a maioria russos, antes do surgimento do atual conflito armado.
- A colocação, no ano passado, de mísseis e tropas da Otan na Romênia e na Bulgária, a negativa dos EUA em negociar um pacto de não-agressão e a neutralidade da Ucrânia, a ameaça do regime Kiev de se retirar dos Memorandos de Budapeste (que asseguram a desnuclearização do território ucraniano) e o recrudescimento dos bombardeios contra o Donbas foram as gotas d`água para uma Rússia cansada de promessas não cumpridas e historicamente traumatizada por episódios de quase extermínio.
- Tal contextualização geopolítica do atual conflito não é apanágio da esquerda ou de setores da esquerda. Como bem advertiram muitos analistas e políticos conservadores do EUA, como Kissinger, MacNamara, George Kennan, John Matlock etc. etc., a injustificada expansão da Otan, combinada com a guerra civil ocasionada pela “revolução laranja”, a qual rompeu com o delicado equilíbrio político interno na Ucrânia, teria sido considerada uma “questão existencial” por qualquer governo russo, não apenas pelo de Putin.
- William Burns, atual diretor da CIA e antigo embaixador dos EUA na Rússia, assinalou, em memorando à secretária de Estado, Condoleezza Rice, datado de 2008, que: “a entrada da Ucrânia na Otan é a mais brilhante de todas as luzes vermelhas para a elite russa (não apenas Putin). Em mais de dois anos e meio de conversas com os principais atores russos, desde os funcionários mais graduados do Kremlin até os críticos liberais mais perspicazes de Putin, ainda não encontrei ninguém que veja a Ucrânia na Otan como algo aquém de um desafio direto à existência da Rússia”.
- William Perry, secretário de Defesa de Clinton chegou a pensar em renúncia, quando seu chefe decidiu fazer uma primeira expansão da Otan. Até Biden, em 1997, reconheceu que tal expansão geraria reações hostis na Rússia.
- Mas o importante, agora, com o “leite já derramado”, é lutar por uma paz urgente.
- Os termos básicos de um acordo de paz viável poderiam ser os seguintes.
- As forças russas deveriam se retirar completamente de todas as áreas da Ucrânia que ocuparam desde o início da invasão, a exceção da Crimeia e do Donbas, e a soberania de Kiev sobre o resto do território teria de ser integralmente assegurada.
- A Ucrânia, por sua vez, deveria assinar um tratado de neutralidade, o qual mantenha esse país afastado da Otan, inspirado no Tratado Finlandês-Soviético de 1948 ou no acordo mediante o qual as forças ocidentais e soviéticas se retiraram da Áustria, em 1954.
- Esses tratados garantiram a neutralidade desses países, mas também a sua soberania, e permitiram que se mantivessem na esfera de influência do Ocidente, que é tudo o que os ucranianos do oeste e do centro querem. Tanto a Finlândia quanto a Áustria não fazem parte da Otan e são militar e estrategicamente “neutras”. No entanto, elas são membros plenos da União Europeia e praticam política externa totalmente independente da Rússia.
- Obviamente, a Rússia teria que garantir a soberania e a integridade territorial da Ucrânia. Não obstante, mesmo membros liberais do establishment russo insistem que, por uma questão de realismo, deve-se reconhecer que a Rússia não poderia devolver, para a Ucrânia, a Crimeia (reanexada em plebiscito, em 2014) e as repúblicas separatistas de Donbas (reconhecidas como independentes por Moscou, na véspera de guerra).
- A Rússia, contudo, poderia concordar em reabrir as negociações de Minsk II sobre a implementação de uma relação federativa, de ampla autonomia, entre as repúblicas do Donbas e Kiev.
