Onde está "aquele garoto que ia mudar o mundo"?



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Os meus sonhos
Foram todos vendidos
Tão barato que eu nem acredito
Ah, eu nem acredito
Que aquele garoto que ia mudar o mundo
Mudar o mundo
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As festas do Grand Monde
(Ideologia – CAZUZA)

Em janeiro completei cinquenta e nove anos, me animei e pensei em preparar uma festa para o próximo janeiro, afinal, passarei oficialmente da maturidade para a senilidade, terei até direito ao cartão da SETRANSP para estacionar em vaga de idoso, além de outros direitos sociais, não menos significativos, fruto de conquista de uma sociedade que já desejou ser solidária, generosa e não apenas eficiente.

Comecei a fazer uma lista de convidados. 

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Listei pessoas que amo, na companhia de quem me alegro e cujas opiniões - mesmo as divergentes – me inquietam, mas enriquecem; vi na possibilidade de uma “festa de sessenta anos” a oportunidade de estar com aqueles que a caminhada afastou do meu cotidiano, mas cujo afeto segue integro. Cheguei a reservar a Sala da Lareira lá na Hípica, mas cancelei, pois percebi que há muito mais a “inventariar” e “reparar” do que a festejar.

Comecei a pensar sobre os meus sonhos e desejos da adolescência e da juventude: encontrar um amor definitivo, sexo, segurança material e emocional, companheirismo, sucesso, fama, prestígio -, ambições humanas, tão humanas. 

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Me dei conta também que - como os “manés” -, comecei derrotado. Não sei cantar, nem dançar; não sei contar piadas; não tenho uma “turma”; nunca fui para a seleção e não era bom no futebol; não participei de expedições fantásticas ao continente gelado; não escalei o Everest ou Fitz Roy, não sou alpinista ou montanhista; nunca voei de balão na Capadócia, nem em lugar nenhum; não me fiz prefeito, governador ou presidente; não fiz nada grandioso, nem o que sonhei e não me permiti sonhar além da minha própria mediocridade.

E o pior, meus sonhos que, se não foram todos vendidos e por preço vil, não foram em sua maioria realizados. 

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Contudo, os desejos, tão necessários para nossa existência, frequentemente excederam. Os desejos nos impulsionam, mas quando nos dominam, passam a dirigir nossas vidas. Muitas vezes eu me deixei dominar, ou desejei ser dominado pelo excesso. 

Creio que o anseio pela segurança material e emocional, e por posição importante na sociedade, de certa forma, me tiranizaram e deturparam aquilo que era sonho e desejo legítimos.

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Não serei condescendente, nem justificarei meus tantos erros, afinal nenhum ser humano, por melhor que seja, está livre do erro. 

Sendo assim, ao invés de uma festa, que poderia mascarar necessária e urgente reflexão sobre a minha caminhada, vou tentar me reconciliar com “aquele garoto que ia salvar o mundo”, realizando uma espécie de inventário moral.

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Esse exercício representa, para alguém vaidoso como eu, esforço enorme, tanto para reconhecer erros, quanto para aceitar que eles, voluntaria ou involuntariamente, fizeram mal a outras pessoas.

Acredito que, colocando sobre a mesa, sob a luz meus erros poderei começar a corrigi-los. Meu pai me ensinou sobre a necessidade de em algum momento fazermos um “minucioso e destemido inventário moral”.

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Esse é o desafio que me coloco nesse caminho aos sessenta anos.

Nesse ponto pensei: “por onde começar?”. Bem, lancei mão de um roteiro que envolve os sete pecados capitais:  orgulho, avareza, luxúria, ira, gula, inveja e preguiça. Comecei pelo “orgulho”, pois, ele é o principal fomentador da maioria das dificuldades humanas, o maior empecilho ao progresso verdadeiro.

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Vou falar sobre cada um deles ao longo do ano.

Um detalhe interessante: encontrei nas anotações do meu pai a seguinte frase: “Quando a satisfação de nosso instinto pelo sexo, segurança e posição social se torna o único objetivo de nossa vida, então o orgulho entra em cena para justificar nossos excessos”, a frase está entre aspas, presumo que ele copiou de algum livro, ele me legou muitos cadernos com anotações, reflexões e, em certa medida, conselhos.

Eu sempre fui orgulhoso, talvez eu tenha usado o orgulho como uma espécie de escudo, afinal sempre tive medo de falhar e de viver experiências para as quais eu não estava preparado, mas que eu escolhi os caminhos, sempre houve a possibilidade de dizer “não” e de realizar outra escolha.

O medo é gerador de erros - e quanto mais orgulho, mais erros; quanto mais erros, maior a possibilidade de magoar e prejudicar pessoas que estão no nosso entorno. Aos cinquenta e nove anos não há mais espaço para objeção aos meus erros e defeitos, nem aos efeitos que eles causaram e causam.  

Compartilhei com o meu amigo Carlinhos esse meu objetivo, ele disse que sou “dramático”. Não concordo com ele. Acredito que em algum momento todos devem fazer esse “inventário moral, afinal, com o passar do tempo, vamos nos tornando prisioneiros das nossas culpas e eu desejo me libertar delas.Hoje sei que a minha vida, como escreveu Carlos Drummond, é cheia de imperfeições, mas não farei como ele sugeriu: “... se eu fosse crítico, apontaria muitos defeitos [na obra]. Não vou apontar. Deixo para os outros. Minha obra é pública”, vou pensar sobre o caminho, sobre as escolhas, me desculpar e reparar o que for possível. E há um aspecto importante a ser considerado: não se trata de culpar a mim mesmo por todos os problemas na minha vida, isso poderia ser uma viagem para a desesperança, mas não se trata disso, trata-se de recuperar os sonhos que foram vendidos barato pelo caminho e, quem sabe, me reconciliar com “aquele garoto que ia mudar o mundo”.

Essas são as reflexões.

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