Obrigado, Lewandowski. Relato de uma passagem que revela a altivez do juiz
"Ao longo de 17 anos como ministro do STF, Ricardo Lewandowski não se permitiu desvios nos desvãos de Brasília", conta Luís Costa Pinto
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Hoje, despede-se do Supremo Tribunal Federal um grande juiz: Ricardo Lewandowski. Egoísta e comezinho como sou, digo sempre que o admiro por uma passagem particularmente relevante em minha vida – antes de admirá-lo pela coragem de navegar contra ventos e marés de maiorias fluidas e pela clareza de princípios que norteiam seus votos no STF. Nunca tive o privilégio de privar da amizade do ministro que se despede de 17 anos vividos no Supremo, onde testemunhou muitas passagens da História e pôde contribuir com o desfecho delas. Nossos destinos se encontraram numa das encruzilhadas da Ação Penal 470, vulgarmente e inapropriadamente celebrizada como “julgamento do mensalão”. No volume 3 de Trapaça – Saga Política no Universo Paralelo Brasileiro (Geração Editorial, 2022), contei assim a passagem:
“O jornal Aqui Ceará, um tablóide popular, começava a fazer sucesso editorial. Entretanto, não traduzia boas tiragens e edições saborosas em lucros. Costumava ir para Fortaleza às terças-feiras e retornar a Brasília às quintas. Ter feito um investimento como aquele sem mergulhar na gestão da redação, entregue ao jornalista Donizete Arruda, ou na administração do negócio, a cargo dos Diários Associados, sócios majoritários, revelara-se um erro. Seis meses depois do lançamento, já buscava formas de passar à frente a minha participação na empresa e não deixava de ouvir o eco do chiste de Tasso Jereissati quando fui oferecer a ele o Correio Braziliense em 2002: “sou empresário e gosto de ganhar dinheiro. Se quisesse perder, comprava um jornal”.
Na tarde de 2 de agosto de 2012 entrei no voo que me levaria da capital cearense de volta para casa com aquele turbilhão de tormentos. Em Brasília, os onze ministros do Supremo Tribunal Federal reuniram-se na primeira sessão de julgamento da Ação Penal 470, popularizada como “mensalão”. Pretendia acompanhar o palio entre o PT, a parte udenista da sociedade e as certezas líquidas do ministro Joaquim Barbosa, relator da ação no STF, com o interesse natural a todos os que seguem a dinâmica da política. Sabia que em algum momento o meu nome seria citado no curso das sessões, que seriam muitas. Eu não era réu, obviamente. Entretanto, ao imputar contra João Paulo Cunha uma das quatro acusações que fazia a ele – corrupção, lavagem de dinheiro e peculato (duas vezes) – Barbosa alegara que o ex-presidente da Câmara deveria ser condenado por ter supostamente se beneficiado da minha contratação pela SMP&B uma vez que “desfrutara” de uma consultoria de comunicação personalizada paga no âmbito de um contrato coletivo da Câmara dos Deputados.
A acusação era um despautério e uma estultice. Porém, a estupidez da reportagem da jornalista Marta Salomon publicada na Folha de S Paulo em 2005, dando ouvidos a um relatório parcial assinado por um único auditor do Tribunal de Contas da União, criara as condições para aquela situação e legitimara aquele trecho do relatório do ministro do Supremo. Preparara-me para enfrentar um novo ciclo de ataques públicos, mas, acreditava que seria algo controlado. Uma das razões que insistira em recusar cargos públicos no início da gestão de Agnelo Queiroz no Distrito Federal era a certeza de que meu nome emergiria no transcurso do julgamento. Não deixaria que me usassem uma vez mais como bucha de canhão para bater em clientes. Certo de que o ex-presidente da Câmara era personagem lateral na Ação Penal 470, embarquei sem maiores preocupações com o início do julgamento.
Ao pousar em Brasília havia mais de uma centena de ligações, de origens diversas, para meu celular. Alguns tentaram falar comigo mais de seis ou oito vezes. O advogado Otávio Luiz Rodrigues Jr, meu amigo, que havia sido consultor jurídico do Ministério das Comunicações, fora o mais insistente e tentara falar comigo mais de uma dezena de vezes. Havia muitos recados na caixa de voz. Àquela época pré-aplicativos como Whatsapp e Telegram, recados de voz eram ainda muito usadas.
