Onde moram os pobres...

A questão da vulnerabilidade da moradia entra em pauta sempre que vêm as estações chuvosas no Brasil

(Foto: Rede Brasil Atual/Samuel Perpétuo)


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A questão da vulnerabilidade da moradia entra em pauta sempre que vêm as estações chuvosas, no Brasil, assim como sempre que a mineração deixa seu rastro de destruição por sobre comunidades vizinhas que não têm nenhuma relação ou ganho com o que realiza a atividade extrativista. Há poucos dias, inclusive, cumpriu-se um ano do desastre de Brumadinho, que levou à morte de quase 300 pessoas e atingiu uma imensa área de comunidades rurais. Em ambos os casos, trata-se de uma questão que associa o social ao territorial, amplamente debatida por geógrafos e uma das questões fundamentais para a sociedade e o meio ambiente na contemporaneidade.

O território, o espaço, é uma das instâncias em que se reproduzem as injustiças sociais. Por isso o atrelamento tão forte entre o social e o ambiental, embora os segmentos conservadores não queiram enxergar os dois e, inclusive, parte dos setores progressistas de nossa sociedade não queiram compreender a importância deste último, visto ainda acreditarem em conceitos desenvolvimentistas do século XX que contemplam o viés econômico da busca por qualidade de vida, premente aos pontos de vista identitário e ambiental. Portanto, se se quer identificar onde estão os territórios ambientalmente mais vulneráveis de nossa sociedade, simplesmente busquem por onde vivem os mais pobres.

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A questão espaço-exploração, que ao mesmo tempo tem um pé no social e outro no ambiental, já foi debatida amplamente por um dos principais pensadores brasileiros, o geógrafo Milton Santos, que define a ocupação espacial e, principalmente, a ocupação urbana no Brasil como um produto da exclusão, isto é, do progressivo deslocamento de comunidades baseado no interesse dos grupo econômicos, tanto em alijar certos cidadãos de determinado território a fim de ocupá-lo ou explorá-lo (a chamada gentrificação), quanto em agregar massa trabalhadora a determinada região extrativista, industrial ou comercial (vide Serra Pelada, Eldorado dos Carajás etc). 

A questão está presente desde a revolução industrial e o chamado “cercamento dos campos”, quando medidas econômicas, tributárias e, por fim, policiais, forçaram gerações de camponeses a abandonar suas terras para aninharem-se nas grandes cidades como trabalhadores das indústrias, o que lhes restava após perderam a subsistência da pequena propriedade rural. Dava-se fim aos últimos traços de feudalismo ainda existentes na Europa Ocidental, a população campesina, para dar o passo definitivo no caminho da contemporaneidade, a sociedade urbana, da produção por uma imensa massa trabalhadora para o consumo, sendo este mais restrito na medida em que se caminha para a base da pirâmide social.

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Houve, no entanto, uma inversão da ocupação territorial desde então. Da massa trabalhadora concentrada nos grandes centros industriais e da burguesia afastada nas mansões nos subúrbios de Londres, Manchester, Hamburgo e Paris, chegou-se ao metro quadrado mais caro do Brasil nas avenidas Paulista e Faria Lima, esta última a meca dos novos milionários brasileiros, ambas em São Paulo, ao passo que o trabalhador, não mais necessário no centro da logística do capital, é alijado às frágeis periferias. Exatamente o oposto de quando os operários vinham de regiões remotas, como o interior nordestino, para trabalhar nas cidades, apesar de que mantendo o caráter macro-territorial (rural-urbano) com a mudança ocorrendo no micro-territorial (centro-periferia). Um processo que já se vê desde os anos 1980, mas que radicaliza-se nesse primeiro quarto de século.

Esse movimento micro-migratório decorrente dos interesses capitalistas se dá por um processo de avanços nas comunicações, que reduz a distância com que viaja a informação entre a fábrica e o proprietário, não necessitando este estar presente na consecução do produto ou atividade-fim (o que inclui produtos físicos ou abstratos, desde um celular até uma transação bancária). Além da automação da produção, sendo o corpo humano aí já desnecessário (o robô na linha de montagem, a informatização do caixa do supermercado, do frentista do posto de gasolina, do ascensorista e do porteiro nos arranha-céus), dispensando o imediatismo na relação entre o trabalhador e a eficácia da produção. Sendo assim, os espaços centrais se tornaram o local onde estão os escritórios, os centros de comando. E, claro, onde vivem tais coordenadores e aqueles que ainda lhes prestam serviços diretos (médicos, advogados, alguns professores, jornalistas, prestadores de serviços em geral), pagando caro para aí morar.

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Num sentido inverso, a produção agora se encontra nas periferias, e para lá foi deslocada, com o passar do tempo, a classe operária. Fábricas, usinas de extração de quaisquer bens minerais, entrepostos de alimentos e combustíveis, concentram-se às beiras de estradas das grandes cidades, assim agregando as camadas mais pobres da sociedade. Pior para aqueles que ainda têm de servir ao centro, como funcionários do comércio, dos transportes urbanos, de terceirizadas de empresas, além dos agora trabalhadores por aplicativo, que têm agregada à sua jornada de trabalho o trânsito entre ambos os territórios.

Tudo isso para tecer o argumento de que, ante a dicotomia territorial que replica a divisão entre ricos e pobres nesta sociedade, vê-se a valoração dos espaços que estas habitam e onde convivem e produzem, sendo menos importantes as áreas periféricas urbanas e as pequenas propriedades rurais. Da relação entre sociedade e espaço natural nasce o descaso social quanto ao saneamento e a segurança territorial nas periferias, que caminha lado a lado com o abuso exploratório e a negligência quanto à conservação de áreas rurais ocupadas pela população campesina. O descaso para com o espaço social também é descaso quanto ao espaço natural, argumenta Santos, amalgamando-se ambos na tragédia que é a conservação da qualidade de vida e do meio ambiente no Brasil.

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