Órfãos do talvez e do quem sabe: a História pede passagem

As cortes internacionais de direitos humanos consideram que os crimes de terrorismo de Estado vividos por presos políticos no Brasil não são passíveis de anistia



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Há quatro anos, ao examinar o caso Gomes Lund versus Brasil, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou que o governo investigue penalmente os fatos por meio da Justiça ordinária e puna os responsáveis pelo desaparecimento forçado de 62 pessoas, ocorrido entre 1972 e 1974 – período da Guerrilha do Araguaia no país.

Guilherme Gomes Lund, desaparecido em 1973, com 26 anos, depois da intervenção do Exército na região, é apenas um entre centenas de jovens assassinados durante os 21 anos de ditadura militar no Brasil.

Por que razão a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil no caso Gomes Lund? A resposta é simples. A razão foi dada pelo STF quando se baseou na Lei de Anistia para impedir o julgamento e a punição dos responsáveis pelas mortes dos 62 guerrilheiros e o ocultamento de seus cadáveres, fatos até hoje envoltos em neblina, resultando na impunidade dos culpados, e na indignação de familiares e da sociedade como um todo.

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Ao condenar o Brasil, a Corte Interamericana evidenciou que a Justiça no Brasil não forneceu mecanismos efetivos para uma total reparação às vítimas da ditadura militar, não levando a um Direito à Verdade ou a um Direito à Justiça reais.

As cortes internacionais de direitos humanos reconhecem atualmente que os crimes de tortura, assassinatos e desaparecimento forçado, como os vividos por presos políticos no Brasil e em vários países latino americanos, se incluem na categoria de crimes de terrorismo do Estado. Desde o julgamento dos criminosos nazistas pelo Tribunal Internacional de Nuremberg, em 1945, estes crimes são qualificados como de lesa-humanidade, e, portanto, não passíveis de anistia e prescrição.

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A lei de anistia de 1979 no Brasil, resultado de um pacto entre as Forças Armadas e os grupos que exerciam a soberania antes do golpe de Estado de 1964 – ou seja, os titulares do poder econômico privado e os agentes políticos conservadores – objetivou garantir a impunidade dos responsáveis pelos crimes de terrorismo de Estado durante o regime de exceção. E assim foi.

A situação política na América Latina, no entanto, evoluiu nos últimos 35 anos e felizmente já não mais enfrentamos realidades onde ditadores militares na defesa dos interesses das elites nacionais e internacionais, derrubavam governos eleitos democraticamente com o apoio das forças armadas norte americanas, se necessário fosse.

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As cortes superiores de países como Peru, Colômbia, Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai, instauraram nos últimos anos processos que julgaram e condenaram militares e civis responsáveis por prisões e mortes violentas de opositores, reconhecendo que nestes casos, como pregam as convenções internacionais, as leis de anistia existentes naqueles países não se aplicavam.

Na Argentina a Corte Suprema de Justiça decidiu "declarar sem efeitos as leis de anistia que constituíam um obstáculo normativo para a investigação, julgamento e eventual condenação de fatos que implicavam violações dos direitos humanos", e vem condenando exemplarmente os culpados, sejam eles de baixas ou altas patentes.

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Em 22 de dezembro de 2010, o ex-presidente general Jorge Videla foi condenado à prisão perpétua por crimes de lesa-humanidade durante o período em que esteve à frente da ditadura militar na Argentina.

Na Colômbia a Corte Constitucional evitou aplicar os dispositivos de sua anistia em casos de graves violações de direitos humanos, salientando o caráter das normas relativas aos direitos humanos.

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No Chile, a Corte Suprema de Justiça invalidou a aplicação da anistia através de uma sentença de substituição, declarando que o sequestro teria caráter de crime contra a humanidade e a anistia não poderia extinguir a responsabilidade penal.

O Tribunal Constitucional do Peru afirmou o dever de cumprir as obrigações assumidas pelo Estado nos tratados internacionais sobre direitos humanos. O Tribunal peruano colocou explicitamente que o encobrimento de crimes contra a humanidade e a garantia de impunidade para graves violações contra os direitos humanos não podem ser funções desempenhadas pela lei ou colocadas pelo legislador.

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A Corte Suprema do Uruguai também declarou a incompatibilidade da sua Lei de Anistia com a Convenção Americana por ter a primeira afetado direitos como a investigação judicial; o esclarecimento dos fatos; e a imposição de sanções penais aos perpetradores das violações, todos eles previstos na Convenção.