- Na opinião de Alexey Gromyko, diretor do Instituto da Europa da Academia Russa de Ciências: “As tropas russas serão retiradas assim que um acordo político for alcançado, conforme as condições básicas russas: o reconhecimento da Crimeia como parte da Rússia (caso contrário, a ameaça à segurança da Crimeia será perene, assim como a ameaça ao seu abastecimento de água(Kiev cortou o abastecimento de água à Crimeia há vários anos), o reconhecimento das duas repúblicas de Donbas em suas fronteiras administrativas completas (ou algum tipo de acordo de facto, sem o reconhecimento oficial das repúblicas por Kiev), limitações aos equipamentos militares ucranianos (principalmente sistemas de ataques de mísseis), um status de neutralidade militar semelhante ao da Áustria, de 1954, sob garantias internacionais juridicamente vinculantes.
- O Brasil pode contribuir para tal nobre objetivo. Com efeito, em nosso modesto entendimento, o Brasil, consoante aos princípios constitucionais que regem sua política externa, notadamente os da não-intervenção, da solução pacífica dos conflitos e o da busca da paz, deveria procurar manter, neste momento, uma postura equilibrada, e apostar, sobretudo, em negociações e na obtenção da paz, como fazem, por exemplo, a China e a Índia, nossos parceiros no BRICS, bem como inúmeros países da Ásia, da África e da América Latina, que não se alinham automaticamente aos imperativos geopolíticos do EUA e da Otan e não se deixam conduzir pela russofobia predominante no Ocidente.
- Tal acordo tem de ser obtido logo. O prolongamento da guerra e a perspectiva de sua intensificação confluem para o aumento da distância entre as posições, o aumento do número de vítimas inocentes, a consolidação da demonização de tudo o que é russo e, o que é pior, para a perigosa tendência de alargamento político e geográfico do conflito.
- Afinal, a Rússia não tem condições de fazer uma guerra de ocupação de longo prazo num país do tamanho da Ucrânia, como os EUA fizeram no Afeganistão e no Iraque. Sua recente retirada tática de algumas regiões da Ucrânia demonstra isso cabalmente. A sinalização de que a Rússia agora se concentrará em objetivos no Leste e Sul da Ucrânia indica redução de suas ambições militares. Parece evidente que houve erro de cálculo na estratégia militar russa, que previa uma intervenção mais rápida e de menor intensidade.
- E Zelensky, por sua vez, já emitiu sinais de que pode negociar essas reivindicações russas, notadamente a questão da Otan e da neutralidade.
- O grande adversário da paz parece ser, no momento, os EUA, secundados por alguns aliados europeus, que insistem em sua política de confrontação, estimulam a resistência militar ucraniana, despejam armas no cenário de guerra, usam esse país para seus objetivos geopolíticos e implantam sanções financeiras, econômicas e comerciais draconianas e inauditas contra a Rússia.
- Sanções essas que já aumentaram os preços internacionais de energia e de alimentos, afetando populações inocentes e pobres de países em desenvolvimento, especialmente no Oriente Médio e África, e mesmo no Brasil. Na África, faltam fertilizantes para o plantio. O mesmo acontece na Tailândia, onde os produtores de arroz estão sendo afetados pelo aumento dos insumos para o plantio.
- Nesse contexto, a FAO advertiu que a guerra e as sanções deverão incrementar os preços das commodities agrícolas, que já estão em níveis muito elevados, em mais de 20%, o que aumentará dramaticamente o número de famintos do mundo (800 milhões). Como sempre, a conta mais cara do conflito recairá sobre os pobres do planeta, principalmente sobre a população que vive em países que já estavam em situação de insegurança alimentar, por causa da pandemia e do aumento das desigualdades. O número de miseráveis, de acordo com a Oxfam, também deverá aumentar em cerca de 263 milhões.
- Afora isso, as sanções e a guerra dificultarão ou mesmo impedirão a recuperação econômica mundial, caso mantidas por mais tempo e mais aprofundadas e extensas, como desejam os EUA. Na teoria dos jogos, esta guerra é um jogo de perde-perde.
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