A primeira gravação que ouvi era justamente de Otávio, e me bastou.
– Amigo, ninguém sabia que o julgamento começaria por ali. Fica com um abraço forte. A Justiça prevalecerá – dizia ele.
Não escutei os demais. Abri os sites de notícias e todos só davam manchetes e submanchetes com o mensalão. Meu nome constava em alguns textos: Joaquim Barbosa invertera a ordem de apresentação das denúncias e, para dar maior lógica aos pedidos de condenação que faria, abrira com o capítulo dos políticos e da Câmara dos Deputados. Nele, puxara para o início da denúncia, em específico, o caso da minha contratação pela SMP&B e como aquilo representava, no entender dele, relator da Ação Penal 470, uma síntese da forma como políticos se beneficiavam de favores empresariais.
Deixei a área de desembarque doméstico do aeroporto Juscelino Kubitscheck com os sinais de descargas de adrenalina invadindo todo o corpo. A boca seca, as palpitações, os calafrios e uma ira profunda me obrigaram a sentar num café da saída da estação de passageiros e ler avidamente tudo o que se referia a mim. Era inacreditável, pensava, passar por um novo drama que abalaria a minha credibilidade profissional. Rascunhei tópicos para respostas que daria se alguém me procurasse a fim de publicar qualquer “outro lado” de reportagem, pedi uma cerveja, bebi-a de uma só vez, e concentrei-me em dar retorno às ligações dali mesmo. Agradeci as preocupações de quem me ligara como devoção a uma amizade sincera, driblei a insensatez covarde dos que usavam aquele momento para consumar vinganças pessoais e desabafei com Patrícia.
– Você assistiu ao início do julgamento do mensalão? – perguntei a ela.
– Não – respondeu. – Mas a Eliane e a Mônica Bergamo ligaram para me falar e perguntar como você estava. Disse que você estava viajando e, provavelmente, nem vira. Como você está? Onde você está?
– Desembarquei, vi tudo agora. É uma loucura. Estou indo para casa. Falamos aí. Beijos, beijos, é preciso ser forte de novo...
Ao chegar em casa, tranquei-me no escritório e reli tudo o que havia sido dito na sessão. Se a tentativa de condenar João Paulo Cunha pelo contrato da agência de publicidade que servia à Câmara era uma loucura em si, usar-me para tal era uma implicância infundada.
Telefonei para Rodrigo Mudrovitsch, o jovem advogado que conduzia de forma exemplar a minha defesa numa Ação Civil movida pelo Ministério Público com base nas mesmas acusações reproduzidas por Joaquim Barbosa. Ele me tranquilizou.
– Se eu puder apostar que há uma das imputações nas quais João Paulo não será condenado, será essa – disse convicto. – Não tem base alguma, a auditoria preliminar do Tribunal de Contas caiu por um acórdão unânime do TCU mostrando que você cumpriu o contrato e trabalhava para a SMP&B no contrato com a Câmara. É chato ficar exposto? É. Tem de aguentar? Tem. É duro ouvir as acusações, mas, ali, o ministro Joaquim está lendo as imputações. Nem todo mundo será condenado.
Sempre era reconfortante escutar Mudrovitsch, exatamente porque ele não tem uma personalidade tranquila. Sendo o tipo de advogado que prefere antever os percalços processuais e as atitudes da acusação ou do juízo, só se revelava otimista quando havia motivos para otimismo.
No jantar, na copa de casa, eu e Patrícia tomamos uma garrafa de vinho especulando o futuro. Estava amargurado – e o dia seguinte traria, possivelmente, novas amarguras posto que o julgamento ia continuar.
Foram 69 sessões e um ano e meio até que o Supremo Tribunal Federal concluísse todo o julgamento da Ação Penal 470. Assistir às sessões era revisitar um imenso drama político em parte superado com a reeleição de Lula à presidência em 2006. Entretanto, havia dramas pessoais ali que não sanavam. Os próprios julgadores ressaltavam a lisura e a solidez moral do ex-deputado José Genoíno Neto, por exemplo, mesmo condenando-o porque diziam que os fatos deviam ser vistos friamente. Na verdade, viam-nos sob o véu da política partidária e dos recalques. Muitas vezes, aquele confronto entre a frieza da Justiça e as contingências da vida nacional se converteu em verdadeiras sessões de justiçamento.
