O “Você fica caladinha!” põe lama nas instituições

Incapaz de usar da sagacidade e do conhecimento das regras do parlamento para manter seu discurso, o Coronel disparou: "Enquanto eu estiver falando, você fica caladinha". O susto foi imediatamente sentido por Betão: "Mas o que é isso, Coronel?". Em seguida, a deputada reassumiu a condução da discussão e disse, claro, que "nenhum homem tem o direito de mandar uma mulher se calar"

O “Você fica caladinha!” põe lama nas instituições
O “Você fica caladinha!” põe lama nas instituições


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Dois momentos diferentes marcaram a semana da política mineira, ambos vindos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) e capazes de delinear o quão contraditória é a pauta das deputadas e deputados federais e estaduais no Brasil. Também deixam claro, a quem alguma dúvida restar, o quão cínicas e hipócritas são nossas estruturas de Poder: conservadoras de regra e progressistas de ocasião.

O primeiro pode levar a leitora ou leitor à tentação de vê-lo como mais importante, visto envolver mais nitidamente a vida de milhares de mineiras e mineiros: foi aprovado o Projeto de Lei (PL) no 3.676/2016, que endurece as regras para construção de barragens, sobretudo no que diz respeito ao licenciamento e aos métodos de construção, para melhor segurança das estruturas de depósito de rejeitos de minérios (sendo medida mais conhecida a proibição das barragens por "alteamento a montante").

O segundo, entretanto, possui igual dimensão se considerado o impacto representativo e o que ele revela sobre os homens que ora ocupam o poder (no sentido estrito, visto esta coluna há muito ter abolido o gênero masculino para designações plurais – salvo quando, ainda, cai no equívoco do costume). Isto porque este espaço de discussão parte da premissa de que o mundo é melhor para cada pessoa na medida em que é melhor para todas, para a coletividade, uma vez que nele não vivemos isoladas/os.

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Em debate na Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia sobre um requerimento sem grande importância (pedia ao governador providências quanto a proventos para servidoras e servidores inativos), o deputado Coronel Sandro (PSL) pediu vistas ao processo e adiamento da votação, no que estava em seu direito. No entanto, ao fazê-lo, utilizou-se do tempo regimental para tergiversar e vender seu peixe como parlamentar, falando ao seu público sobre "ideologização nas escolas" e fazendo exaltação ao regime militar.

Integrante da mesa, o deputado Roberto Cupolillo (Betão, PT) reclamava da impertinência da argumentação, sendo repreendido pelo Coronel: "você fala na sua vez". Diante do impasse, a deputada Beatriz Cerqueira (PT), que preside a Comissão e por muitos anos foi coordenadora-geral do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (Sind-UTE), em nome da ordem usou de sua autoridade e chamou a atenção do deputado para ater-se ao requerimento em discussão (igualmente um procedimento regimental), evitando estrategicamente o debate fetichista da direita sobre cerceamento à liberdade de expressão nas escolas (afinal, para isso o PT lutou pela direção da Comissão, cedendo apoio à chapa do presidente Agostinho Patrus, amplamente criticada nesta coluna).

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Em seguida, incapaz de usar da sagacidade e do conhecimento das regras do parlamento para manter seu discurso (o que, de fato, era impossível), o Coronel disparou: "Enquanto eu estiver falando, você fica caladinha". O susto foi imediatamente sentido por Betão: "Mas o que é isso, Coronel?". Em seguida, a deputada reassumiu a condução da discussão e disse, claro, que "nenhum homem tem o direito de mandar uma mulher se calar".

E a reunião foi suspensa e descambou em bate-boca.