Ao reforçar a legalidade da Lei de Anistia brasileira, o STF coloca o Brasil na direção contrária à evolução da história no que tange à compatibilidade das leis de anistia com as obrigações internacionais assumidas pela maioria dos Estados americanos, europeus, africanos, entre muitos outros do mundo ocidental.

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Um dos mais respeitados juristas brasileiros, Fabio Konder Comparato, 78 anos, entrevistado recentemente pela Carta Capital, faz críticas diretas contra a manutenção da Lei da Anistia brasileira.

indagado sobre a possibilidade de mudança de orientação do STF a respeito, ele é direto e objetivo: "se o Tribunal mantiver sua orientação contrária ao que prevê o sistema internacional de direitos humanos, será inevitável que o Estado Brasileiro seja sancionado".

A sentença imposta ao Brasil no Caso Gomes Lund afirma que "a Corte Interamericana considera que a forma na qual foi interpretada e aplicada a Lei de Anistia aprovada pelo Brasil (...) afetou o dever internacional do Estado de investigar e punir as graves violações de direitos humanos, ao impedir que os familiares das vítimas no presente caso fossem ouvidos por um juiz, conforme estabelece o artigo 8.1 da Convenção Americana; violou o direito à proteção judicial consagrado no artigo 25 do mesmo instrumento, precisamente pela falta de investigação, persecução, captura, julgamento e punição dos responsáveis pelos fatos, descumprindo também o artigo 1.1 da Convenção.

Suas excelências os ministros do STF parecem ignorar parte da sentença onde se afirma que "ao aplicar a Lei de Anistia impedindo a investigação dos fatos e a identificação, julgamento e eventual sanção dos possíveis responsáveis por violações continuadas e permanentes, como os desaparecimentos forçados, o Estado brasileiro descumpriu sua obrigação de adequar seu direito interno, consagrada no artigo 2 da Convenção Americana."

Ao condenar o Brasil, portanto, a Corte indica o caminho a ser seguido para que a justiça e a verdade sejam garantidas em face dos crimes cometidos contra os direitos humanos pela ditadura militar quando da Guerrilha do Araguaia.

Assim, a decisão da Corte Interamericana aparece justamente endossando essa necessidade do Brasil avançar quanto à garantia dos Direitos à Verdade e à Justiça, contribuindo para a construção de uma memória coletiva.

Pelo menos uma das importantes determinações contidas na sentença da Corte Interamericana contra o Brasil a respeito das violações de direitos humano no país foi cumprida: a instalação de uma Comissão da Verdade.

Sua atuação tem sido inestimável. Por meio dela muitos fatos obscuros estão sendo esclarecidos, a exemplo da morte do ex-deputado Rubens Paiva, da prisão do estudante Honestino Guimarães para citar apenas duas das mais recentes elucidações.

Muitas outras determinacões da Corte Interamericana ainda se encontram apenas no papel, dentre elas a principal: a adequacão da Lei de Anistia brasileira ao Direito interno e às Convencões internacionais.

Nunca é tarde, no entanto, para mudanças. As manifestações de pesar no aniversário de 50 anos do golpe de 1964, demonstram que a sociedade brasileira não esqueceu as atrocidades cometidas e quer esclarecer os fatos. É importante, inclusive, para que não voltem a se repetir.

O povo brasileiro não é estúpido. Sabe que não podemos igualar os direitos daqueles brasileiros que resistiam ao regime ditatorial, lutando por liberdades democráticas, pelo direito de expressão, de greve e de emprego, com os direitos de agentes civis e militares que, em nome do Estado, invadiram lares, locais de trabalho, sindicatos e universidades, prenderam, torturaram, mataram e fizeram desaparecer os restos mortais de centenas de pessoas.

Se tantos anos depois ainda existem filhos, mães e pais sem túmulos, "orfãos do talvez e do quem sabe", (como disse certa vez o líder da oposição do governo Geisel, deputado Alencar Furtado) é porque algo está errado.

A real Justiça para os crimes da ditadura deve ser feita como fizeram os demais países sul americanos, desconsiderando a abrangência da Lei de Anistia sobre eles, e realizando seus julgamentos por meio da Justiça comum. A história pede passagem.

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