Meu drama pessoal foi encerrado às sete e meia da noite do dia 29 de agosto de 2012 quando o ministro Celso de Mello, decano (o mais antigo no tribunal) do STF, proferiu o voto derradeiro em relação às imputações contra João Paulo Cunha.
O ex-presidente da Câmara terminou condenado por corrupção, lavagem de dinheiro (sentença revista depois, quando ele foi absolvido) e um dos peculatos. Em relação à acusação contra João Paulo que dizia respeito à improvável e absurda “locupletação” dele em razão de a agência de Marcos Valério Fernandes de Souza ter me contratado para prestar serviços à Câmara e, assim, potencializar os benefícios ao parlamentar, a maioria dos ministros decidiu pela absolvição.
Com os votos de Ricardo Lewandowski, que foi decisivo e cirúrgico ao demonstrar com precisão em seu voto revisor que não tinha sentido aquela acusação, Dias Toffoli, Rosa Weber, Cézar Peluso, Gilmar Mendes e Celso de Mello, o ex-presidente da Câmara foi absolvido por 6 a 5. Fora a única absolvição dentre as quatro imputações que lhe caíam sob os ombros – exatamente como previra Rodrigo Mudrovitsch. Ao escutar a sentença do decano do Supremo, soltei a plenos pulmões um grito de desabafo. Desci do escritório, fui à adega, peguei a garrafa de champanhe que tinha comprado para a ocasião, abri-a e bebi com Patrícia enquanto ligava para os amigos e atendia a ligações de pessoas que também celebravam. Dei um longo, especial e agradecido telefonema a meu advogado.
– Rodrigo, obrigado. Vencemos! E você acertou tudo, do timing à absolvição. Passando pelo placar.
Ele sorriu e ressaltou:
– Foi muito bom e justo. Agora, tem a Ação Civil...
– Mas isso não muda tudo lá? – quis saber em minha ignorância jurídica.
– Influi, mas, mudar, não muda. E lá ainda leva tempo. Alguns anos.
No dia 7 de junho de 2016, exatamente dez anos depois de iniciada a Ação Civil Pública 2006.34.00.032580-0 recebeu a sentença definitiva do juiz Renato C. Borelli da 20ª Vara Federal do Distrito Federal absolvendo-me e à minha empresa, Ideias Fatos e Texto, que emitia as notas fiscais da consultoria para a SMP&B. Enfim convicto da minha inocência e da improcedência das ações, o Ministério Público não recorreu. Aquela página dolorosa e excruciante de minha vida estava virada em definitivo. Depois de receber cópia da sentença das mãos de Rodrigo Mudrovitsch presenteei-o com os dois melhores vinhos que já havia comprado na vida e recomendei, leve e sorrindo agradecido: beba em casa, com a sua mulher. Vale a celebração! *****”
Para redigir seu voto revisor na Ação Penal 470 Lewandowski mergulhou fundo nas águas do mercado publicitário e de assessoria de imprensa para compreender os meandros à da atividade de “consultor em comunicação”, na qual me destacava em Brasília naquela encarnação de vinte anos atrás. Espantou-me, confesso, a clareza cristalina de minhas rotinas de consultor em seu relatório. Não tínhamos conversado para tal; eu não havia sido ouvido sequer como testemunha informal. Ainda assim, ele foi preciso, direto e pragmático na descrição pormenorizada das atividades desempenhadas por um consultor de comunicação e do porquê era injusto e errado criminalizar a função sem deixar que se conferisse ao desempenho dela ares de atmosfera criminal.
Distantes quase 18 anos desde a denúncia ardilosa do “mensalão” (feita por um facínora, Roberto Jefferson, que está na cadeia neste momento), e 11 anos depois do ruidoso e midiaticamente coreografado julgamento da Ação Penal 470 conduzido por Joaquim Barbosa para ser na verdade uma ribalta de execução e execração do PT, parece risível a missão que Lewandowski se impôs lá atrás e que construiu muito particularmente para mim a imagem do juiz justo e imparcial. Do “operador do Direito” que tem compromisso com o espírito das leis e da contemporaneidade delas. Do servidor do Estado que não se deixou contaminar pela frivolidade de uma Brasília onde, à guisa de esquinas, encontra-se muita perdição nos becos escuros não planejados nem materializados por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa.
A Ricardo Lewandowski, uma única palavra que pronuncio de pé: obrigado.
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