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Ocorre que a aprovação do PL 3.676, aquele de que falamos ao início dessa reflexão e que por dois anos foi uma pauta do ex-deputado estadual, hoje federal, Rogério Correia (PT), foi empurrada com a barriga por parlamentares conservadoras/es de regra e aprovada somente agora pelas mesmas forças políticas que subitamente se tornaram, quanto às barragens, progressistas de ocasião. O PL foi aprovado por unanimidade entre 65 presentes na votação, o que indica que muito provavelmente o digníssimo Coronel Sandro, que manda mulher "ficar caladinha", votou em favor das populações pobres e ameaçadas de Minas. A menos que tenha estado entre as 12 ausências, o que não faz diferença: a unanimidade mostra que se ali estivesse um agente da Gestapo, com sua lista de semitas indesejáveis no bolso, do mesmo jeito ele votaria a favor.

O que se tem, portanto, são indícios de quanto o Parlamento vela interesses econômicos e sociais hegemônicos, em que muito raramente ocorre espaço para que as pautas populares e das minorias repercutam nas Câmaras e Assembleias espalhadas pelo Brasil. O "cala a boca" a Beatriz, com ênfase no diminutivo, é o silenciamento e a inferiorização impostos às mulheres por séculos, além do retrato de uma estrutura parlamentar em que elas não chegam a dez por cento. O "deixa pra depois" ao PL 3.676, por outro lado, é voz ressonante do capital financeiro que tem representatividade em três quartos do Parlamento, quando pouco.

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A reunião na Comissão foi interrompida em nome da dignidade de Beatriz Cerqueira e em respeito à luta das mulheres e das professoras e professores que ela representa por meio de 96.824 votos, o dobro dos 48.533 do Coronel. Também em respeito à assertividade com que agiu Betão em defesa de sua colega de Assembleia, partido e bandeira, visto que este também é professor. Fez o que se espera de um homem ciente dos privilégios que tem e aos quais, ao mesmo tempo, busca dar fim em prol da coletividade. Agora, Beatriz, Betão e Sandro são deputados, mas nas urnas dela é a história, a luta e o diálogo com o povo: é uma das deputadas mais votadas de Minas Gerais, a primeira na esquerda. Do Coronel, é o neoconservadorismo de ocasião. Daí a diferença. Há anos se ouve falar em Beatriz Cerqueira quando o assunto são o quadro docente e as mulheres de Minas. O Coronel, descobriu-se agora.

O PL, aprovado, foi encaminhado ao Palácio Tiradentes, para sanção do governador Romeu Zema (PN). Óbvio, será assinado. Apenas o tempo, porém, há de mostrar se ele é resultado de conscientização e solidariedade da classe política e do empresariado para com as pessoas mais pobres, que trabalham e produzem a riqueza de que desfrutam, ou se tudo não passou do progressismo de ocasião, dada a comoção por Brumadinho (Mariana não fora suficiente). Afinal, não terão sido a Constituição cidadã de 1988, a reforma psiquiátrica, a Lei Maria da Penha, aprovados por Congressos conservadores mediante o progressismo de ocasião?

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A julgar pelo que ocorreu a Beatriz, toda solidariedade às minorias, se não vem das ruas e do chão de terra da luta no campo, é passageira e sempre retorna aos bons e velhos conservadorismo, compadrio e patrimonialismo das elites que se alçam à classe política, às casernas e aos tribunais brasileiros. É mais provável que a pressa em aprovar o PL nada tenha a ver com a reação imediata do deputado Betão à violência simbólica cometida à presidente da Comissão (esta reação, sim, em diálogo com as ruas e da militância). A dura lição que a esquerda tem aprendido no pós-golpe de 2016 deve ser incansavelmente revisitada, para que possamos aprender que, sem formação de consciência, não serão mudadas as estruturas conservadoras deste país.

Estruturas estas que regem nossa atual tragédia e aproximam os aparentemente distantes episódios de Brumadinho e Beatriz Cerqueira, neste palco de ocasião e hipocrisia que se chama Poder Legislativo, mas que poderia se chamar Justiça, Forças Armadas, Polícia Militar, Estado em seu sentido amplo, ao fim e ao cabo.

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A quem interessar, segue o link do vídeo (a discussão começa aos 4 minutos): https://youtu.be/3B_yQ-I9STg

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